Nos
últimos domingos o Outros 300 tem postado várias entrevistas ocorridas
no programa Roda Viva da TV Cultura. Hoje, um dos grandes da literatura
nacional, e grande ídolo meu, Fernando Sabino é o entrevistado. Ele
falará, claro, sobre literatura, mas também sobre sociedade, política,
vida, amores... Confira a segunda parte, pois é uma grande entrevista, vale a pena acompanhá-la.
Link da primeira parte da entrevista abaixo:
http://outros300.blogspot.com.br/2012/11/entrevista-fernando-sabino.html
25/12/1989
O escritor diz que, infelizmente, a crônica literária vem
perdendo lugar no jornalismo, foi subjugada pela ditadura da comunicação que se
sobrepõe à expressão da imaginação criadora.
[intervalo]
Jorge Escosteguy: Vou só
fazer uma advertência aos telespectadores, que ninguém jogou água no Fernando,
ele simplesmente estava suando e tirou o casaco no intervalo.
Fernando Sabino: Os
telespectadores que tiverem a paciência de assistir a primeira parte, devem ter
notado que começou o strip-tease [risos], a chamada “síndrome do homem
nu”. Se tiver mais um segmento, eu acabo pelado, hein. [risos]
Jorge Escosteguy: Não, este é
o último. Nós falávamos antes do intervalo sobre o novo presidente da República
e você falou que tinha vergonha, não tinha medo, tinha vergonha. O Caio lembrou
isso. Agora, esse cidadão foi eleito por mais de 30 milhões de brasileiros. Ou
seja, fomos democraticamente às urnas, em dois turnos, deram-lhe 20 milhões de
votos. Você tem vergonha do povo brasileiro?
Fernando Sabino: Não,
vergonha do povo brasileiro, não. Vergonha de uma eleição que elege uma pessoa
incompetente. Agora, como eu estava sustentando que nós não devemos buscar a
mitificação dos nossos dirigentes e sim aceitá-los como pessoas normais e
capazes de, com boas intenções, cumprir o seu papel, vamos esperar que ele
cumpra o seu, e fiscalizado pela oposição.
Marcos Faerman: Qual é o
político brasileiro, ao longo da sua trajetória, porque o senhor teve contato,
por exemplo, com o Juarez Távora, que era aquele general de queixo austero, que
dava socos na mesa, que tinha uma síndrome de general espartano, agora temos o
outro que dá soco na mesa também, mas qual é o político brasileiro que o
senhor, ao longo da sua trajetória, a figura que lhe parece a melhor?
Fernando Sabino: A diferença
entre o Juarez Távora é que ele com justas razões dava soco na mesa, e este
[referindo-se ao presidente de então, Fernando Collor de Mello] dá soco no ar, não dá
soco em nada. Ao
passo que eu acho que poderia ter sido uma grande experiência para o Brasil ter
tido o Juarez Távora como presidente da República, porque era a grande
oportunidade do Brasil digerir as suas Forças Armadas, que saísse na urina.
Jorge Escosteguy: Ter um
general eleito?
Fernando Sabino: Um general
eleito, um general mais democrata do que qualquer outro, mais civil do que
qualquer outro, com teses absolutamente avançadas para o tempo; era um homem
que defendia a reforma agrária, o municipalismo, a participação dos operários
no lucro das empresas, e por aí vai, e com convicção absoluta, ninguém brincava
em serviço com ele não. Mas eu te digo quem foi o grande político com quem eu
tive a felicidade de conviver até pessoalmente, que foi o Milton [Soares]
Campos [1900-1972), político, professor, jornalista e advogado brasileiro.].
Milton Campos foi realmente uma figura extraordinária de humanista e de
político, mas ele era um cético. Quando ele foi eleito governador de Minas, eu
me lembro que durante a campanha, dizia assim: “você sabe que eu estou com
medo, quer dizer, “com medo” [reformulando], eu estou com esperança de ganhar”.
E quando ele ganhou e eu fui visitá-lo, ele me disse assim: “Fernando, o bom é
ser da oposição para poder falar mal do governo, eu estou louco para falar mal
do meu governo e não posso porque o meu governo sou eu próprio”. Quer dizer, é
até incompatível com o exercício do poder, com a dimensão extraordinária de
homem público como tinha o Milton Campos. E, como eu volto a dizer, eu acho que
a democracia é o regime dos homens meiões, dos homens médios, sem nada de
extraordinário, que apenas cumpram o seu papel e o seu dever, já nos damos por
muito satisfeitos.
Jorge Escosteguy: Mário
Viana, por favor.
Mário Viana: Fernando,
nos planos do novo presidente está a extinção do Ministério da Cultura. O que o
senhor acha disso, vai prejudicar muito ou não?
Fernando Sabino: Olha, eu
tenho a opinião pessoal, inclusive pode até se chocar com a dos meus confrades,
meus amigos, até o José Aparecido de Oliveira
[(1929-2007), foi ministro da Cultura de 1988 a 1990], que é um grande amigo meu,
independente da atuação que ele tenha ou deixe de ter na política brasileira.
Eu acho que quanto menos o Estado se meter com cultura é melhor. Essa é a minha
tese, a minha posição. Eu acho que o Estado tem que criar condições para que a
cultura floresça por si mesma, e não dirigi-la, orientá-la e capitalizá-la. Eu
dou um exemplo. Toda vez que o Estado se meteu na indústria do livro, que é o
meu campo particular, o campo literário, e até editor eu já fui, deu-se mal, e
a literatura se deu muito mal. Então, o que é que o governo pode fazer? Pode
melhorar a indústria do papel, e isso vai beneficiar a indústria do livro no
Brasil, e a sua comercialização e o seu florescimento. Agora, meter-se a
editar? Não. Então a cultura que cuide de si própria. Se o governo conseguir
estabelecer um regime que seja democrático e com justiça social, ele está
fazendo a cultura brasileira.
Jorge Escosteguy: Você, como
editor, não fez co-edições com o INL, essas
coisas?
Fernando Sabino: Não.
Jorge Escosteguy: A sua
editora não deixava fazer?
Fernando Sabino: Co-edições
com o governo?
Jorge Escosteguy: Com o INL,
Instituto Nacional do Livro, etc?
Fernando Sabino: Não, nunca
fiz não. Não fiz porque eles não aceitaram. Eu faria sim, por que não? Eu
também sou brasileiro.
Sérgio Pinto de
Almeida: Fernando, um dos seus maiores amigos, e faz parte do grupo mineiro,
etc, é o Otto Lara Resende [(1922-1992), cronista,
contista e jornalista mineiro], de quem se diz que é um escritor dos
artigos do nosso companheiro, jornalista Roberto
Marinho [(1904-2003), jornalista e empresário, presidente das Organizações
Globo]. Se diz que ele quem escreve aqueles comentários.
Fernando Sabino: Quais
artigos? Eu nunca soube que o Roberto Marinho escrevesse artigos.
Sérgio Pinto de
Almeida: Assina pelo menos. Até a "Carta ao
Companheiro Lula". Agora, por outro lado, o outro mineiro que também fez
parte do grupo foi o Hélio Pellegrino, a meu ver, um excepcional
intelectual, que era declaradamente militante do PT. Eu queria saber, juntando
um pouco a política e tendo como pano de fundo esses encontros literários,
havia ou há muita desavença? Você patrulhou, você cobrou do Otto Lara essa
ajuda? Você, como é que ficou? O Otto Lara escreveu ou não escreveu esses
comentários do nosso companheiro jornalista, Roberto Marinho?
Fernando Sabino: Jamais ele
poderia fazer isso. Seria uma injustiça para com o Otto, ele mal consegue
escrever os artigos dele e ainda vai escrever para os outros?
Sérgio Pinto de
Almeida: De onde vem essa história?
Fernando Sabino: Jamais...
Porque ele, o Otto, se ele estivesse aqui presente, em dois programas deste iam
dizer que ele é que estava inspirando o programa, que ele é que estava
orientando, que ele é que tinha sugerido essa pergunta para você, porque ele é
muito influente, é muito insinuante, tem uma conversa, leva todo mundo na
lábia, ele é irresistível. Inclusive ele leu esse último livro que eu
publiquei, porque ele é personagem do livro, e fez notas tão implicantes, tão
ranhetas... Ele fez questão de transcrever algumas. Notas assim, por exemplo,
eu dizia, na minha viagem: “ai, meu Deus, que falta faz um dicionário”. Então
ele bota uma notinha assim: “Realmente, talvez temendo excesso de peso, você
viajou com muito pouca bagagem vocabular”. [risos] Ele é incrível, é
irresistível, a ponto do Jânio
Quadros, quando era presidente da República, mandar chamá-lo porque
não o conhecia direito, mandou chamá-lo e falou assim: “Eu quero que você venha
aqui”. “Fazer o quê, presidente?” “Bater papo, só bater papo, você vai ficar
comigo aqui para bater papo”.
Sérgio Pinto de
Almeida: O que ele faz afinal na Globo?
Fernando Sabino: Porque ele
é irresistível. Então, o que quer que seja de lendário corre a respeito do
Otto. Mas eu jamais acreditaria que o Otto seria capaz de escrever o que quer
que seja para o Roberto Marinho. Primeiro, porque os dois são absolutamente
incompatíveis, vivem feito cão e gato. O Roberto Marinho se suicidaria antes de
pedir ao Otto que escrevesse alguma coisa para ele porque ele se consideraria
diminuído, porque ele acha que é muito mais intelectual do que o Otto. Ele acha
uma injustiça o Otto estar na Academia Brasileira de Letras porque ele é que
devia estar. Isso eu imagino, ele nunca me falou não. Inclusive eu não tenho o
menor convívio com o Roberto Marinho para estar falando isso aí, mas eu presumo
que seja assim pelo lado que eu conheço do Otto. E o Otto foi durante muito
tempo das Organizações Globo, mas foi funcionário das Organizações Globo.
Agora, e ele não sai de lá, ele é o último a sair, fica batendo papo na rua, na
esquina, em qualquer lugar. Então a presença do Otto é uma coisa assim que se
insinua em tudo o que existe. Ele já foi demitido há muito tempo das
Organizações Globo e ninguém acredita.
Marcos Faerman: Ninguém tem
coragem de falar isso para ele?
Fernando Sabino: Ele foi
demitido e depois o Roberto Marinho se arrependeu e chamou-o de volta e ele não
quis. Inclusive o Otto é um homem que tem uma dignidade intelectual da maior
bravura, e ele ficaria irritadíssimo se soubesse que jamais de longe se
insinuou essa pergunta que você fez. Até ele vai ver essa parte deste programa,
quando ele ouvir, e ele vai querer me matar, falar: “Você deveria ter voado nas
barbas daquele sujeito”.
Marcos Faerman: Lá no
começo dos anos 40, Fernando, o Paulo Mendes Campos, o Carlos Castelo Branco
[(1920-1993), jornalista, contista e romancista piauiense], que é o belíssimo
escritor de coisas políticas, o Otto Lara, o Hélio Pellegrino, vocês se
encontram em Belo
Horizonte. Como é que é Belo Horizonte lá no começo dos anos
40, quando vocês formam uma turma? Como era a turma de vocês, que lugares
freqüentavam, como era esse mundinho de Belo Horizonte? E depois vocês vão para
o Rio de Janeiro, como que é o Rio daquele período?
Fernando Sabino: Isso eu
posso até fazer uma observação curiosa, inclusive respondendo a parte...
Marcos Faerman: Porque
vocês têm um grau de afeto entre vocês. O Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino,
o Otto...
Fernando Sabino: É parte da
pergunta do Sérgio, não é, Sérgio? Você falou no Otto. O Otto eu já disse o que
é. O Otto é essa alma barroca, é um homem incapaz de dizer não, e que fica com
complexo de culpa por causa disso, e ao mesmo tempo tem uma bravura, uma
indignação por esse tipo de coisa. É muito engraçado, e a gente mexe muito com
ele por causa disso. É uma criatura encantadora.
Sérgio Pinto de
Almeida: O Hélio mexia com ele ou não?
Fernando Sabino: Muito. Mas
o tempo todo. E nós todos passando trote, chateando. Ele é um pouco vítima de
brincadeira, mas às vezes ele se indigna, dá uns repelões e nos bota no nosso
lugar. Mas é um convívio que vem, que a única coisa que dignifica e dá força,
dá grandeza a esse convívio, é que ele dura há mais de 50 anos, e é um convívio
praticamente diário, inclusive com o Hélio que morreu, mas continua nos
visitando, chateando, dizendo bobagem, isso é diário. Então o que faz com que
isso seja um verdadeiro patrimônio afetivo, intelectual, moral, que eu levo na
minha vida, é a amizade com essa gente. Isso é fundamental para mim e é
definitivo. Agora, é um convívio, tirante essa duração ao longo do tempo, é o
mesmo que você teve com os seus amigos, você tem e teve com os seus amigos,
apenas a vida os dispersou - fatalmente isso acontece - e conosco não. Embora
nós sejamos completamente distintos uns dos outros em matéria de personalidade,
há um paixão comum que nos ligava, que é a literatura. E houve um fenômeno
curioso, tirante o Hélio, que veio um pouco depois e que se tornou psicanalista
para curar o seu próprio caso - porque ele era o principal cliente de si mesmo,
que era poeta e foi jornalista - nós, Paulo, Otto, Castelo e eu, tínhamos como
paixão a literatura, e nos sustentávamos através do jornalismo. Então Paulo e
eu espontaneamente optamos para que o jornalismo não nos prejudicasse, de
preferência só fazer matéria pessoal, assinada sempre, crônica, reportagem, e
fugir do que quer que fosse de editorial, de cozinha de jornal, de diagramação,
fugir da vida do jornal e manter o mínimo de qualidade literária que
justificasse a gente assinar o nosso nome. Já o Otto e o Castelo preferiram
outro caminho também para preservar a sua literatura, porque ambos eram
escritores, contistas, romancistas e tal, fazer só jornalismo impessoal, fazer
editoriais, diagramar primeira página, orientar, ser editor-chefe, enfim,
trabalhar no jornal e preservar a sua literatura. Eu não sei quem deu certo,
quem não deu. Agora, acontece um fenômeno curioso. Reconhecidamente o Carlos
Castelo Branco como o Otto Lara Resende, dois dos maiores jornalistas
brasileiros...
Sérgio Pinto de
Almeida: Que escrevem muito bem.
Fernando Sabino: Todos os
dois estão na academia. Isso é que é engraçado, eles é que se tornaram
acadêmicos.
Sérgio Pinto de
Almeida: O [José] Sarney [(1930-), político maranhense, tornou-se presidente do
Brasil em 1985, após a morte de Tancredo Neves, de quem era candidato a
vice-presidente] também está.
Fernando Sabino: Mas eu
estou falando de nós quatro.
Ricardo Soares: E qual é a
sua opinião sobre a Academia Brasileira de Letras, hein, Fernando?
Fernando Sabino: Olha, eu já
disse e repito que eu jamais entraria para um lugar que você sai em posição
horizontal. [risos]
Fernando Sabino: Eu não
tenho condição de estar... Saber que eu não posso sair... Não adianta.
Jorge Escosteguy: Você
mencionou o José Sarney. Você leu Os
marimbondos de fogo [livro de autoria de José
Sarney] ou não?
Fernando Sabino: Não, não
tive o prazer, procurei em todas as livrarias, mas não encontrei, e ele não me
mandou, de modo que eu não tive esse prazer.
Mário Viana: Fernando,
hoje em dia fazer vídeo é uma senha para se arrumar namorada. Antigamente ser
escritor tinha um charme especial, vocês eram muito namoradores, a gangue dos
mineiros, dos quatro mineiros?
Fernando Sabino: Aonde é que
você quer chegar com isso, hein?
Mário Viana: Nos anos 40 a 50.
Fernando Sabino: Como é o
negócio?
Mário Viana: Era uma
senha para se arrumar namorada? Tinha um certo charme?
Fernando Sabino: Do quê?
Escrever? Não. Isso até afastava. Olha aqui, eu tenho uma grande admiração,
conforme sabe o meu querido amigo Ruy Castro, por um saxofonista chamado Lester Young. E Lester Young começou como baterista.
E preveniu aos bateristas, inclusive a mim, porque ele trocou a bateria pelo
saxofone porque a bateria levava muito tempo para desmontar, e quando acabava
de desmontar, as mulheres todas tinham ido embora com os outros músicos.
[risos] E literatura era a mesma coisa. Quando a gente parava de fazer
literatura, as meninas já tinham ido com outros caras.
Ricardo Soares: Mas você
era um nadador.
Fernando Sabino: A
literatura nunca me deu nada não.
Ricardo Soares: E o nadador?
Você confessa em suas crônicas que você é um campeão olímpico...
Fernando Sabino: Também está
dentro da síndrome de Lester Young. Também, enquanto está lá dentro da piscina,
está outro cara com a sua namorada lá fora... Não dá certo.
Jorge Escosteguy: E a sua
preferência por bateria. Você, antes do programa, estava comentando com o Ruy
que andou dando alguns shows pela noite de São Paulo como baterista. Como é que
é isso?
Fernando Sabino: Depois do
quinto uísque, eu toco qualquer negócio. Mas acontece que o quê está mais
acessível é a bateria.
Jorge Escosteguy: Por que
essa sua paixão pela bateria? Você estudou? Você tem uma bateria em casa?
Fernando Sabino: Não, a
única lembrança que eu tenho é que quando eu era escoteiro, eu gostava de tocar tarol, eu era da banda de tambores. E depois
eu comprei uma bateria, quando eu tinha uns quinze anos, e essa bateria me
acompanhou durante uns dez anos. E meu pai ficava alucinado, falava: “Meu
filho, às três horas da madrugada não, não é possível”. Então eu levei a
bateria depois que eu me casei, levei ela para o Rio comigo, mas um dia, quando
eu fui a Los Angeles pela primeira vez, eu conheci um brasileiro numa roda, que
estava contando: “ah, você gosta de bateria? Pois eu morava no Rio de Janeiro
num apartamento que tinha um sujeito que tocava bateria, esse sujeito era tão
diabólico que eu me mudei do Brasil por causa dele”. Falei: “onde é que você
morava?” E ele aí deu o meu endereço. [risos]
Jorge Escosteguy: Ele morava
no seu prédio.
Fernando Sabino: Eu fiquei
firme. Quando voltei para cá, para o Brasil, eu dei a minha bateria para o Dom Helder Câmara [(1909-1999), arcebispo emérito de Olinda
e Recife], não para ele tocar, evidentemente... [risos]
Ricardo Soares: Por que a
bateria para o Dom Helder?
Fernando Sabino: Não para
ele tocar não. Dei para a Feira da Providência
[feira que acontece desde 1960 na cidade do Rio de Janeiro, onde ocorre a venda
de diversos tipos de produtos, tais como utilidades domésticas, alimentos,
artesanato, etc]. [risos]
Fernando Sabino: Eu tenho a
impressão de que ele achou que fosse bateria de cozinha. Eu liguei para ele e
falei: “eu tenho uma bateria, o senhor aceita?” Ele disse: “Aceito”.
Jorge Escosteguy: Você não
tem bateria, você não ensaia, não estuda, não toca nada?
Fernando Sabino: Não, mas
toco em qualquer lugar, de cabeça.
Caio Fernando
Abreu: Fernando, você já fez várias referências à música, você adora música. E
você tem uma filha que é uma excelente cantora, a Verônica Sabino, uma cantora
ótima. Você interferiu no destino da Verônica como cantora?
Fernando Sabino: Fazendo-a,
fazendo-a. [risos]
Caio Fernando
Abreu: Além de fazê-la. Fazer a cabeça dela?
Fernando Sabino: Como diria
o Lula, foi um ato de amor. [risos]
Caio Fernando
Abreu: E fazendo a cabeça dela também?
Fernando Sabino: Não, não. A
única coisa que nós tivemos foi que quando ela, desde menina ela cantava, e ela
fez um grupo, um grupo de músicos jovens, muito jovens, mas todos muito sérios,
basta dizer que tinha três maestros. Aí ela fez um conjunto que se chamava...
Falei: “minha filha, como é que chama mesmo esse conjunto seu?” Ela falou:
“chama Desbundeto” Eu falei: “então não dá, eu ia te ajudar, mas com esse nome
não é possível”. Falou: “Por que não é possível?” Falei: “porque ninguém vai
levar a sério um conjunto musical chamado ‘Desbundeto’”. “Ah, papai, você que
não sabe, tem nomes muito piores”. Falei: “mas esse não vai”. Aí ela chegou e
me disse: “olha, nós vamos mudar o nome do conjunto para nos
profissionalizarmos, você tem alguma sugestão?” Falei “tenho”. Falei assim:
“Acalanto”. Ela falou: “Ah, que é isso? Acalanto, que coisa mais feia”...
“Feia? Uma palavra linda”. Aí ela foi, voltou, falou: “Olha, nós discutimos,
fizemos uma votação e conseguimos um título que você vai gostar”. Falei: “como
é que é?” Ela falou: “Céu da Boca”. “Ah, Céu da Boca... tem algum dentista aí,
não?” Aí ela disse assim: “mas por quê?” Falei: “por que você não põe logo
Peito do pé, Barriga da perna. Céu da Boca... Por que Céu da Boca?” – “Porque é
uma coisa celestial e não sai da boca”. Falei: “ah, está certo”. Aí eu disse
assim: “dá um abraço para os seus coregas” [risos] Corega é um pó que você põe
na chapa [prótese dentária]... Mas Céu da Boca ficou sendo, e foi um grande
sucesso, absolutamente admirável. Aí eu passei a sofrer do mesmo problema que o
Sérgio Buarque de Holanda [(1902-1982), jornalista,
sociólogo, historiador, e pai do cantor e compositor Chico Buarque de Holanda],
porque ele passou a ser o pai do Chico, e eu passei a ser o pai da
Verônica.
Jorge Escosteguy: Ruy Castro,
por favor.
Ruy Castro: Eu queria
dar um depoimento, Fernando Sabino, você vai desmentir por modéstia, a respeito
da grande contribuição dele à música internacional, de certa maneira. Foi um
episódio que aconteceu em novembro de 62, em que o Tom
Jobim [(1927-1994), compositor, maestro, pianista, cantor e arranjador carioca,
é considerado um dos maiores expoentes da música brasileira e um dos criadores
do movimento da bossa nova
- ver entrevista Roda Viva com Tom Jobim], junto com
outros brasileiros, ia embarcar para Nova Iorque para tocar no concerto do Carnegie Hall [ocasião em que a bossa nova foi apresentada oficialmente
aos norte-americanos]. E o Tom Jobim tinha 36 anos, e praticamente nunca
tinha saído do Brasil na vida, devia ter andado de avião uma ou duas vezes, se
tanto, simplesmente, na última hora de embarcar, em casa, decidiu que não ia,
simplesmente. E o Fernando Sabino foi visitá-lo para se despedir dele. O Tom
disse que não ia, que o avião ia cair, etc e tal, e o Fernando Sabino obrigou
ele a fazer a mala e o botou dentro do avião. E no Carnegie Hall, o Tom Jobim
foi o maior sucesso internacional...
Fernando Sabino: Foi
verdade.
Ruy Castro: E o mundo
deve, de certa maneira, ao Fernando Sabino o Tom Jobim...
Fernando Sabino: Pelo menos
o Tom. O mundo eu não sei. Mas o Tom, inclusive eu me lembro que três vezes ele
foi... Era um táxi que estava esperando para levar no aeroporto. Tirava a mala
do táxi e botava, falava: “Esse avião vai cair”. Eu falei assim: “este avião
não vai cair”. Ele falou assim: “Você jura?” Falei: “juro”. “Você jura que não
vai cair?” Falei: “juro”. “Eu posso ir?” “Pode”. Aí ele entrava no táxi e
tornava a sair. E eu me lembro que eu fui mais longe. Falei: “Tom, você vai ser
o “golden boy” do Brasil, você vai ser o homem
querido da América, você vai cantar com Frank Sinatra
[(1915-1998), cantor e ator norte-americano, considerado um dos maiores
intérpretes da música no século XX]”. Eu previ isso tudo e deu tudo
certo. “Você vai tomar o mundo de assalto com a sua ida lá”. Ele falou: “Mas e
esse pessoal que já foi?” Falei: “mas esse pessoal já foi, você não tem nada
com isso”. E ele foi. E até hoje ele se lembra disso. Mas é evidente que ele
deve a ele próprio, não a mim, lógico.
Marcos Faerman: Agora, você
deu uma entrevista uma vez falando sobre bateria e sobre mentira, em que você
disse que era pequenininho e a sua irmã tocava piano...
Fernando Sabino: É verdade,
tinha me esquecido disso.
Marcos Faerman: E você
ficava...
Fernando Sabino: Isso é
verdade. Eu era menino mesmo. Inclusive eu batia naquele lugarzinho, naquela
tabuinha de segurar música, e o piano ficou todo marcadinho ali. O meu pai
tocava piano também, e eu acompanhava tamborilando.
Marcos Faerman: Falando em
pai, eu fiquei muito comovido, porque eu acho que pai é uma coisa maravilhosa,
e você...
Fernando Sabino: Pai só tem
um.
Marcos Faerman: Você muitas
vezes fez referência à sua família, que era uma família em que havia...
Fernando Sabino: Que bom
você falar isso, porque eu gostaria demais, e hoje eu vim pensando nisso, que
uma coisa que eu gostaria...
Marcos Faerman: Porque era
uma coisa muito amorosa a sua família.
Fernando Sabino: Eu falei
que eu gostaria muito que me dessem alguma oportunidade de falar no meu pai,
porque é uma coisa tão grata para mim, foi tão bom, eu agradeço você ter se
lembrado disso. Porque o meu pai era um homem modesto não só de posses como de
cultura também, era um homem muito modesto mesmo, mas ele tinha uma espécie de
sabedoria doméstica, vamos dizer assim, que era um filósofo doméstico, a tal
ponto aquilo chegou que começou pessoas a irem procurá-lo para pedir conselhos.
Ora um sujeito que deu desfalque, ora um outro que queria se suicidar, o outro
que se separou da mulher, o próprio governador Benedito
Valadares [(1892-1973), político mineiro, governou o estado de Minas Gerais de 1933 a 1945], sem o
conhecer, sem nada, mandou o oficial de gabinete dele lá em casa mais de uma
vez para pedir um conselho, uma orientação. O meu pai tinha um escritorinho no
porão, e aquilo virou uma romaria. Entravam e saíam pessoas que ele não sabia
quem era para pedir uma sugestão, e tal. E ele tinha uma espécie de sabedoria
familiar muito boa. Eu me lembro de coisas que ele dizia assim, por exemplo,
quando ele me via muito nervoso, falava: “Meu filho, as coisas são como são e
não como deviam ser; perfeito só Deus, e esse mesmo, olhe lá. Mais de 50% já
está muito bom. Agora, se você chegar a 80% de perfeição, já está fantástico, de
modo que já está muito bom assim como está”. E dizia: “No fim dá tudo certo; se
não deu é porque ainda não chegou no fim”. E a base desse tipo de filosofia de
vida, eu fui recolhendo assim, umas inspiradas por ele e outras que ele diria.
A última que me veio... A penúltima foi de minha mulher, Lygia, que de repente
disse um dia assim: “Você quer saber de uma coisa? Para começo de conversa,
nada tira o meu bom humor, está bom?” Então ele adotou isso como lema, e eu
também. Então quando tem que enfrentar uma situação chata, difícil, alguém que
pode me tocar fundo, eu falo: “olha, vamos partir do princípio de que você não
vai tirar o meu bom humor”. Mas eu fui muito além disso, porque há pouco tempo
eu fui entrevistado por uma moça e ela me perguntou: “Você é sempre assim? Você
é uma pessoa descontraída e alegre?” Eu disse: “eu não sou alegre, não. De vez
em quando, como a minha cozinheira dizia, eu falava: “você fica rindo” - era
uma crioula gorda – satisfeita, né”. Ela falava: “Eu? Quando acabar de servir a
janta, eu vou lá para o quarto abrir o bocão”.
Ricardo Soares: Mas tem
alguma situação específica?
Fernando Sabino: Mas a
última que eu aprendi realmente, essa eu quero levar até o túmulo, e foi uma
moça que falou, e é verdade, “é preciso que a gente não perca a capacidade de
rir da gente mesmo”. Isso eu acho extraordinário, eu quero não perder a
capacidade de rir de mim mesmo.
Jorge Escosteguy: Cláudia.
Cláudia Boyago: Fernando,
eu queria que você contasse para a gente qual é a coisa da sua vida que te dá
mais prazer. E você disse que perdeu o medo de avião. Você ainda tem algum
medo?
Fernando Sabino: Medo?
Cláudia Boyago: De alguma
coisa.
Fernando Sabino: Todos. Eu
não posso assistir filme de terror de noite porque eu fico apavorado, eu fecho
a porta, rezo. Tenho medo de barata, tenho medo de tudo, mas principalmente de
coisas sobrenaturais. Eu invoco Deus toda hora. Porque o demônio existe. Você
sabe disso, ou não?
Cláudia Boyago: Acho que
sim.
Fernando Sabino: Está bom.
Eu sou sujeito a todos os medos. Agora, esses medinhos assim de avião, essas
bobagens eu já superei, porque, como eu te disse, eu sou meio mentecapto, eu
estou um pouco acima desses medos. Eu atravesso a rua em sinal fechado. Eu já
fui assaltado por um sujeito que me chegou um revólver na nuca, e eu comecei a
rir. E a minha mulher ficou enlouquecida, ela abriu a porta e foi parar a cinco
metros. Estava dentro de um carro. E eu comecei a achar graça naquilo, mas uma
graça de maluco.
Ricardo Soares: Fernando,
falando em mentecapto, o Geraldo Viramundo
[personagem principal de O
grande mentecapto] é a mais
completa tradução do seu bom humor. E quem é Geraldo Viramundo? É uma mistura
de uma série de personagens?
Fernando Sabino: É uma
mistura de uma série de personagens sim e que tem condimento de todo mundo. Tem
desde Dom Quixote [referência ao personagem
principal do livro El ingenioso hidalgo Don
Quijote de la Mancha, de 1605,
do escritor espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616), um dos livros
mais famosos da história, cujos personagens principais, um cavaleiro andante
que vivia num mundo de sonhos e seu fiel escudeiro - Sancho Pança - caminhando
à procura de aventuras, defendendo donzelas e atacando inimigos imaginários,
"fazem parte da memória da humanidade", como disse Jorge Luis Borges] , a Chaplin [(1889-1977), famoso ator, diretor e
produtor do início do cinema hollywoodiano, criador do personagem conhecido
como Carlitos no Brasil], a Hamlet [referência ao
famoso personagem da peça de William Shakespeare: A tragédia de Hamlet, príncipe da dinamarca].
Ricardo Soares: Deve ter
muito amigo teu no meio.
Fernando Sabino: Tem, tem
Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, Vinicius de
Moraes, tem Jayme
Ovalle. Um tipo popular que tinha em Belo Horizonte, chamado
Geraldo Boi, que foi mais ou menos o protótipo, o arquétipo, vamos dizer assim,
desse personagem, que era um seminarista, e que nós convivíamos muito com ele.
E eu, principalmente, porque eu sou, realmente foi a maneira que eu tive de
suplantar o doido que tenho dentro de mim, foi escrevendo esse livro. Eu acho
que eu me curei bastante, melhorei pelo menos.
Jorge Escosteguy: Osmar, a
sua pergunta, por favor.
Osmar Freitas: A respeito,
exatamente sobre isso. Você citou uma série de escritores, duas gerações
praticamente de escritores. Então Minas deu na década de 40 uma série de
escritores, década de 50, década de 60, até década de 70, ainda tem aqui grupos
inteiros que foram para o Rio de Janeiro, vieram para São Paulo, permaneceram
em Minas, fizeram contos, fizeram livros, tal, mas na década de 80 de repente
desapareceu isso. O que está acontecendo com Minas Gerais hoje?
Fernando Sabino: Eu acho que
não é com Minas Gerais não, é com o mundo. Eu acho que, como em Minas Gerais,
acontece na Inglaterra também, que você podia na década de 50, 60, até por
ali... De repente o mundo mudou muito. Houve um momento, houve um dia, eu tenho
a impressão de que foi um dia assim, 4 de abril de 1963: você abriu a janela e
o mundo tinha mudado. O advento de várias coisas. Por exemplo, começou com o
Vigésimo Congresso, ainda em 55.
Osmar Freitas: Seis.
Fernando Sabino: Depois teve
o Conselho Ecumênico, 63... De repente vieram os Beatles [banda de rock formada com quatro integrantes: John Lennon
(guitarra e vocal), Paul McCartney (baixo e vocal), George Harrison (guitarra e
vocal) e Ringo Starr (bateria e vocal) em Liverpool, Inglaterra, na década de
1960. Fez muito sucesso e é referência musical no mundo todo até hoje],
de repente veio um outro conceito de arte, morreram os monstros sagrados. Quer
dizer, para cada monstro sagrado da pintura, um Picasso [um dos mais famosos
pintores do século XX] que morreu, surgiram milhares de pequenos grandes
artistas, surgiram milhares de contistas. Depois daquela grande geração de grandes
escritores americanos surgiu uma proliferação de pequenos grandes escritores.
Isso aconteceu na música, aconteceu em tudo. A música, talvez um pouco menos, porque é
menos verbal...
Marcos Faerman: Você está
sendo pessimista agora.
Fernando Sabino: Não,
pessimista não. Eu estou dizendo que há um novo conceito de arte. Inclusive a
literatura deixou de existir como uma atividade sagrada. A sacralização... A
dessacralização da literatura se deu nesse período desses últimos 20 anos de
uma maneira total. Eu tive com o Octavio Paz [(1914-1998), escritor e diplomata
mexicano] um encontro, porque eu fui fazer uma reportagem com ele há coisa de
uns 10 anos atrás na casa dele, no México, e começamos a conversar sobre
literatura. Ele ia me atender 15 minutos, e ficamos quase três horas batendo
papo, porque nós falávamos nomes e ríamos. “Você se lembra?” Ele disse: “De
quem?” “De José Sales, Luis Felipe?” “Lembro” “Você se lembra de fulano?” E
Maritain [Jacques Maritain (1882-1973), filósofo francês de orientação católica]
e não sei mais quem... Só dos franceses, depois passamos para os ingleses. E de
repente nós começamos a rir porque descobrimos que nós parecíamos dois meninos
trocando figurinhas. “Você tem essa aqui?” “Não, essa eu não tenho”. E de
repente percebemos que nós éramos dois seres de uma raça, últimos remanescentes
de uma raça em extinção, que é o homem de letras, um sujeito que pretende viver
num mundo quase alienado, que é o mundo da literatura. Era o nosso mundo. Hoje
a coisa melhorou muito, aumentou muito com o advento dos novos meios de
comunicação. Mas está acontecendo aqui. Isso sim que eu sou pessimista. Aquilo
que eu disse, por enquanto a comunicação está superando a expressão. Está se
comunicando muito mais. Para você ter uma ideiazinha, tira um milhão de
exemplares. Antigamente você tinha que trabalhar na pedra para fazer um soneto.
Osmar Freitas: E há uma
tendência para se reverter, há uma maneira de se reverter esse quadro?
Fernando Sabino: Não, há de
evoluir. Eu acho que isso é um processo evolutivo, sempre para melhor,
inclusive porque tem que atender o mundo. Porque houve uma integração de
grandes e grandes massas populacionais no mundo inteiro. Antigamente a África
era só para filme de Tarzan. No Brasil, o nordestino era para morrer de sede
lá. Esse negócio de Lampião...[o mais famoso cangaceiro nordestino] Não tinha
negócio de Marimbondo de fogo não. Era
só para eles ficarem por lá mesmo. “Padim Ciço” [padre Cícero Romão Batista,
cultuado como santo no Nordeste], aquelas coisas, sabe? E hoje não, hoje estão
integrados. Na África estão integrados. E a Índia? E a China? Então o mundo não
podia ficar na base de você ficar fazendo sonetos para distribuir para meia
dúzia de amigos. Então você tem que, queira ou não, participar desse mundo, se integrar
nesse mundo, aceitar como ele é e criar uma arte nova, seja qual for. Eu acho
que eu sou remanescente de uma espécie em extinção. Eu me sinto
um antropóide.
Ruy Castro: Fernando,
por que é quase inevitável que te façam pergunta sobre mineiros e você é
carioca há mais de 40 anos?
Fernando Sabino: Há duas
coisas. Primeiro que Minas está onde sempre esteve. Eu levo Minas comigo onde
eu estou, Minas está aqui nesta cadeira. Agora, segundo, se existe alguma coisa
que consiste em ser mineiro vem a ser não se tocar nesse assunto.
Ruy Castro: Exatamente.
Jorge Escosteguy: E o
contista mineiro? O famoso contista mineiro? O contista do quintal, da casa? A
geração de contistas?
Fernando Sabino: É, houve
uma geração. É até o que nós estávamos falando, ele estava dizendo exatamente
isso, que houve uma geração, uma florescência, um florescimento de contistas
mineiros, e isso por uma época, uma moda, porque há realmente grandes talentos,
poucos talvez tenham continuado.
Marcos Faerman: Tem um
pouco nessa geração, aliás, antes dessa geração, o Ivan Ângelo [(1936-),
escritor e jornalista mineiro].
Fernando Sabino: Pois é, o
Ivan Ângelo. Mas esse não era propriamente contista, é um grande romancista.
Esse é um grande romancista. Agora, eu digo mais, eu gostaria até de aproveitar
a oportunidade para fazer uma menção a alguém que está - um dia vão lhe fazer
justiça como um dos maiores escritores do nosso tempo. Esse é um romancista
mineiro, que se chama Oswaldo França Júnior [1936-1989], que faleceu o ano
passado. Publicou agora um livro admirável, um livro póstumo. Eu dou o meu
depoimento sobre ele porque eu assisti o nascimento desse homem como escritor.
Eu não fui o parteiro, mas eu fui o curioso. O parteiro foi o Rubem Braga, que
fez com que ele começasse a escrever romance. Ele apareceu, como vocês conhecem
a história dele, ele era um aviador que foi cassado e resolveu ganhar dinheiro
escrevendo, tinham dito que a gente ganhava muito dinheiro escrevendo, e ele
levou para o Rubem
Braga uns contos. O Rubem falou: “estão bons, mas o que dá dinheiro
é romance, conto não dá dinheiro”. Então ele escreveu um romance chamado O viúvo, que é admirável. A partir daí ele veio
fazendo uma obra absolutamente admirável, de uma coerência, de uma
consistência, de uma força extraordinária que ainda vai marcar época na nossa
literatura. Oswaldo França Júnior. Inclusive com um detalhe curioso, tem um
livro dele, que talvez seja o melhor, que ele não publicou porque ele mandou para
a nossa editora e eu devolvi pedindo a ele que melhorasse um pouquinho, fizesse
uma "copidescada", e esse livro nunca foi... Talvez o melhor livro
dele. Um dia ainda vamos encontrar no meio dos livros dele, e será um grande
romance póstumo.
Sérgio Pinto de
Almeida: Fernando, você não acha que, ainda falando em literatura, existe por
parte da crítica, da imprensa, até dos leitores, e dos escritores,
principalmente, um certo bom-mocismo, no sentido de que não se bate, não se
briga, não se discute intelectualmente obras menores, e escritores menores, que
acabam sendo perpetuados como grandes escritores, ou com alguma importância,
contemporâneos, e que, a meu ver, são muito fracos, muito frágeis se comparados
com outros escritores. Então esse bom-mocismo, essa aceitação por parte da
crítica, leitores, escritores, imprensa, etc, acaba absorvendo para a história
literária do Brasil obras menores.
Fernando Sabino: Eu acho
perfeito. Mas eu acho que o motivo disso, talvez se você fosse mais longe, você
ia chegar ao motivo disso, é que a crítica acabou. A crítica eclética, a
crítica exercida com criatividade literária deixou de existir e foi substituída
pela crítica universitária, vamos dizer assim.
Ricardo Soares: Resenha...
Fernando Sabino: A
dissecação do livro como se disseca um cadáver. Quer dizer, você apresenta aos
alunos, você não incentiva o aluno a ler o livro, você incentiva o aluno a
interpretar o livro, e não curtir o livro. E isso deu para suprir essa ausência
da crítica especializada, crítica literária, criativa, que tinha no meu tempo,
quando eu comecei a escrever – eu cito nomes, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de
Holanda, Prudente de Morais Neto [(1904-1977), também conhecido pelo pseudônimo
de Pedro Dantas, com o qual assinou crônicas esportivas, foi jornalista,
crítico, jurista, cronista, poeta e professor], Álvaro Lins [(1912-1975),
professor, jornalista, crítico literário, ensaísta e diplomata pernambucano],
Tristão de Ataíde [(1893-1983), pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, crítico
literário, professor, pensador, escritor e líder católico] e outros, Olívio
Montenegro [escritor, crítico e tradutor brasileiro], são críticos que... Em
todas as capitais do Brasil tinha um grande crítico literário. Hoje eles
sumiram e foram substituídos pelos resenhistas. Agora, o resenhista tem o seu
lugar no jornalismo, mas desde que ele tenha o mínimo de competência. E hoje:
“Quem é que quer fazer resenha desse livro aqui? Faz você.” Entrou um
estagiário egresso de uma faculdade de jornalismo, e vai fazer a resenha de uma
grande obra literária, um livro de poesia. Quer dizer, não tem o menor sentido
isso. Quando não é um release da própria editora que sai nos jornais. Então
isso virou também um excesso de comunicação sem nenhuma expressão. É a isso que
eu me refiro quando digo que está se comunicando mais do que exprimindo. Na
realidade não vai sobrar nada. Se sobrar um Oswaldo França Júnior já é uma
grande coisa.
Mário Viana: Fernando,
você disse no início que você recebe muitas cartas e muita gente te procura,
tal. Você recebe originais de escritores que podem vir a ser bons ou está
abaixo da média?
Fernando Sabino: Olha, eu
tenho verdadeiro pavor de ler original, eu vou te dizer por quê. Porque o
escritor que escreve um livro, que sofre, que sua, ele espera no mínimo que eu
diga que é uma obra-prima. E eu digo. Eu não tenho caráter nenhum. Eu não tenho
coragem de dizer: “você não tem competência, você seria um grande médico, você
não é escritor”. Primeiro que isso é uma audácia que eu não teria, porque ele
pode ser escritor. Não se esqueça que o Gide [André Paul Guillaume Gide
(1869-1951), escritor francês, prêmio Nobel de literatura de 1947,
fundador da editora Gallimard, autor, entre outras obras, de Os moedeiros falsos (1925)] disse que o [Marcel] Proust
[(1871-1922), escritor francês cuja obra é reconhecida como fundamental na
literatura, entre sua obras destaca-se o romance conhecido mundialmente Em busca do tempo perdido]. Então há esse perigo. E,
segundo, há o perigo de você... Eu já tive casos graves inclusive de pessoas
que eu apreciei e gostei e que resolveram morar na minha casa. [risos] Literalmente.
Já baixou um da Bahia lá em casa com uma kombi e com a família, papagaio, mala
e tudo, porque eu tinha dito que o livro dele era muito bom. E ele deixou,
fechou, era médico no interior da Bahia. Fechou e veio para o Rio. Não me
encontrou, veio para São Paulo...
Mário Viana: Mas era bom
o livro?
Fernando Sabino: Eram
contos, eram muito bons. Agora, raríssimas vezes é bom, 99% dos casos é uma
ilusão, é uma inquietação momentânea que leva o sujeito a achar... Como para
escrever, você usa a mesma linguagem da linguagem coloquial diária, cotidiana,
você não vai sentar no piano e tocar uma sinfonia, tocar uma música, tocar um
prelúdio; você não vai pegar um violino, você não vai pegar um pincel e
pintar... Pintura às vezes também tem. Mas a literatura é que é o primeiro
veículo para você extravasar uma inquietação existencial qualquer. Nem que seja
a paixão por uma mulher, você já vai fazer um soneto, fazer um conto...
Marcos Faerman: Você
cometeu alguma vez poesias? Fez alguma vez poesias de amor, essa coisa pequena?
Não há nada na sua obra.
Fernando Sabino: Confessável
ou não? Só inconfessável. Mas então é esse fenômeno. Então eu não tenho coragem
de dizer para uma pessoa, porque eu prefiro que não me dêem, porque a minha
opinião não será sincera.
Caio Fernando
Abreu: Fernando, e além de Oswaldo França Júnior, de escritores mais recentes,
que começaram a publicar dos anos 60 para cá, quem você gosta?
Fernando Sabino: Olha, eu
vou pedir a você licença para nem responder essa pergunta por duas razões.
Primeiro porque eu estou absolutamente desatualizado, sabe? Eu estou naquela
fase de começar a querer reler as coisas que eu li na mocidade e que não
aproveitei como devia. Eu estou lendo Dostoievski, eu estou lendo Montaigne
[Michel de Montaigne (1533- 1592), grande pensador e escritor humanista da
renascença francesa,], eu estou relendo gente assim, Sthendal [pseudônimo de
Henri-Marie Beyle (1783-1842), escritor francês do século XIX, autor de O vermelho e o negro]. É aquele negócio, como
dizia o Rubem
Braga, “o tempo já me é pouco para fazer o bem”. Eu sei que devo
estar perdendo muita coisa boa. E, segundo, se eu mencionasse esse ou aquele
que eu cheguei a ler e gostar, eu estaria cometendo injustiças, e eu prefiro
até não falar porque realmente o meu conhecimento é muito precário. Eu estou
muito desatualizado com relação às boas coisas que têm saído de João Cabral de
Mello Neto [(1920-1999), poeta e escritor pernambucano] para cá. Este foi a
última... O quê? Vinte anos, portanto. Daí para cá, Clarice [Lispector], João
Cabral, tal, eventualmente surgiu um ou outro que eu sei que é bom, mas eu não
teria como dizer e sustentar que é bom. Eu posso dizer que eu ouvi dizer ou li
alguma coisa dele. E aí seria uma opinião leviana, e eu prefiro não dar.
Caio Fernando
Abreu: Você acha que desde que você publicou O encontro marcado, o mercado editorial brasileiro melhorou, os
editores melhoraram, tratam melhor o escritor brasileiro?
Fernando Sabino: Em certo
sentido sim, e eu vou te dizer por quê.
Caio Fernando
Abreu: Você diz isso como editor, não é?
Fernando Sabino: Porque eu
tenho experiência como editor. Eu acho o Brasil um prodígio porque o Brasil é
um país de analfabetos, você sabe, 50 milhões de analfabetos, que se dá o
luxo... Uma vez um professor francês veio nos visitar na editora e eu saí
passeando com ele pela rua, e paramos numa livraria na avenida, ali perto, em
Copacabana, onde havia livros de bolso, Livros de Ouro, se não me engano.
Caio Fernando
Abreu: Era Edições de Ouro.
Fernando Sabino: E ele quase
caiu para trás porque ele viu uma coleção de livros que tinha assim, Plotino
[(204-270 d.C), depois de Platão e Aristóteles, ele é um dos filósofos mais
influentes da Antigüidade], Platão, tinha [...]. Só de franceses tinha
escritores assim tipo Montesquieu [Charles de Montesquieu (1689-1755),
político, filósofo e escritor francês], tinha escritores desse tipo, uma
coleção inclusive para estudantes. Ele falou: “Mas como é isso, quem lê isso?
Como é que é? É formidável? É bem traduzido?” Eu falei:
“excelentemente traduzido”. Ele olhou, viu, tinham escritores inumeráveis, que
você não pode imaginar, Hamlet, tudo que você pode imaginar tinha ali. E eu
fiquei curioso de saber. E nessa época, se não me engano, Janio de Freitas era
editor, tinha uma editora, e que editava esses livros. Eu tive a curiosidade de
saber quantos editavam, quantos tiravam por mês: dez, doze mil exemplares por
mês de cada um. Então eram 50, 60 mil exemplares por mês desses livros. Quem é
que lia isso? Você chega numa banca de jornais e vê a quantidade de jornais e
revistas, cada uma dessas organizações, Editora Abril, Organizações Globo, tem
50, 60 revistas semanais, mensais. Então quem é que lê isso tudo? Quem é que
tem dinheiro para ler isso tudo? E o preço dos livros? Eu tenho a impressão que
está se publicando mais de 100 livros novos por dia no Brasil. Muito mais...
Então há essa pletora de publicações que não corresponde ao nível, ao poder
aquisitivo do povo brasileiro e nem ao nível cultural. Eu não sei. É um
fenômeno.
Jorge Escosteguy: Fernando,
por favor, o nosso tempo está se esgotando. A Cláudia tem uma última pergunta
para você. Por favor.
Cláudia Boyago: Fernando, a
gente falou muito do passado, mas nós estamos entrando na década de 90, que é a
última década do século. O que você pensa disso, como você vê o futuro?
Fernando Sabino: Como eu
vejo o futuro? Eu tive que fazer uma palestra agora lá em Florianópolis e me
fizeram uma pergunta semelhante, e mais, a pessoa me perguntou o seguinte:
“Você, que foi jovem, você pensa, vê o futuro como você via quando tinha 20
anos?” E essa pergunta me tocou muito fundo. “O que aconteceria se você
encontrasse você mesmo na esquina, você pensa como você pensava?” Eu falei:
“olha, já me fizeram essa pergunta e a resposta que eu dei na época foi que se
eu dobrasse a esquina e me encontrasse comigo aos 20 anos, nós dois fugiríamos
espavoridos um do outro”. Mas hoje eu tenho a impressão que não, que eu
seguraria esse jovem pelos ombros, olharia ele nos olhos e dizia assim: “você
pode ficar tranqüilo porque em tudo que você acreditava eu continuo
acreditando”. Eu vejo o mundo de 90 e do ano 2000, como eu via aos 20 anos.
Exatamente.
Jorge Escosteguy: Fernando
Sabino, nós agradecemos a sua presença hoje aqui no Roda Viva,
agradecemos a presença dos nossos convidados. Uma boa noite a todos.
Fernando Sabino: Eu gostaria
também de agradecer a possibilidade que você me deu de ter a sauna mais
agradável, mais inteligente, mais afetiva. Eu pensei que eu ia ser interrogado
de tal maneira que eu estava pronto a confessar. Mas quero agradecer a vocês o
alto nível das perguntas, que eu, absolutamente, da maneira mais sincera, lhes
digo que foram muito melhores do que as respostas.
Jorge Escosteguy: Nós
agradecemos ao senhor também. Uma boa noite a todos.
[Fernando Sabino
faleceu no dia 11 de outubro de 2004, na cidade do Rio de Janeiro. A seu
pedido, seu epitáfio é o seguinte: "Aqui jaz Fernando Sabino, que
nasceu homem e morreu menino".]
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