Nos últimos domingos o Outros 300 tem postado várias entrevistas ocorridas no programa Roda Viva da TV Cultura. Hoje, um dos grandes da literatura nacional, e grande ídolo meu, Fernando Sabino é o entrevistado. Ele falará, claro, sobre literatura, mas também sobre sociedade, política, vida, amores... É uma grande entrevista, vale a pena acompanhá-la.
25/12/1989
O escritor diz que, infelizmente, a crônica literária vem
perdendo lugar no jornalismo, foi subjugada pela ditadura da comunicação que se
sobrepõe à expressão da imaginação criadora
Programa gravado
Jorge Escosteguy: Boa noite,
estamos começando mais um Roda Viva. O convidado do Roda Viva desta
noite é o escritor Fernando Sabino. Para entrevistar Fernando Sabino esta
noite, nós convidamos os seguintes jornalistas e escritores: Ricardo Soares,
jornalista da TV Cultura; Sérgio Pinto de Almeida, editor da revista Guia Itália 90; Ruy Castro, escritor e jornalista; Mário
Viana, editor assistente da revista Veja São
Paulo; Marcos Faerman, repórter especial do Jornal da Tarde e editor-chefe da revista Crises; Osmar Freitas, editor da revista Ícaro; Caio Fernando Abreu, escritor e jornalista
da revista AZ e Cláudia
Boyago, repórter da Rádio Nova Eldorado AM. Na platéia assistem ao programa
convidados da produção. O escritor Fernando Sabino é mineiro de Juiz de Fora e
tem 66 anos. Seu livro mais conhecido, O encontro
marcado, representa um marco na literatura brasileira por se tratar do
primeiro romance moderno urbano escrito na década de 50, e é um sucesso de
vendas até hoje. Fernando Sabino escreveu ainda vários livros, como O grande mentecapto, O homem nu, e o
último foi o livro de memórias de viagem, chamado De cabeça para baixo. Boa noite, Fernando Sabino.
Fernando Sabino: Boa noite.
Antes de mais nada, eu queria fazer um reparo.
Jorge Escosteguy: Faça-o.
Fernando Sabino: Quem é
mineiro de Juiz de Fora é o Fernando Gabeira [escritor, jornalista e político
que, em 1989, concorreu à presidência da República, obtendo 0,18% dos
votos], não sou eu não.
Jorge Escosteguy: Você é
mineiro de onde?
Fernando Sabino: Eu sou
mineiro de Belo Horizonte. Tem o Affonso Romano [de Sant'Anna, poeta, ensaísta,
cronista e professor, natural de Belo Horizonte] também, que é de Juiz de Fora.
Jorge Escosteguy: Está feito
o reparo e a correção.
Fernando Sabino: Rubem
Fonseca [escritor e roteirista de cinema, cujas obras geralmente retratam, em
estilo seco e direto, a luxúria e a violência urbana, em um mundo onde marginais,
assassinos, prostitutas, delegados e pobres coitados se misturam] também.
Jorge Escosteguy: Está feito
o reparo e a correção.
Fernando Sabino: Não, eu
preferia ser de Diamantina, sabe? Mas infelizmente sou de Belo Horizonte.
Jorge Escosteguy: Você está
trancado de novo escrevendo um novo livro, um novo romance?
Fernando Sabino: Não, eu
estou pensando em me trancar para ver se consigo escrever um novo livro. É uma
coisa um pouco diferente.
Jorge Escosteguy: Está
dependendo do quê?
Fernando Sabino: Dependendo
de vencer essa preguiça, que é um bloqueio, e, segundo, você sabe, a gente
escrever assim sobre uma coisa que você não sabe é como você pretender ir
dormir para sonhar alguma coisa que você não sabe o que é. Então dá até um
pouco de azar falar nisso, sabe? Porque você pensa que vai sonhar com a Marilyn
Monroe e sonha com o Frankenstein [nome do personagem cientista que, na
história criada por Mary Shelley, construiu o monstro que seria conhecido pelo
nome de Frankenstein], não é?
Jorge Escosteguy: Você
precisa se isolar para escrever? O isolamento, para você, é uma coisa
fundamental?
Fernando Sabino: Tudo
conspira contra escrever. Vencer a distância que separa você da máquina de
escrever é o mais difícil. Como dizia Sinclair Lewis [(1885-1951), escritor e
crítico social norte-americano, conhecido pelos trabalhos satíricos e
documentários, foi o primeiro de seu país a receber o prêmio Nobel de
literatura em 1930], se botar naquela postura de quem vai escrever. Escrever,
segundo Sinclair Lewis, é a arte de sentar a bunda na cadeira. [risos] Há esse
problema do bloqueio, da distância que te separa. Depois que começa é fácil.
Aliás como tudo na vida, não é?
Jorge Escosteguy: Eu estou
aqui com o livro, vou fazer o merchandising do Ruy
Castro, que lançou recentemente uma antologia, O melhor do mau humor, com várias frases, e há
frases aqui sobre literatura, e tem uma do Samuel Johnson [crítico literário,
ensaísta e lexicógrafo inglês, foi uma personalidade dominante da vida
literária na Inglaterra do século XVIII], que diz: “ninguém, a não ser um
idiota, escreve a não ser por dinheiro”. Você escreve por dinheiro, você ganhou
muito dinheiro escrevendo, por ser escritor famoso?
Fernando Sabino: Não, se eu
tivesse ganho muito dinheiro para escrever, eu não escreveria por dinheiro, eu
já teria dinheiro. Mas eu escrevo por dinheiro sim.
Jorge Escosteguy: Ruy. Ah,
por favor, Osmar, desculpe.
Osmar Freitas: Por falar
em dinheiro, já dá para viver de direitos autorias?
Fernando Sabino: Dava, até a
inflação me comer pela perna. Hoje eu estou igualzinho o Brasil, eu estou
gastando mais do que arrecado.
Jorge Escosteguy: O seu
editor paga os seus direitos autorais atualizados pela BTN [Bônus do Tesouro
Nacional, criado pelo governo em 89, com o objetivo de prover recursos
necessários à cobertura de déficits orçamentários ou à realização de operações
de crédito por antecipação de receita e efetuar troca voluntária por Bônus da
Dívida Externa, foi extinto em 91] ou...?
Fernando Sabino: Não, eu
recebo com 90 dias, e esses 90 dias não são “beteenizados”. De modo que quando
eu recebo já não tem mais o valor de 10% que teria se recebesse à vista. Mas
ele também recebe com 60 dias, 45 dias, há uma defasagem entre a venda do livro
e o pagamento ao editor, e ele, por sua vez, transfere essa defasagem para o
escritor com uma pequena margem de garantia.
Ruy Castro: Fernando,
há uma velha frase de que tudo o que é fácil de ler é muito difícil de
escrever. Todos os seus livros são muito fáceis de ler.
Fernando Sabino: Muito obrigado.
Ruy Castro: São
difíceis de escrever?
Fernando Sabino: Olha aqui,
o elogio que mais me tocou foi feito pela mulher do Hélio Pellegrino
[(1924-1988), psicanalista, articulista e poeta mineiro], a minha querida Maria
Urbana Pellegrino, que diz que foi contar uma história minha para uma amiga,
uma história de quatro a cinco linhas, e ela falou: “e eu quebrei a cara porque
eu acabei tendo que buscar o livro para ler para ela aquelas cinco frases”. E
ela disse o seguinte: “eu descobri que escrever parece com um balé, você vê uma
bailarina fazer um passo muito bonito, muito leve, vai fazer a mesma coisa e
cai no chão e quebra a perna, foi o que me aconteceu”. E eu fiquei muito tocado
por isso, porque realmente custa muito esforço para ser simples, é um trabalho
terrível para você conseguir chegar a essa simplicidade que parece que é fácil
de ler e, portanto, parece que foi fácil de escrever. E eu fiquei muito
gratificado agora de você ter dito que é fácil de ler.
Jorge Escosteguy: Marcos
Faerman, por favor.
Marcos Faerman: Eu queria
fazer uma alusão aqui ao seguinte, numa antiga entrevista sua, o senhor fala do
vestibular de hoje em dia, cheio de cruzinhas, em que as pessoas não pensam
muito. O senhor até usa uma expressão, que é um “vestibular de mentecaptos”. E
tem uma outra referência: “Eu conheço jovens de 20 anos de idade que nunca
leram um livro”. Eu fico feliz em comunicar ao senhor que, segundo a revista Veja, na sua última edição, o nosso atual
presidente da República [Fernando Collor de Mello], o que foi eleito, diz
ali naquela matéria que ele lê cinco livros por ano. Ou seja, ele lê 0,8 de
livro em cada dois meses. O que o senhor acha disso?
Fernando Sabino: Depende dos
livros que ele lê, né? Sei lá o que ela anda lendo. [risos]
Marcos Faerman: Mas ele
está lendo bastante... Cinco por ano...
Fernando Sabino: É. Não, eu
acho o seguinte, que esse negócio do vestibular, quer dizer, que dispensava,
não sei se ainda é assim hoje em dia, eu estou meio afastado, meio remoto nesse
assunto, mas que dispensa o aluno de redigir, impede que ele
aprenda a se expressar através da linguagem verbal escrita. E há uma grande
diferença entre escrever e redigir. Todo ser humano alfabetizado tem obrigação
de exprimir o seu pensamento através da palavra escrita. Há uma grande
diferença. Inclusive, eu me lembro muito de uma coisa que me impressionou, foi
do Truman Capote [(1925-1984), escritor norte-americano], que disse que ele
levou muito tempo entre aprender a diferença entre escrever mal e escrever bem,
porque ele diz que Deus dá a vocação e o chicote. Então, que a grande diferença
entre escrever mal e escrever bem, ele conseguiu aprender com o esforço
próprio. Mas, de repente, ele descobriu que havia uma grande diferença entre
escrever bem e a obra de arte, aí é que entra o chicote.
Ricardo Soares: Fernando,
deixa eu voltar um pouquinho atrás. Em 1942, no dia 10 de janeiro, um rapaz de
18 anos recebia na casa dele uma carta que tinha o seguinte remetente, um
endereço: Rua Lopes Chaves, 546. Eu queria que o senhor contasse quem era quem
lhe enviou a carta e que importância teve essa carta um pouco para a sua vida
literária.
Fernando Sabino: Foi que
dia? 10 de janeiro?
Ricardo Soares: 10 de
janeiro de 1942.
Fernando Sabino: 10 de
janeiro de 1942?
Ricardo Soares: 42.
Fernando Sabino: Talvez
tenha sido o acontecimento mais importante da minha vida literária.
Ricardo Soares: Eu queria
que você falasse quem mandou a carta.
Fernando Sabino: Porque foi
exatamente o início de uma correspondência com o morador dessa casa, Rua Lopes
Chaves, 546, que todo mundo familiarizado com literatura conhece, porque ele
tem, inclusive, um poema que fala nisso: “aqui nesta
rua Lopes Chaves”, Mário de Andrade. Eu tinha o quê? Em 1942 eu
estava com 18 anos, tinha acabado de publicar um livro de contos. E tinha
mandado esse livro para ele, e ele me respondeu com essa carta, que foi uma
coisa fantástica na minha vida, foi um grande acontecimento. E a partir daí nós
iniciamos uma correspondência, em que ele, com uma paciência bovina, agüentou
esse rapazinho pernóstico, e desaforado, e tímido, e atrevido, que escrevia
perguntando tudo, e ele se dispôs a responder tudo, todos os grandes problemas
que passam pela cabeça de um quase adolescente.
Ricardo Soares: Que tipo de
lição você tirou dessa correspondência?
Fernando Sabino: Perdão...
Ricardo Soares: Que tipo de
lição você tirou dessa correspondência?
Fernando Sabino: Do ponto de
vista literário, todas que eu podia tirar, e do ponto de vista humano também.
Nós vivíamos numa época em que estava sendo questionado o problema da
participação do artista em relação ao mundo porque era a época da Guerra
[Segunda Guerra Mundial], época do fascismo em plena efervescência, o Brasil
entregue à ditadura de Getúlio.
Tudo isso provocava uma necessidade de participação ativa do escritor com
relação aos problemas de seu tempo. E o Mário era muito imbuído disso, e nos
conscientizou muito com relação a isso. Eu me lembro que tinha coisas assim que
ele dizia: “a consciência é gratuita, mas a convicção é adquirida”. A
consciência, todo mundo tem, agora, você adquire uma convicção – que nós
sejamos até inimigos por convicção, mas que você se prepare para viver por essa
convicção e, se preciso, morrer por ela. Essa lição me marcou muito fundo. E eu
achei que o caminho que ele ditou para mim dentro da arte era o caminho que eu
sempre persegui dentro da literatura, que é o caminho do nhem-nhem-nhem, de ir
devagarzinho, de não querer arrombar a porta aberta, de não querer vencer da
noite para o dia. Ele até cita alguns que tentavam vencer da noite para o dia.
Se você está familiarizado com as cartas, você deve se lembrar. Foi uma
experiência absolutamente extraordinária e que jamais se repetirá com ninguém.
Hoje eu até sofro um pouco com isso porque às vezes tem pessoas que me escrevem
cartas - jovens - esperando, tendo lido o livro das cartas dele, esperando que
eu faça o mesmo papel. E, primeiro, eu não sou Mário de Andrade, eu não tenho competência
para isso. Eu ainda estou querendo receber carta dos outros me ensinando as
coisas. Agora, quem sou eu para ensinar a alguém alguma coisa?
Jorge Escosteguy: A Cláudia tem uma pergunta para você. Por
favor.
Cláudia Boyago: Fernando,
você disse que é difícil escrever sobre o que não sabe. O que vem primeiro para
você, a vontade de se trancar para escrever um livro ou é uma boa idéia?
Fernando Sabino: Cláudia,
outro dia me fizeram a seguinte pergunta: se você tivesse que começar de novo,
você escolheria ser escritor? Falei “de jeito nenhum, escolheria ser músico de
jazz”. O Ruy sabe disso. Já que podia escolher, não ia escolher bateria,
escolhia piano, por exemplo, uma coisa assim, mas eu tenho que me conformar com
a bateria. Aí eu contei essa história para a minha mulher, ela falou: “Mas,
Fernando, você não escolheu ser escritor não, você foi escolhido”. Eu achei
isso muito bom, muito bem observado, porque não é uma maldição, você nasce com
um estigma, marcado para uma determinada tarefa que transcende as suas
possibilidades. Então é a maneira de eu chegar ao limite de mim mesmo. E eu sou
defasado com relação à realidade, eu sou um mentecapto, meu bem. Para poder
atingir a normalidade eu tenho que escrever. Isso que me faz chegar ao nível
dos meus semelhantes. É essa a atividade. Então é compulsivo escrever. Eu não
sei o quê. Porque eu estou convencido de que o escritor que lida com a
imaginação criadora, ao contrário do cientista, do professor, do ensaísta, ele
escreve sobre aquilo que não sabe exatamente para ficar sabendo. Eu fico assim:
“que diabo é isso que me atormenta?” Então eu tenho que escrever para saber o
que é, inventar histórias, e tal.
Cláudia Boyago: E eu
complicaria a pergunta perguntando quando você sentiu então que isso era uma
coisa que falava mais alto para você?
Fernando Sabino: Quando eu
comecei assim, você diz?
Cláudia Boyago: Isso.
Fernando Sabino: Quando eu
era garoto, eu tinha, por exemplo, nove, oito anos, quando eu comecei a me
entender por gente, a partir dos sete, oito anos, eu descobri que eu tinha uma
vocação irresistível, incontrolável, extraordinária, arrasadora para a mentira.
Eu mentia descaradamente, [risos] eu falava mentira para todo lado. Minha mãe
me perguntava: “Aonde é que você foi?” Eu falava: “fui à praça”. “Fazer o quê?”
Não tinha ido à praça, estava no quarto. Inventava mentira para todo lado, e
não sei por que diabo eu tinha essa compulsão. Depois eu comecei a ambientar
essas mentiras, sabe? Eu ia assistir um filme, por exemplo, ou lia um livro de
aventuras assim de garoto, e começava a contar para os meus companheiros e
inventava episódios que não tinha, mudava o enredo todo, enfiava personagens.
Daí eu pensei que eu podia eu próprio começar a escrever as minhas próprias histórias,
e foi assim que eu comecei, desviando essa mitomania para a literatura.
Jorge Escosteguy: Nós estamos
a quase vinte minutos do programa. Quantas mentiras você já contou aqui para
nós?
Fernando Sabino: Para mim,
todas. [risos] Você sabe que eu não sou meu tipo, mas eu evidentemente não
tenho mais nada mais a falar senão de mim mesmo, eu não sou especialista em
nada, a não ser feito Jânio
Quadros, especialista em idéias gerais. De modo que eu tenho que me
conformar e falar de mim mesmo. De vez em quando me dá uma chateação tão grande
que eu tenho vontade de mentir desvairadamente, mudar tudo, dizer que eu nasci
em Pernambuco, dizer que eu vou escrever meu primeiro livro agora...
Marcos Faerman: Aliás, o García Márquez é
conhecido como o maior mentiroso, ele adora mentir, cada entrevista que ele
conta, ele já cabula, inventa coisas.
Jorge Escosteguy: De repente
você disse em algum lugar que você nasceu em Juiz de Fora, por isso que a gente
falou...
Fernando Sabino: É muito
possível. Mas, você sabe por quê? Existe um poeta mineiro, poeta popular, um
soldado, que tem um poema assim: “nasci em Guaxupé, no Sul de Minas, criei-me
em Juiz de Fora entre a gentalha, amei tanto o bom como o canalha, abracei da
mulher santa às messalinas”. É o meu caso. Eu servi no Exército em Juiz de
Fora. Foi isso. Eu morri em Juiz de Fora.
Jorge Escosteguy: Caio
Fernando Abreu.
Caio Fernando
Abreu: Na minha modesta e às vezes confusa opinião, você é autor de um dos romances
mais bonitos da literatura brasileira contemporânea, que é O encontro marcado.
Fernando Sabino: Com certeza
eu recebi e estou recebendo elogios aqui, está muito bom isso. Eu pensei que ia
ser massacrado. [risos] Todo mundo que eu falava: “Mas você vai no Roda Viva? Ih, você
está perdido”. “Mas o que eu fiz?” Que bom você falar isso.
Caio Fernando
Abreu: Vou até falar um clichê que você já deve ter ouvido isso muitas vezes.
Quando eu tinha 17, 18 anos, eu li O encontro
marcado, e foi determinante para me tornar um escritor, eu acho que isso
aconteceu com muita gente. Bom, e na seqüência eu acho que você publicou pouca
ficção; se a gente pensar no O encontro
marcado, depois tem O grande mentecapto, tem
algumas novelas, alguns contos. Eu queria saber se o fato de você ter passado a
escrever crônica para jornal dispersou um pouco o ficcionista Fernando Sabino.
Fernando Sabino: Olha, eu
não sei. Antes de mais nada, eu quero te cumprimentar porque você teve
realmente um destino muito mais brilhante do que o personagem do livro, porque
ele não conseguiu se realizar como escritor e você conseguiu. Agora, o que
acontece é o seguinte: eu gostaria de, evidentemente, guardadas as proporções,
todo mundo que escreve no Brasil tem como modelo e como inspiração um exemplo
que é o do Machado de
Assis. E o Machado
de Assis era um sujeito, você poderia dizer, pela numerosa obra de
crônicas, de espaços, de matéria eventual reunida em livro, que é quase
esmagadora em relação a quatro ou cinco romances importantes que ele escreveu,
na realidade, três.
Caio Fernando
Abreu: É verdade.
Fernando Sabino: Brás Cubas, Memórias póstumas e Dom Casmurro, que são os grandes livros dele, e os
outros... Então eu estou me defendendo com ele. Quer dizer, eu acho que não, eu
acho que de qualquer maneira eu tenho um livro de novelas, A vida real, depois tenho um livro, o romance O encontro marcado, O [grande] mentecapto, O menino no espelho e Faca de dois gumes. Quer dizer, já são cinco livros.
Caio Fernando
Abreu: Você acha a crônica menor em relação à ficção?
Fernando Sabino: Necessariamente...
Olha aqui, vamos plagiar o Mário
de Andrade, e ele dizia que conto é tudo o que chamamos de conto, ou
tudo o que o autor chama de conto. O que é crônica, afinal de contas, é uma
coisa muito indefinida, porque a crônica vem, com o correr do tempo, essa
condição dela ser decorrente de uma atividade jornalística, que foi se tornando
literária ao tempo de Machado
de Assis, depois veio se tornando social, ao tempo de Ibrahim Sued
[(1924-1995), filho de imigrantes árabes, era colunista social, compositor e um
dos jornalistas mais famosos da década de 70], de modo que a coisa vai ficando
meio... A crônica política... Hoje nem se chama mais de crônica, chama-se de
coluna, ou então, agora tem um novo termo para os comentaristas políticos, que
são cientistas políticos.
Caio Fernando
Abreu: Cientistas políticos, ou articulistas.
Fernando Sabino: Articulistas.
Eu me lembro que quem começou com esse negócio de colunista foi o Samuel Wainer ,
porque nós trabalhávamos juntos no Última
Hora, e ele fazia uma coluna, que era uma coluninha, chamava-se Por Detrás
da Coluna, uma coisa assim, e ele botava: “Este colunista está seguramente
informado”, e todos os jornais transcreviam dizendo: “Este comunista” [risos]
porque ninguém sabia o que queria dizer aquilo. Eu acho que a crônica não é um
gênero menor não, haja vista Rubem
Braga, que é essencialmente cronista, nunca fez, fez um outro poema
eventual, mas fez poemas em prosa maravilhosos a que ele chama de crônica, fez
contos maravilhosos a que ele também chama de crônica. De modo que eu acho que
é um gênero realmente... Uma vez, sabe... Eu posso contar um casinho aqui?
Jorge Escosteguy: Claro.
Fernando Sabino: O Guimarães Rosa
me telefonou, perguntou: “O que você está fazendo?” Falei: “estou tentando
escrever uma peça de teatro”. Ele disse assim: “Não faça biscoitos, faça
pirâmides”. E eu fiquei massacrado. Falei: quer dizer que na literatura Jorge
Luis Borges [(1899-1986), escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta
argentino, é considerado um dos mais importantes escritores da literatura
mundial] ou você é biscoiteiro ou você é
faraó, não tem jeito. E fiquei humilhadíssimo porque eu falei: minha obra é uma
padaria. [risos] Eu faço pão toda noite para vender de manhã para o jornal. Aí, para
encerrar esse caso, de repente eu fui salvo porque eu comecei a meditar e
descobri que ao longo da literatura tem muitos biscoiteiros, a começar pelo Machado de Assis.
Você quer maior biscoiteiro que?
Caio Fernando
Abreu: Clarice Lispector [(1920-1977), ucraniana, naturalizada brasileira,
jornalista e uma das escritoras mais intrigantes e ousadas da literatura
brasileira moderna].
Fernando Sabino: Clarice
Lispector. E toda essa obra às vezes massacrante, do próprio Rosa, que é uma
pirâmide fabulosa, nem sempre é o necessário. Tem escritores menores que
também... Manuel Bandeira [(1886-1968), poeta e cornista modernista, foi também
crítico de arte, professor e pesquisador. Pertenceu à Academia Brasileira de
Letras].
Jorge Escosteguy: Sérgio
Pinto de Almeida, por favor.
Sérgio Pinto de
Almeida: Fernando, biscoiteiro ou faraó, não sei exatamente, e não vai nenhum
tom negativo, claro, mas você carrega a sina de ser o autor de O encontro marcado. Você é o autor de O encontro marcado e outros. Você é apresentado como autor de O encontro marcado. O que houve na feitura do livro, no sucesso
do livro? Houve uma superação sua, no sentido do “gol de placa” que você fez
com a sua vida literária, ou você captou um sentimento que não tinha ainda sido
traduzido numa obra literária?
Fernando Sabino: Não, eu
diria que não captei um sentimento que não tinha porque não tenho essa
pretensão, eu acho que a literatura é sempre a mesma ao longo dos tempos. Eu
posso até te dar dois exemplos, e que são livros que de certa maneira eram
protótipos do meu livro. Um é A educação sentimental [escrito em 1869, o livro
narra uma relação platônica entre um jovem e uma mulher mais idosa, que espelha
o envolvimento de seu autor com madame Schlésinger], do Flaubert [Gustave
Flaubert (1821-1880), escritor francês, mestre do romance realista], e outro, This side of Paradise [publicado em 1920], do
[Francis] Scott Fitzgerald [(1896-1940), um dos maiores escritores americanos
do século XX, fazia parte da chamada “geração perdida”, foi o autor mais bem
pago de seu tempo]. Esses livros, que eu tinha por eles a mais rasgada
admiração, ainda tenho, que me influenciaram muito na época, e que serviram
muito de inspiração para O encontro marcado. Mas no [O] encontro marcado, sabe o que é, Sérgio? Não é
mérito meu nem mérito do livro, é mérito da juventude que todo mundo tem,
porque o livro coincide, esbarra, bate naquele momento da juventude em que você
vai decidir, que você descobre que não é eterno nem genial. Há uma hora em que
você descobre que você é apenas talentosinho.
Sérgio Pinto de
Almeida: Você não mentiu no livro?
Fernando Sabino: Não, não.
Eu procurei ser honesto e jogar tudo na mesa e não blefar. Agora, eu acho que
esse é o papel do artista. Então, para encerrar o caso de O encontro marcado, ele corresponde a uma necessidade de
expressão que todo jovem tem e não é só no Brasil não, e por isso que ele se
mantém ao longo do tempo, porque o jovem é eterno, ele é sempre o mesmo. Tanto
assim, que você vê que a referência que ele fez é sempre uma referência: “este
livro, quando eu era jovem, quando era moço, quando estava começando, me
influenciou muito”. É raro encontrar uma pessoa de mais de 40 anos que se
interesse pelo livro, senão como reminiscência de si próprio, compreende?
Jorge
Escosteguy: O Mário Viana tem uma pergunta. Por favor.
Mário Viana: Fernando,
lendo os seus livros, seus relatos de viagem, a gente fica morrendo de vontade
de viajar também. Eu lhe faço uma pergunta: você tem medo de avião?
Fernando Sabino: Não diga
isso. Eu já tive muito medo de avião. E, olha, eu perdi o medo de avião porque
eu fiz toda a campanha, eu fiz a cobertura da campanha de Juarez [Fernandes do
Nascimento] Távora [(1898-1975), militar e político cearense, foi candidato à
presidência da República em 1955 pela UDN] contra Juscelino Kubitscheck
[(1902-1976), médico, militar e político brasileiro, conhecido como JK, foi
presidente do Brasil entre 1956 e 1961, famoso pelo espírito desenvolvimentista
cunhado na frase "cinquenta anos em cinco"] para o Diário Carioca, numa época que você talvez não era nem
nascido, foi em 1955, e nessa época eu tinha tanto medo de avião que eu ia para
a cabine do piloto para poder ver como é que era aquilo, porque nós viajávamos,
nós visitamos 150 cidades em 120 dias. Agora, de repente eu descobri que eu
tinha mais medo do Juarez do que de avião. [risos]
Ricardo Soares: Por quê?
Fernando Sabino: Porque ele
era uma usina cívica. O Juarez era um homem de uma humildade, ele dava soco na
mesa, dava soco no ar, dava soco em qualquer lugar. Olha, o Collor "é
pinto" em matéria de dar soco no ar. [risos]
Marcos Faerman: Você tem
medo do Collor?
Fernando Sabino: Não. O que
é isso? Eu tenho vergonha [risos]. Mas, voltando ao Juarez, você diria, por
exemplo... Eu estava lendo [Fiódor] Dostoievski [(1821-1881), um dos maiores
escritores da literatura russa]. Ele falou: “O que você está lendo?” - isso no
avião - “Dostoievski”. “Mas o problema da Rússia naquela época do Dostoievski é
muito diferente do nosso problema. Você vê, por exemplo, nós temos problemas
aqui”. E começava a disparar a falar dos problemas. De repente eu mostrava uma
paisagem bonita no avião, ele falava: “tem muito aluvião, o problema do aluvião
aqui” [risos] Então eu fiquei com medo dele e perdi o medo de avião.
Jorge Escosteguy: Osmar, por
favor.
Osmar Freitas: Basicamente
são duas perguntas, mas eu vou tentar juntá-las. Primeiro a questão de crônica.
Como eu tive a honra de dividir com você o mesmo espaço no O Estado de S. Paulo, de cronista, eu gostaria de
saber o que há, você saiu das crônicas do Estado, o que há hoje em dia com as crônicas? Por
que falta crônica no país? Por que os jornais não dão tanto espaço quanto davam
antigamente? Aí vem embutida a outra pergunta: será que é porque o país está
cada vez mais analfabeto?
Fernando Sabino: Não, são
realmente duas perguntas que eu dou três respostas. Primeiro é essa, porque eu
estou absolutamente sensibilizado porque eu só recebo elogio aqui. Ele diz que
se sente honrado. Eu que me sinto honrado por ter sido substituído por você.
Não vem com essa que não tem. Em matéria de "rasgar seda" eu sou
melhor do que você. [risos] Deixa eu te falar. O negócio é o seguinte: eu acho
que houve uma evolução muito grande no jornalismo, o jornalismo que era o
veículo natural. O jornalismo de jornal, de revista, dos órgãos de comunicação.
Primeiro com o advento do audiovisual, e, segundo, com o fato dos órgãos de
imprensa terem se tornado mais órgãos de grandes empresas do que propriamente
órgãos em si na divulgação de notícias e de fatos, de obras literárias e
culturais. A crônica perdeu um pouco o lugar no jornalismo, essa que é a
verdade, a crônica literária. Eu sinto que ela foi subjugada, ultrapassada por
um fenômeno de nosso tempo que é terrível, e que eu gostaria que não existisse:
é que hoje a comunicação se sobrepõe à expressão, comunica-se mais do que se
exprime. E isso é dramático para todo mundo que trabalha com a imaginação
criadora, como é o seu caso. Você sente que há uma pletora de comunicação do
nada, do vazio, da repetição, da bobagem, do "blá, blá, blá". E isso
[porque] é preciso encher espaço, é preciso faturar, é preciso não parar, e
seria até necessário que houvesse de repente uma parada. Não se publica nada
durante seis meses.
Marcos Faerman: O senhor
propôs que uma vez por semana a TV saísse do ar.
Fernando Sabino: Eu acho
mais, eu defendo a tese que a televisão deveria repetir o programa todo dia,
como é em cinema.
Marcos Faerman: O Sílvio
Santos repete o mesmo filme.
Fernando Sabino: Isso é
verdade. No fundo ela não faz outra coisa, não é?
Ricardo Soares: Fernando,
você nunca foi convidado para escrever para televisão, nunca te atraiu fazer
novela, caso especial? Você despreza a televisão ou você gosta?
Fernando Sabino: Nunca fui
convidado não, e parece que eles desconfiam da minha completa, total e
definitiva incompetência. É outro ramo, é outro meio de que eu não tenho a
menor noção. Eu só sirvo para comparecer a saunas feito esta aqui, acho
extraordinária, acho fabulosa, me sinto honrado, gratificado...
Caio Fernando
Abreu: Fernando, a propósito da pergunta do Ricardo, no último Festival de
Cinema de Gramado havia dois filmes de textos seus, era O grande mentecapto e a Faca de
dois gumes, e os dois excelentes, principalmente o Faca de dois gumes. Ninguém se interessou em filmar O encontro marcado?
Fernando Sabino: Muitos.
Caio Fernando
Abreu: Por que não aconteceu no cinema até hoje?
Fernando Sabino: A
quantidade de filmes que eu não fiz... Eu não fiz filmes com todos os grandes
diretores brasileiros. [risos] Você não fala um que eu não tenha deixado de
fazer um filme com ele.
Caio Fernando
Abreu: Quem quis filmar O encontro marcado?
Fernando Sabino: O Eduardo
Escorel [(1945-), diretor, produtor, roteirista, montador e ator paulistano],
por exemplo, foi um que levou a sério, chegou até fazer o... Eu tenho a
impressão que... O Glauber [Rocha (1939-1981), diretor, produtor, roteirista,
montador, ator, cenografista, diretor de arte, figurinista e crítico baiano, ícone
do Cinema Novo] quis fazer. Só O encontro
marcado tem uns cinco ou seis. Mas o que foi mais longe foi o Eduardo Escorel.
Chegou a começar a fazer o roteiro, chegou a montar uma produção.
Caio Fernando
Abreu: Você chegou a vender os direitos para ele?
Fernando Sabino: Mas,
primeiro, o que acontece com o cinema é que o sujeito sai com dez projetos para
conseguir realizar um. Eu acho que o cineasta que consegue projetar um filme de
longa metragem num circuito comercial já é um herói. O filme pode ser uma
desgraça. Aqui no Brasil ainda estamos nesse nível.
Jorge Escosteguy: Agora, os
escritores em geral não gostam do resultado das adaptações para o cinema. Você
gostou das adaptações dos seus livros?
Fernando Sabino: Muito, e
inclusive continuando a responder a pergunta dele, eu também acho os dois
filmes excelentes, apenas cada um no seu gênero. Houve dois procedimentos. Eu
aprendi com o Jorge Amado [(1912-2001), escritor brasileiro dos mais
consagrados e traduzidos, cujas obras foram das mais adaptadas para a
televisão] e com o Guimarães
Rosa uma lição. Quando começaram a me pedir para fazer filmes de
histórias minhas, ambos disseram mais ou menos isso, e eu concluí que você tem
três posturas a assumir: ou negar, não aceita e está acabado; ou você entrar de
cabeça, participar, fazer parte da produção, da elaboração do roteiro, do
cenário, de tudo, da locação, dos personagens, de tudo, dos atores, tal, e até
a promoção do filme na sua estréia; ou simplesmente tirar o melhor proveito
econômico daquilo, pedir um bom pagamento pelos direitos autorias, pela cessão
dos direitos autorais, e assistir pagando ingresso.
Jorge Escosteguy: Qual foi a
sua opção?
Fernando Sabino: Essa minha
opção foi a última, foi tirar o melhor possível daquilo que eles pudessem me
pagar e ir assistir pagando ingresso. Mas ambos tiveram uma atitude muito
correta e digna, porque isso era até meio parte do nosso acordo contratual, de
que eu não me meteria, apenas gostaria de ver o resultado, o roteiro para aprovar,
porque podia ter alguma coisa inconveniente para mim. Mas não tinha. Não só não
tinha como eles foram extremamente decentes, inclusive muito generosos para com
essa minha postura de só escritor. Submeteram o script às minhas opiniões. Eu
dei opinião, fiz e aconteci.
Jorge Escosteguy: Pagaram os
direitos?
Fernando Sabino: Pagaram
direitinho. Há uma discrepância entre o que paga de sinal e o que depois você
tenta arrecadar da Embrafilme. Aí é outra desgraça, outro papo...
Ricardo Soares: É uma
novela.
Fernando Sabino: E a parte
fixa vai, mas a parte variável... Tem uma parte fixa e tem uma parte variável.
Só acabando a pergunta dele, o primeiro, que foi O grande mentecapto, teve uma fidelidade literal à obra original.
E o segundo, ele declaradamente, por necessidade de co-produção, que é uma
co-produção franco-brasileira. O Murilo Salles [(1950-), cineasta brasileiro,
diretor de fotografia e roteirista de filmes]. O primeiro foi o Oswaldo
Caldeira [(1943-), escritor e cineasta mineiro], admirável como diretor. O
segundo já me preveniu que a minha história ia servir apenas de trampolim, ia
ser meia hora de motivação para uma outra história. Ele até usou uma expressão
muito feliz na minha opinião: “Vou transformar um drama psicológico num drama
policial”. E foi o que ele fez.
Jorge Escosteguy: Cláudia,
por favor.
Cláudia Boyago: Fernando,
eu queria saber se você sente saudade de escrever para o jornal, e se tem
alguma coisa que você gostaria de fazer ainda que você não fez.
Fernando Sabino: Em jornal?
Cláudia Boyago: Não, como
escritor.
Fernando Sabino: Pensei que
você ia falar como homem, aí eu não ia poder contar.
Cláudia Boyago: Como
escritor, se você gostaria de ver alguma história sua de alguma forma?
Fernando Sabino: Do mundo de
intenções, o meu inferno literário está cheio. Você não faz idéia. Para cada
coisa que eu publico tem pelo menos dez que eu não publiquei. Você pode dar
essa proporção, um décimo do que eu escrevo é o que eu publico, literalmente.
Esse último livro que eu publiquei, que parece ao leitor mais apressado umas
crônicas de viagem, De cabeça para baixo, mas na
realidade eu levei quatro anos para fazer esse livro, note-se que a última
viagem é de 86, levei três anos para fazer o livro, e fiz seis versões
diferentes, 1400 páginas para apresentar 300. Quer dizer,
às vezes eu penso que eu não sou escritor, inventaram que eu sou escritor,
porque eu não tenho a menor facilidade de escrever. Agora, respondendo à
pergunta do jornal que ele também fez, que estava embutida na pergunta dele, o
que acontece comigo é que eu vivia na dependência de escrever toda semana – ele
deve saber o que é isso – eu me sentia como uma cozinheira que acabou de fazer
o jantar, servir o jantar, lava as panelas, guarda, e já tem que tirar tudo de
novo para fazer o almoço. E não pára nunca isso. Então eu estava feito um cano
furado, eu estava perdendo no cotidiano aquilo que podia ser aproveitado de
maneira mais essencial. Disso dependia e depende a minha subsistência
econômica. Eu levei um baque terrível parando de escrever porque mais da metade
do que me sustenta vinha do jornal. Eu distribuía, fazia e acontecia e me
exauria naquilo. Então de repente eu percebi que agora eu quero escrever o que
eu quiser, e não o que o jornal espera que eu escreva, compreende?
Jorge Escosteguy: Ruy Castro,
por favor.
Ruy Castro: Fernando, a
maioria do que você escreve, principalmente as crônicas, é muito confessional,
pelo menos você fez na primeira pessoa ou do singular ou do plural, quando você
bota a Lygia [Lygia Marina de Moraes, foi casada com Fernando Sabino, musa
inspiradora da música "Lígia" de Tom Jobim] nas histórias também. E
são todas histórias muito engraçadas, suponho que aconteceram com você, se você
não estiver mentindo, evidentemente. Então, quer dizer, pode-se concluir que a
sua vida é uma grande crônica do Fernando Sabino?
Fernando Sabino: Talvez. É
uma boa definição. Uma pequena crônica do Fernando Sabino, vamos ser mais
modestos. Mas reportando à mentira, deixa eu fazer um reparo aqui, que
inclusive está feito naquele meu livro Tabuleiro
de damas, que se chama assim, para quem leu ou chegou a me ouvir falar nisso,
porque eu já cansei de usar essa metáfora, é de que o tabuleiro de damas não é
nem preto com quadrados brancos nem branco com quadrados pretos, ele é de outra
cor com quadrados pretos e brancos. Esta outra cor é que simboliza o esforço do
escritor em ir buscar uma verdade que se esconde além da realidade. Não é uma
mentira. A realidade é que é mentira. Você vai buscar uma verdade que está só
no sonho, que está na fantasia, que está na imaginação criadora. Essa verdade,
às vezes, não bate com a realidade, essa verdade ultrapassa. E, às vezes, você
tem que realmente inventar para descobri-la. Então não é propriamente uma
mentira no sentido pejorativo, é uma liberdade poética, vamos dizer assim.
Agora, voltando à crônica, se é aquilo que aconteceu ou o que poderia ter
acontecido, e que se não aconteceu vai acontecer. É um pouco o prolongamento.
Porque a vida da gente, Ruy, é uma espécie de projeção na imaginação de tudo o
que você está pensando, existindo. Ele estava falando no cinema... Cada um tem
o seu... Você pergunta: “O personagem equivale ao personagem que você imaginou,
ele corresponde?” Falo “não, cada um que lê o livro projeta um filme na sua
imaginação”. Então a gente está sempre vivendo na cabeça um filme, está
projetando através da sua imaginação audiovisual uma história, um filme, uma
coisa, e isso é a crônica que a gente escreve.
Ruy Castro: Pois é, mas
pelo que eu conheço de você, eu acho que é verdade que você todo dia acha
dinheiro na rua, como disse várias vezes.
Fernando Sabino: Agora não é
vantagem mais. Agora, eu já achei dinheiro, depois que deixou de ser vantagem,
eu achei uma libra em Londres da última vez que eu estive lá, há dois meses,
uma libra, daquela douradinha, na rua, e achei lá no Canadá 25 cents, e o
canadense é pão-duro para burro, ele não joga dinheiro fora não. E eu achei num
momento em que estava precisando de 25 cents para pagar um pedágio, tinha que
ser trocado, e eu não tinha. E eu então falei: “eu vou dar um jeito”. A Lygia
estava desesperada, dirigindo. Tinha um funil para jogar moeda, e nós não
tínhamos a moeda, e tinha uma fila de mais de 100 carros atrás de nós. Eu
falei: “vou dar um jeito nisso”. Abri a porta, andei três passos e apanhei uma
moeda no chão, falei: “está aqui a moeda”. Deus existe, viu.
Ricardo Soares: Fernando, a
gente estava falando de cinema agora há pouco, e a pergunta do Caio e da
adaptação dos seus filmes, você tem uma experiência atrás das câmeras como
diretor na Bem-te-vi Filmes, quando você filmou um pouquinho da vida do Carlos
Drummond de Andrade [(1902-1987), poeta mineiro ícone do Modernismo
brasileiro], do Rubem Braga. Eu queria que você contasse
essa passagem, e se isso auxiliou o escritor Fernando Sabino. Eu queria que
você contasse.
Fernando Sabino: É verdade,
eu tive essa experiência, e não só essa como outra também na área comercial. Há
muito tempo que eu tinha experiência de fazer roteiros, fazer itinerários para
cinema, para tipos de filme assim do Jean Manzon [francês naturalizado
brasileiro, chegou ao Brasil em 1945, como fotógrafo da revista Paris-Match, e depois transferiu-se para O Cruzeiro, é também diretor de documentários, com mais
de 900 curta-metragens para o cinema], de Rosemberg [referência a um dos dois
cineastas brasileiros: Rosemberg Cariry e Luiz Rosemberg Filho], Carlos Niemeyer [(1920-1999), produtor brasileiro de
cinema, proprietário do Canal 100 que revolucionou o jornalismo cinematográfico
brasileiro], Canal 100 [programa de jornalismo cinematográfico que
exaltava fatos e paisagens brasileiras com imagens sensacionais, principalmente
sobre futebol, famoso nas décadas de 1960, 70 e início de 80, apresentado nas
salas de cinema antes da exibição do filme principal]. Eu e Paulo Mendes Campos [(1922-1991), escritor e jornalista
mineiro] ganhávamos a vida fazendo textos, e a gente tinha que falar
assim: “olha, pior do que isso eu não sei fazer, você me desculpe, vê se você
me ajuda”. Nós tínhamos uma lista de lugares-comuns para poder usar. Quando
você assistir um filme desses assim daquele tempo, que diz assim: “Rasgando
caminhos para o progresso”, fomos nós que fizemos, fui eu e o Paulinho. [risos]
Então era uma companhia de “fazeção” de textos. Nós fazíamos juntos. Depois
disso eu fiz com o Davi Neves [(1938-1994), cineasta
brasileiro], a Bem-te-vi Filmes, e com o Mair
Tavares [(1945-), diretor e montador cearense de peças para cinema e teatro],
e nós fizemos não só uma série de dez escritores brasileiros contemporâneos,
porque tinha vontade de preservar uma imagem do sujeito ao vivo, compreende? A
gente imaginava assim que o Machado
de Assis pudesse ser visto hoje conversando com a Carolina [mulher
de Machado de Assis],
indo para Academia [Brasileira de Letras], e andando em casa de suspensório e
de chinelo... Enfim, fizemos dez escritores, que você sabe. Carlos Drummond [de Andrade], Erico Verissimo [(1905-1975),
escritor gaúcho conhecido mundialmente por retratar magistralmente a maneira de
ser, pensar e sentir do brasileiro do extremo sul. Entre sua vasta obra,
destaca-se a triologia O
tempo e o vento], Vinicius [de Moraes
(1913-1980), poeta, compositor, intérprete e diplomata brasileiro], [Manuel]
Bandeira, são dez. E fizemos uma série de filmes, documentários sobre a
participação do Brasil em feiras internacionais só para pagar a nossa viagem.
Ricardo Soares: Que nota
você se daria como diretor de cinema, Fernando?
Fernando Sabino: Perdão.
Ricardo Soares: Que nota
você se daria como diretor de cinema?
Fernando Sabino: Olha aqui,
eu não sei dirigir ator, e eu não sou câmera porque eu não sei piscar o olho
direito, ou esquerdo, e todo visor de câmera fica do lado, eu tenho que tapar
um olho com a mão. De modo que nem diretor porque ator profissional eu não
saberia dirigir. Eu sou palpiteiro, sabe, e palpiteiro não tem nota nenhuma.
Jorge Escosteguy: Marcos
Faerman.
Marcos Faerman: Em 57, Carlos Lacerda [Carlos Lacerda (1914-1977), jornalista
e político brasileiro, foi fundador e proprietário do jornal Tribuna da Imprensa e ficou famoso como pivô do
atentado que provocou o suicídio de Getúlio Vargas de quem era ferrenho
opositor] escreveu uma crônica em sua homenagem, na qual disse que o senhor era
o único brasileiro conhecido em 500 anos deste nosso Brasil que tinha devolvido
um cartório para o governo. E ele fez essa homenagem assim num texto chamado O cartório ou a vida, e disse
que Fernando Sabino devolveu ao governo o cartório do qual era titular, e esse
é um gesto inédito na história da República..
Fernando Sabino: Como é que
você sabe disso? Você nem era nascido também.
Marcos Faerman: Rato de
arquivo de jornal. Então, como que é essa história do cartório do escritor?
Porque o senhor ficou falando em dinheiro, dinheiro, mas parece que o senhor
teve bastante dinheiro na mão e jogou pela janela, que era o cartório.
Fernando Sabino: Joguei pela
janela não.
Marcos Faerman: Como é a
história do cartório?
Fernando Sabino: É o
seguinte, é que assim como eu hoje cheguei à conclusão de que eu não passaria
dos 60 anos dependendo de escrever para jornal, eu cheguei à conclusão de que
eu não passaria dos 30 dependendo de um cargo público, ainda mais de um
cartório que me foi dado porque eu era casado com a filha do governador. Então
eu não fiz nada por merecer. Quando eu me separei dela, eu não tinha mais razão
de ter um cartório. [risos] Foi isso.
Sérgio Pinto de
Almeida: Fernando, eu queria mudar do cartório e da vida literária. Você disse
que tem vergonha do presidente recém-eleito. Eu queria saber como um
intelectual hoje, um escritor, um pensador como você, vê o Brasil.
Caio Fernando
Abreu: Só complementando, eu queria perguntar isso mesmo. Ele perguntou a você
se você sentia medo do Fernando Collor,
e você disse que não, que sentia vergonha. Eu também sinto muita vergonha. Eu
queria saber a sua opinião sobre ele, como é que viu esses cinco anos que nós
vamos ter que engolir, um cara que está dizendo que vai fechar o Ministério da
Cultura.
Marcos Faerman: Mas que lê
cinco livros por ano.
Mário Viana: Você sempre
se disse um otimista. Dá para continuar sendo otimista com todo esse panorama?
Fernando Sabino: Eu sou
otimista porque o otimista erra tanto quanto o pessimista, mas ele sofre muito
menos, [risos] ele só sofre uma vez, e o outro sofre duas, sofre antes e
depois. Respondendo à pergunta do Sérgio, o que eu acho é o seguinte. Eu parto
do princípio de que o brasileiro precisa um pouco de perder esse vício, esse
cacoete de transformar os políticos em líderes e esperar que eles desçam do céu
como um “fuhrer”, para resolver os problemas, de mitificar os nossos líderes,
de fazer deles salvadores da pátria. Eu acho que a democracia é um regime, a
democracia que eu ambiciono, a social democracia, o regime federativo, o
sufrágio universal, independência de poderes, liberdade de pensamento, essa
coisa toda que nós sabemos perfeitamente, e com justiça social, isso é inerente
ao sistema ideal que eu tenho como social democracia. Acho que então a
instituição tem que ser consolidada de tal maneira que quem quer que seja,
basta ser um homem de bem que chegue lá pelo voto, pelo sufrágio universal, há
de cumprir o seu dever e dançar de acordo com a música. É esse o ideal. Eu faço
uma rememoração rápida, posso cometer algum equívoco, mas pega um exemplo de
democracia presidencialista, eu sou parlamentarista, eu acho que seria a
solução para o Brasil como é para o resto do mundo, com exceção dos Estados
Unidos. Então peguemos os Estados Unidos. Estados Unidos teve, depois da Guerra
tinha... Durante a Guerra morre um grande estadista, reconhecidamente um grande
estadista, que era o Roosevelt [Franklin Delano Roosevelt (1882-1945) foi
presidente dos Estados Unidos de 1933
a 1945, por quatro mandatos], e assume um político de
segunda categoria, que era o Truman [Harry Salomon Truman (1884-1972), foi
presidente dos Estados Unidos de 1945
a 1953.]. E esse homem ganhou a Guerra também. Foi o
homem que teve a responsabilidade de soltar a bomba atômica. Depois disso, em
vez do Stevenson [Adlai Stevenson (1900-1965), estadista e político
norte-americano], que era um grande estadista a ser eleito, foi eleito o
Eisenhower [Dwight David Eisenhower (1890-1969), foi presidente dos Estados
Unidos entre 1953 e 1961 e comandante supremo das forças aliadas durante a
Segunda Guerra Mundial], que pode ser um grande general, mas era um sargentão
como político. No entanto teve dois mandatos e se saiu direitinho. E vai por aí
afora uma fileira de homens medíocres: o Johnson [Lyndon Baines Johnson
(1908-1973), assumiu o cargo de presidente dos Estados Unidos com o assassinato
de John Kennedy, e governou de 1963
a 1969], o Ford [Gerald Rudolph Ford Junior (1913-2006),
foi presidente dos Estados Unidos de 1974 a 1977], o Nixon [Richard Milhous Nixon
(1913-1994), foi presidente dos Estados Unidos de 1969 a 1974], que não dançou
de acordo com a música e “dançou”. E chegamos a esse cowboy chamado Reagan
[Ronald Wilson Reagan (1911-2004), ex-ator que foi presidente dos Estados
Unidos de 1981 a
1989], que saiu direito. Tudo muito bem. Com isso eu quero dizer, sem dar por
mérito esse pessoal, mas simplesmente reconhecendo que os regimes, que o
sistema está acima das pessoas, que nós teríamos aqui possibilidade de vir
amanhã a ter um regime consolidado através dessas instituições, que é a
Constituição, que é o regime federativo, e tudo mais. Então, o que acontece? Só
que você não transforma o Brasil numa Inglaterra ou numa Suíça da noite para o
dia. Isso leva tempo. A cada passo que a gente está indo nós estamos
conquistando terreno. Essas eleições foram muito boas, eu achei excelente. Não
podia ser melhor. Não tem ninguém melhor. Quer dizer, o povo não escolheu
ninguém melhor. Vamos reconhecer que o povo é que escolheu. Está certo? Com
todos os erros. A próxima eleição vai ser melhor. O ano que vem nós vamos ter
boas surpresas porque vai haver renovação do Congresso, vai haver uma oposição
consolidada em torno de princípios mais ou menos efetivos, e que vão exercer
esses princípios para coibir os desmandos do poder, compreende? Então tudo isso
vai estar funcionando. É que nós estamos mergulhados muito dentro da lama para
poder ver, ter perspectiva, mas qual o país da América Latina que chegou a esse
ponto? Nós estamos melhores do que todos eles.
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