José Saramago é o escritor português contemporâneo mais conhecido no Brasil e no mundo. Além da literatura, ele é famoso, também, por sua incansável militância política. E é o autor do já clássico 'Ensaio Sobre a Cegueira' a entrevista desta semana (e da próxima) ao programa Roda Viva e visto escrito somente aqui no Outros 300. Confira é imperdível!
Continuação...
José Saramago: É, de uma
certa maneira é isso. Eu sei que o capítulo seguinte daquele que eu estou a
fazer, terei que dizer isso, assim e assim, mas de modo nenhum articular toda a
história que vou contar num "x" número de capítulos, seguindo depois.
Aquilo que eu não faço é uma espécie de “guião”, eu estou em cada momento livre
para não escrever aquilo que pensava, num outro momento, que iria escrever. E é
esse sentimento de liberdade, aquilo que um crítico português chamou – e muito
bem, e eu não tinha pensado nisso, e os críticos servem justamente para isso,
para dizer como é que nos devemos pensar – ele designou a minha escrita de
escrita desprogramada. E é de fato uma definição exemplar. É de fato uma
escrita que se comporta desprogramadamente.
Gilberto Mansur: Eu
queria, também pensando um pouco no telespectador, que certamente conhece, como
o senhor diz, conhece mais o Evangelho
Segundo Jesus Cristo, eu queria fazer algumas perguntas voltadas
para esse livro. Eu já ouvi dizer, algumas pessoas já me disseram, que o leram
como se fosse uma longa oração, como se fosse uma demonstração de fé, até mesmo
religiosa, apesar da sua posição que a gente conhece, de materialista. Mas, a
pergunta que eu queria lhe fazer é a seguinte, a gente sabe e tem uma grande
curiosidade com relação aos evangelhos apócrifos, que existiram até o Conselho
de Trento, nos anos 200, que São Jerônimo recolheu, copidescou e o Vaticano, a partir daí, simplesmente,
praticamente proibiu a existência e a circulação desses evangelhos, a que muito
pouca gente teve acesso. Então, o que eu queria perguntar é se você teve acesso
a isso em algum momento, conhece esses evangelhos e de que maneira? E, ao mesmo
tempo, se você não consideraria um crime de lesa-humanidade o Vaticano
praticamente proibir a circulação desses evangelhos aos quais a humanidade
deveria ter acesso?
José Saramago: Vamos
ver. Comecemos pela proibição. O que a Santa Sé fez foi declarar que certos
evangelhos eram canônicos e outros eram apócrifos. Portanto, fez uma escolha
entre os documentos que considera bases da igreja, enfim, portanto, que são os
quatro evangelhos, e depois os quatro apóstolos e tudo que vem depois, mas do
ponto de vista dos evangelhos os quatro evangelhos, e declarou os outros
apócrifos. Não previu a situação, quer dizer, pode, num certo momento, ter,
enfim, logo após essa decisão, é possível que se tenham criado dificuldades da
difusão, mas neste momento os evangelhos apócrifos estão publicados em
praticamente todas as línguas. Embora eu tivesse tido tanta dificuldade de
encontrá-los em português, que tive de comprar uma edição espanhola, da
Biblioteca dos Autores Cristãos, onde está tudo, Santo Agostinho, tudo isso, e
também os evangelhos apócrifos. Tive, portanto, acesso a eles. Os evangelhos
apócrifos são, na maior parte dos casos, fragmentos. Há alguns bastante
completos, como é o caso do evangelho, dos evangelhos, que não é apenas um, são
três ou quatro, são chamados Evangelhos da Infância, em que se narra a infância
de Jesus, de uma maneira mágica, com coisas extraordinárias, e algumas nada recomendáveis,
por exemplo acontece, em certa altura, que Jesus estando brincando num regato e
depois, digamos, um funcionário de um moinho, os moinhos que as crianças fazem,
a água passa e faz girar o moinho e houve um amigo dele, um colega, uma criança
da mesma idade, que deu um pontapé naquilo, estragou aquilo e Jesus ficou tão
zangado que o matou [risos]. E depois os pais da criança morta foram queixar-se
aos pais de Jesus, Maria e José, como é que isso, essa criança que faz essas
coisas, e, aliás, parece que aconteceram dois casos, num ele fez ressuscitar a
criancinha morta e no outro não. Portanto, Jesus, segundo os apócrifos, não era
assim tão bondoso e tão caridoso. O que acontece é...
Gilberto Mansur: Esses
evangelhos, de alguma maneira, influenciaram o senhor?
José Saramago: Não,
rigorosamente nada. Devo dizer que quando eu não conhecia os evangelhos
apócrifos, quando estava para escrever esse livro. E tive que conhecê-los e fui
conhecê-los e até tinha uma grande esperança que viessem a ser muito úteis,
porque como eram apócrifos as pessoas não os conheciam tão bem e eu poderia
tirar dali umas coisas que iriam, enfim, dar mais consistência à minha
história. No final das contas, nada. O único episódio que eu tirei dos
evangelhos apócrifos, mas deslocando totalmente no tempo é o episódio dos
pássaros de barro que, nos evangelhos apócrifos, Jesus faz 12 passarinhos, ou
10 passarinhos de barro, e depois bate as palmas e eles voam. Eu passei isso
para Jesus já homem, para a cena logo após a grande conversa no meio do lago,
entre Deus, o diabo e Jesus, quando, por assim dizer, se anunciam as primeiras
vocações. Jesus é ali que faz os tais passarinhos de barro e é esse episódio,
digamos, de São Tomé, que quer ver para crer se os pássaros voam.
Rodolfo Konder: Saramago,
nós vamos ter que fazer um pequeno intervalo e o Giron vai fazer uma pergunta
já na próxima parte do programa, mas vamos interromper o programa por alguns
minutos. Nós voltamos já, já.
[intervalo]
Rodolfo Konder: Muito
bem, voltamos ao estúdio do Roda Viva, que está entrevistando hoje
o escritor português José Saramago. Eu lembro que este programa é transmitido
em conjunto com (...) Nós vamos passar a palavra agora para o Giron, que estava
para fazer a sua primeira pergunta.
Luiz Antônio Giron: Ligando com
a pergunta do Gilberto, eu queria saber o seguinte: você pegou o maior best-seller da literatura mundial, que é a Bíblia, são os
evangelhos, e você se baseou em algum evangelho dos quatro principais ou você
criou livremente a partir deles? Isso é a primeira coisa. A segunda coisa é a
seguinte: a que você atribui tanto ódio de alguns católicos, de alguns
religiosos, quanto ao sucesso que o seu livro despertou no público?
José Saramago: Sobre a
primeira questão, a verdade é que os alicerces do meu livro não são apenas os
quatro evangelhos, chamados de evangelhos
sinópticos, é também o Antigo Testamento. Porque não podemos
esquecer isso. O Deus do meu livro não é o Deus de que hoje se fala. O Deus,
digamos, da igreja, hoje, é o Deus do amor, o Deus da compaixão, um Deus de
perdão. Aquele Deus não tem nada a ver com o Deus que foi sendo refeito ao
longo destes dois mil anos. E que acabou por se assemelhar ao filho. É um caso
extremamente curioso, porque ao longo desses vinte séculos a idéia de Deus vai
sofrendo modificações e acaba, por fim, o pai por se assemelhar ao filho. A
doçura de Cristo, a mansidão, a dignidade, tudo isso, que estão nos evangelhos,
tem as suas exceções, porque Jesus também soube ser violento, foi violento
muitas vezes. Mas este sentido de caridade que está em Jesus foi, ao longo
desses vinte séculos, passado para o pai. Portanto, o meu Deus, ou melhor,
dizendo, para não haver equívocos, o Deus do Evangelho segundo Jesus Cristo é o Deus bíblico, é o Deus
dos judeus. Porque Cristo era isso mesmo, Jesus era isso mesmo, um judeu, nada
mais do que isso. Não há, aqui, um cristianismo nascido antes, quer dizer, não
há um cristianismo nascido antes de poder ter vivido. E aquilo que fez o
cristianismo o que é, é a sua própria vivência. Portanto, além dele ser
indiferente, que se tratasse do Evangelho segundo Marcos, ou Mateus, Lucas ou
João, qualquer dos quatro, eu tomei diferenças e leitura, foi também a leitura,
não de todos os livros do Antigo Testamento, evidentemente que não me
interessariam, mas de alguns deles, além do O cântico dos cânticos, que é inevitável e que é
aproveitado literalmente num diálogo entre Jesus e Maria Madalena. Há também as
diferenças, ou Eclesiastes ou o Levítico, e há alguns outros livros. Quanto à segunda
questão, enfim, eu penso que o choque produzido nos católicos e reparo que não
há protesto dos protestantes. Aqueles que se sentiram atingidos foram,
exclusivamente, eu diria, os católicos, eu penso que é natural, porque todo e
qualquer livro, toda e qualquer idéia que ponha em causa o que está
estabelecido, porque repare, eu, às vezes, digo que há uma coisa que me
surpreende muito, é que depois de uma missa, não aparece uma, duas ou três
pessoas mortas. E digo isto por uma razão muito simples: como é possível
agüentar a presença de Deus e continuar vivo? E, contudo, digamos, a missa
acaba e, independentemente do grau de fé e de participação que os fiéis tenham,
mas é um ato pouco social. Eu acho que se Deus estivesse lá, se as pessoas
sentissem a real presença de Deus, não agüentariam, quer dizer, não é possível.
Então, o livro que aparece, como é este caso, que vai por em causa toda essa
instabilidade, toda essa maneira normal de ter uma relação com a religião, em
que tudo é subitamente desequilibrado, as pessoas que vivem dentro de um
edifício, de uma casa que está toda bem distribuída, de repente vêem alguém
mudar as paredes, abrir janelas onde não havia, digamos, algumas delas
tapá-las, as pessoas sentem-se, fora do seu contexto e isso pode desencadear
vários tipos de reação.
Luiz Antônio Giron: Tem
alguma passagem do livro que você acha que chama mais a atenção por este
aspecto do choque?
José Saramago: Enfim, há
várias...
Luiz Antonio Giron: Eu, por
exemplo, acho que quando você descreve a morte de Jesus Cristo, quando você
descreve isso com crueza, com grande crueza mesmo, eu acredito que aí esteja um
dos motivos da revolta. Você descreve Cristo como não tendo visto a tigela
negra onde o sangue gotejava. Quer dizer, é uma coisa muito chocante para quem
pode ter fé, eventualmente.
José Saramago: Há aí
vários aspectos. Em primeiro lugar, é óbvio para toda gente, essa tigela negra,
que é uma tigela vulgar, comum, de barro, é a representação do Graal. Quer
dizer, aquilo que seria esse vaso magnífico onde o sangue de Cristo foi
recolhido, transforma-se, no meu livro, numa simples tigela de barro...
Luiz Antônio Giron: Que
Cristo não vê.
José Saramago: O não
ver, a verdade é que ele está em trânsito da vida para a morte. Não creio que
isso tenha chocado. O que choca, por exemplo, tendo em vista a importância do
culto mariano, hoje, eu acho, de uma certa maneira, que a pirâmide, se é que
pode se chamar assim, a pirâmide de relação religiosa, dentro do cristianismo
está, de alguma maneira, invertida, quer dizer, deveria ser, logicamente, me
parece que deveria ser logicamente, Deus, Cristo e Virgem. Mas, se nós olharmos
bem, veremos que há um processo de inversão. A Virgem aparece em primeiro lugar,
depois aparece Cristo e só depois é que aparece Deus. O culto mariano, de uma
certa maneira, fez inverter toda essa relação, trocar os pés pela cabeça nessa
relação. Portanto, há a circunstância dele ter feito de Maria, mãe de Jesus,
uma mulher igual a todas as outras mulheres. Há a circunstância da presença do
diabo. O diabo é o anjo da anunciação, o diabo é educador de Cristo e ele, em
concordância com Deus, porque no fundo eles são um só. No fundo, são um só. E
há uma frase, por exemplo, terrível, que nunca nenhum católico, digamos, não há
perdão que chegue para isso, que é quando, na tal conversa dentro do barco, no
meio do lago, cercado de nevoeiro, depois daquela descrição toda do que vai
acontecer no futuro, o diabo diz: “é preciso ser Deus para gostar tanto de
sangue”. E realmente, se o católico, se o crente, é colocado diante de um Deus,
que fez do sangue, do sofrimento, da renúncia, da abdicação da vontade, do
sacrifício, do martírio, fez o alicerce do seu poder, e se o diabo aparece a
dizer realmente é preciso ser Deus. E, agora, é curioso, não apenas esse Deus,
mas todos os deuses, todos os deuses pediram sangue. E essa relação de
sacrifício dos homens, que continuamente se sacrificam, é uma transcendência
que, enfim, não conheço. É de fato, absurdo. Para mim, tudo isso, é bastante
absurdo, se é que pode se dizer bastante, porque ou é absurdo ou não é [risos],
portanto não se pode dizer “bastante absurdo”. Então, eu diria que é absurdo
mesmo.
Gilberto Mansur: Além dos
evangelhos, você leu muito sobre Cristo? Existe um livro na literatura
brasileira que você não deve ter lido...
José Saramago: Não,
não...
Hamilton dos Santos: O senhor pensou nas feministas na construção da personagem de Maria?
Hamilton dos Santos: O senhor pensou nas feministas na construção da personagem de Maria?
José Saramago: Não
pensei nas feministas, mas essa pergunta poderia ser posta de uma outra
maneira: se eu pensei muito nas feministas quando construí a personagem Maria
Madalena. Porque a Maria...
Hamilton dos Santos: Ela é
loura, não é?
José Saramago: Dizem que
sim, que era loura [risos]. Quer dizer, provavelmente vem daí a idéia que as
loiras são mais perigosas que as morenas. Enfim, sobre isso eu não tenho nada a
dizer, se são umas ou se são outras. Mas, as feministas... Essas duas mulheres,
Maria Madalena e Maria, mãe de Jesus, são duas faces da mesma mulher e isso
mostra-se quando, nas bodas de Canaã, quando Maria, mãe de Jesus, percebe que
não tem mais o que fazer na vida do filho, entrega o filho, entrega-o de fato a
Maria Madalena. Digamos que a Maria Madalena é mais uma personagem feminina das
minhas que não tem a ver com o tempo em que, de fato, se viva, como não tem Blimunda, como
não tem outras muitas, que são representações de uma mulher que está colocada
num tempo, mas que no fundo não é produto dele, porque a mulher produto do
tempo, mulher e judia daquele tempo, é a mulher que eu, cuidadosamente, tentei
descrever no princípio do livro, como a mulher que não tem importância, que não
tem um significado social, que entra na sinagoga pela porta lateral, que nem
que todas as mulheres de Israel ou da Palestina estivessem dentro do templo, o
serviço religioso não pode começar...
Hamilton dos Santos: Mas o
senhor não está dizendo que Maria, no seu livro, não tenha esse componente
feminista, porque, por exemplo, quando ela está grávida, ela pensa na
possibilidade de desta vez, na Páscoa, não ter que servir os homens, não ter
que preparar as comidas.
Edla Van Steen: Você acha
que isso é problema de feminismo? [risos]
José Saramago: Não, eu
não diria que seja, quer dizer, nenhum ser humano é totalmente passivo sempre,
todos nós temos, mesmo que não concretizemos, movimentos de protesto interior,
de revolta, tudo mais, ai de nós se fossemos passivos a 100%. E se é verdade
que o sistema social e ideológico, religioso, de um tempo que condenava as
mulheres, de fato, à passividade, também é certo que no seu foro íntimo, da sua
consciência, da sua alma, essas coisas estavam lá. Quando uma mulher tem que
viver num lugar em que os homens se permitem dizer “abençoado seja, Senhor, por
ter me feito homem”, quer dizer, quando a mulher não tem outra coisa para dizer
a Deus, senão “graças, Senhor, por ter me feito segundo na tua vontade”, quer
dizer, quando a mulher está reduzida a isso, é preciso que Maria, na medida do
possível, manifeste essa capacidade de indisciplina, mas que essa indisciplina
se manifeste totalmente na Maria Madalena, que quer estar fora.
Jayme Martins: Essa
inversão que o senhor se referiu a pouco, de Deus, Cristo, Virgem Maria, para o
inverso, Maria, Cristo e Deus, há um exemplo muito concreto disso adotado pela
própria igreja na China, por exemplo, quando o jesuíta Mateus disse: “vai
pregar o cristianismo junto ao Imperador e aos eruditos da Corte” e, vendo a
descrença dos chineses num Deus que, afinal de contas, acaba pregado na cruz,
ele recorre então a imagem da Virgem Maria, tanto que a igreja matriz de Pequim
acaba sendo a igreja de Nossa Senhora da Conceição. E aí então é que o
cristianismo consegue uma grande popularização na China, a ponto de o taoísmo
acabar introduzindo também uma mulher no seu panteão de divindades. Agora, já
que estamos falando em China, vamos a minha pergunta: apesar dos fracassos
sofridos pela experiência socialista pelo mundo afora, como é que as convicções
políticas e ideológicas de Saramago se mantém intactas no essencial? Qual é a
esperança, afinal de contas, nesse sentido?
Rodolfo Konder: Eu vou
pegar uma carona nesta pergunta do Jayme, porque acho que temos aí um tema
interessante sobre a sua reflexão. Talvez até um pouco do fascínio que você
exerce, além da qualidade da sua literatura, esteja nessa tensão entre o
escritor e o militante. É porque você, por exemplo, falou em corrente de
afetividade, falou em diversas janelas, falou em múltiplos fios na condução do
seu trabalho, falou até em alma, que era uma palavra banida do catecismo dos
materialistas dialéticos.
José Saramago: Alma,
espírito, aquilo que nós não sabemos identificar. É só. É por uma comodidade
lingüística, nada mais.
Rodolfo Konder: Mas eu
perguntaria, dentro da pergunta do Jayme, se essas tensões entre o militante
político, que acredita num partido único, por exemplo, e o homem das múltiplas
janelas, se elas não dificultam o trabalho de criação? Se o militante não
patrulha o escritor?
José Saramago: Eu creio
que se pode responder a isso facilmente pela leitura dos meus livros. Não creio
que alguém, quem quer que seja, sinta, ou perceba, ou distinga, na leitura
qualquer dos meus livros, vigilância eventual, suposta vigilância que o
militante teria no ato da escrita em exercer sobre o escritor. Definitivamente,
não creio que isso se encontre lá. Em segundo lugar e, portanto, voltando um
pouco à pergunta, para complementar, como é que diante dessa derrocada toda
alguém tem o atrevimento, ou o descaramento, de continuar a dizer: pois sim,
caiu, mas eu continuo. A questão também pode ser posta ao contrário: por que,
por uma coisa ter acabado, coisa esta que não é "a" coisa, mas é
apenas uma delas, que foi apenas uma delas, que não se constitui, ao derrocar-se,
como a morte da morte, o fim do fim. Poderíamos perguntar por que isso haveria
de significar a renúncia a princípios meus. Que tem essa ligação profunda.
Quero dizer, se meus princípios estivessem dependentes do maior ou menor êxito
de sua aplicação, então eu seria tanto mais fiel a esses princípios quanto mais
os resultados fossem favoráveis ao meu ponto de vista, o que se confundiria,
perigosamente, com o oportunismo. Então, aquilo que se passa é completamente
diferente. Os princípios, para mim, são intocáveis. Aquilo que, a partir deles,
aquilo que representa a utilização ou a tentativa de se transportar para uma
prática o que está contido nesses princípios, posso dizer que, em princípio,
também, tenho a parte da responsabilidade que resulta da minha adesão a esses
princípios, mas não posso assumir a responsabilidade que resulta da má
aplicação desses mesmos princípios. Quer dizer, eu não sou obrigado, em
primeiro lugar, eu não sou obrigado a renunciar aos meus princípios porque a
União Soviética se desmantelou e também não era obrigado antes a crer, como,
aliás, não cria, que aquilo que estava sendo feito na União Soviética fosse a
efetiva concretização de princípios os quais eu era fiel então e continuo a ser
fiel. De uma maneira mais clara, a União Soviética nunca foi para mim uma
referência exclusiva e permito-me introduzir aí um matiz que é, quando foi dito
que eu acredito no partido único. Eu não acredito num partido único, eu não
defendo a existência de um partido único, qualquer que ele seja. O que eu
defendo é legitimidade de um partido, que tenha como base a aplicação desses
princípios, e que não lhe seja negada a possibilidade de difundi-los, de
promovê-los, em igualdade com qualquer outra tendência política que siga
caminhos diferentes. Porque, para mim, há uma coisa que está rigorosamente
clara. É que, de fato, da noite para o dia, milhões e milhões de comunistas,
que pareciam sê-lo, ou diziam sê-lo, deixaram de ser de repente. O que me
permite duvidar da autenticidade dessa convicção, nas 24 horas antes. Em
segundo lugar, a consciência da dissensão tremenda, que é conseqüência da
evidência de um fracasso. Milhões de pessoas neste momento sofrem, sinceramente
sofrem, essa dissensão. Mas tem também essa idéia, que para mim é fundamental:
o socialismo dissentiu e provavelmente voltará a dissentir nas novas tentativas
que se façam para estabelecê-lo. Por uma razão muito simples, porque promete e
tendo prometido não cumpre, como foi este o caso, dissentirá. Já o capitalismo,
louvado seja Deus, não vai dissentir nunca, por uma razão muito simples, porque
não promete nada.
Fábio Lucas: Ainda
sobre o livro O Evangelho Segundo Jesus
Cristo, a história dele oferece agora, recentemente, dois episódios. Um é que
houve um embargo de um secretário de Estado para que ele entrasse na lista dos
livros portugueses a serem apresentados ao Prêmio Europa de Literatura. Outro,
contrariamente, não foi um embargo, foi uma consagração, quer dizer, o livro
recebeu o grande prêmio da Associação Portuguesa de Escritores. Como você
recebeu uma coisa e outra?
Hamilton dos Santos: Eu queria
só emendar na sua pergunta dizendo o seguinte: me parece que não houve, pelo
menos por parte da igreja, como houve, por exemplo, no caso do filme Je Vous Salue Marie, do Godard, uma preocupação tão intensa com o
seu livro. Claro, houve algumas polêmicas, mas elas não foram tão fortes. Me
parece até que, na verdade, os políticos fomentaram mais essas polêmicas do que
a própria igreja. O senhor acha que a igreja está se tornando mais tolerante
com isso ou criando uma estratégia para não produzir mais mártires culturais?
José Saramago: A igreja
é uma coisa muito complicada e a igreja não tem uma estratégia, tem estratégias
e pode se dar um exemplo: no norte de Portugal, onde as pessoas são muito
conservadoras, os bispos que lá estão são tão ou mais conservadores ainda do
que as pessoas que lá vivem. No sul, no caso, por exemplo, do bispo de Setúbal,
que é um distrito operário, a linguagem desse bispo e o comportamento desse
bispo é completamente diferente. Portanto, a igreja é suficientemente hábil
para pôr, consoante à necessidade, os seus porta-vozes e os seus condutores,
digamos, do povo de Deus, do seu rebanho, de acordo com as especificidades de
cada lugar. E, nesse caso, a igreja terá pensado, ouve reações de
eclesiásticos, o arcebispo de Braga fez uma homilia tremenda denunciando o
livro, chamando nomes ao autor, essas coisas todas, mas a igreja como
instituição, em Portugal, guardou silêncio. Mandou os seus porta-vozes dizer
aquilo que convinha, para que os fiéis também não ficassem desamparados e sem a
voz da igreja, eu imagino que nas igrejinhas das aldeias, quando se fala do Evangelho Segundo Jesus Cristo, dizem o pior de mim, quer
dizer isso é o que eu imagino. Mas a igreja não se meteu muito nisto. Às vezes,
qualquer tentativa para comparar isso com o caso Rushdie, eu digo, por favor,
respeitemos...
Roberto Pompeu de Toledo: O senhor
imaginou que alguma vez poderia acontecer algo parecido com isso?
José Saramago: Não, de
modo nenhum. Eu saio à rua, ninguém me diz nada, quer dizer, a agressividade
das pessoas, quando existe, manifesta-se epistolarmente, quer dizer, escrevem
cartas ou devolvem, por exemplo, à editora – o que aconteceu em dois ou três
casos – o livro todo rasgado, todo esfacelado. Ficam por aí. A questão posta
sobre o prêmio. Por razões que não vem ao caso, porque de fato precisaríamos
juntar aqui uma quantidade de dados que não interessam, a minha disposição
estava em, se o prêmio da Associação Portuguesa de Escritores me fosse
atribuído, recusá-lo. Os portugueses todos conhecem as razões, mas não vale a
pena falar aqui. Simplesmente apresentou-se uma dificuldade, é que tinha havido
toda essa história, digamos, da proibição, do veto, ao livro em relação a esse
prêmio literário europeu. O que deu o escândalo que todos nós sabemos.
Escândalo dentro das fronteiras e fora delas. Digamos, dizer eu que não queria
o prêmio, seria acrescentar, como eu disse, ao escândalo de uma exclusão o
choque de uma recusa. Pareceria que eu estava a arranjar maneiras de fazer
falar de mim, com vista ao marketing e ao aumento das vendas. Estava nessa
dúvida, quer dizer, nos dias anteriores à divulgação do prêmio, quando se
tornou claro, porque sempre nós ficamos sabendo como as coisas se passam, que
provavelmente o prêmio me ia ser dado, eu estava pensando no que eu vou fazer,
no que eu vou dizer. E, conversando com a minha mulher sobre isso, ela de
repente tem a idéia luminosa, de fato luminosa, que resolveu a questão. Eu
aceito o prêmio como prêmio que é, digamos, a distinção honorífica, mas o
dinheiro dele eu encaminho em outra direção e essa direção foi a compra de
livros para enviar aos povos africanos de expressão oficial portuguesa, os
chamados horrivelmente PALOPS. Eu acho que não se deve chamar a ninguém de
semelhantes coisas, mas enfim, o mundo do jornalismo abrevia essas coisas e
realmente dizer países de expressão oficial de língua portuguesa era grande
demais. Então, PALOPS já está. Digamos, a razão foi essa, a razão da minha recusa
e da decisão de aceitar o prêmio sim, mas renunciar ao seu valor tem essa
causa.
Fábio Lucas: A sua
mulher foi a boa conselheira nesse caso?
José Saramago: A minha
mulher sempre é minha boa conselheira, e mais do que conselheira, é o outro
lado de mim.
Edla Van Steen: Por falar
em mulher, deixa eu perguntar uma coisa sobre mulher. Os escritores gostam de
dedicar livros, em geral. Eu
queria saber de você o que significa dedicar um livro seu, por impresso, e se
alguma vez você se arrependeu de ter dedicado um livro?
José Saramago: Bom, se
eu não tivesse me arrependido de nada em toda a minha vida, seria o caso de
perguntar então por que se arrependeu de ter dedicado o livro? Eu arrependi-me
e penso que é uma coisa de todos nós, que nos arrependemos de coisas que
fizemos e podemos nos arrepender até de dedicatórias escritas com muita
sinceridade e que passam a não ter nenhuma razão de ser. De uma certa maneira,
pode-se dizer o seguinte: o homem que dedicou esses livros, sendo o mesmo, já
não é o mesmo. É outro homem, tem que se entender isso, e não é que ele
pretenda fazer desaparecer o homem que foi. O que existe é o direito de
retirar, daquilo que esse homem fez, aquilo que o homem que ele é hoje, se
tornou, supérfluo, enganoso, falso, tudo o que quiser, e então retira a
dedicatória.
Edla Van Steen: Só quero
perguntar uma outra coisinha. O Giovanni Pontinni me disse, há alguns dias, que
ele tem uma enorme correspondência com você sobre o problema de tradução da sua
obra. Em geral, você gosta das traduções feitas?
José Saramago: Eu gosto,
em geral, das traduções feitas, gosto mais ou menos. Há traduções que posso
ler, que eu posso tomar conhecimento, no caso da italiana, no caso da francesa,
muito menos no caso da inglesa, mas em todo caso o suficiente na leitura. Há
outras que me escapam completamente, a sueca, a dinamarquesa, ou finlandesa, ou
holandesa, japonesa ou o hebreu, tudo isso me escapa. Vou, às vezes,
denunciando informações que algumas pessoas podem dar, quanto à qualidade das
traduções. Algumas das melhores, penso que existem excelentes tradutores,
sobretudo existem excelentes tradutoras, o que não significa que não tenham
também bons tradutores, como é o caso do Giovanni Pontianni, como a Rita Desti,
(...?) e alguns mais.
Gilberto Mansur: E no
Brasil, você acha que deveria se mexer em alguma coisa? Teve um livro seu que
foi, não é?
José Saramago: Eu nunca
autorizei que nenhum livro meu fosse mexido, como também não permitiria, se
dependesse de mim, que um livro de um autor brasileiro fosse mexido em
Portugal.
Ivan Ângelo: Às vezes
é.
José Saramago: Eu sei
que é, eu sei que é, mas aí recrimino o autor. O autor eu penso que deve dizer
assim: “eu escrevo em
português. As variantes, as mudanças, as especificidades do
lugar e da cultura diretamente em que estou, a cultura brasileira, levam a que
a minha escrita e a escrita comum sejam diferentes em alguma coisa”. Mas a
questão também é essa, que nós temos que aprender justamente com as diferenças.
Eu considero que ganho mais podendo ler um livro brasileiro, de um autor
brasileiro, na forma que ele usou. Ganho mais porque sei mais. Fico, a saber
mais, ao saber que a minha língua pode dar aquelas voltas. Isso é um
enriquecimento.
Edla Van Steen: Você é
contra a integração proposta?
José Saramago: Eu acho
que não, o que há é esse projeto do acordo ortográfico.
Ivan Ângelo: Aqui se
falou muito de um livro só aqui. Falou-se um pouco em Ricardo Reis, mas
falou-se, principalmente, do Evangelho. Eu queria
saber como você, que empregou, deu o melhor de si, para escrever cada um dos
livros que você escreveu, em qual você acha que acertou mais a mão, que te
satisfaz plenamente? E qual o outro que, hoje, de alguma forma, não te satisfaz
tanto? Enfim, faça uma escolha.
José Saramago: Essa é terrível
pergunta, quer dizer, no fundo é uma pergunta equivalente a alguém que tem
quatro filhos, há um incêndio em casa e dizem que só pode salvar um, e ele vai
lá e o que ele faz? Provavelmente, aquilo que ele seria obrigado a fazer por
quem lhe pôs diante desse dilema é morrer com os quatro filhos. O melhor era
isso. Mas, como não é esse o caso, eu começo pelo livro que eu considero o
menos conseguido, para não chamar falhado, ou coisa assim. É, evidentemente, Jangada de Pedra. Por uma razão muito simples, óbvia: desde o
primeiro momento, eu não precisei chegar ao fim do Jangada de Pedra para saber que aquele livro estava condenado
a ser, irremediavelmente, falhado.
Ivan Ângelo: Você já
tinha essa impressão enquanto escrevia?
José Saramago: Sim, sim,
eu sabia isso. E, por uma razão claríssima: o clímax do livro, quer dizer, o
ponto forte do livro está no princípio. O ponto forte da Jangada é a separação, o corte da península, dos
Pirineus. Tudo o quanto vem depois, o autor tem que terminar de contar aquela
história, mas ele sabe, e eu sabia, que não encontraria nada mais forte do que
aquilo que já lá está. Portanto, esse livro é, desse ponto de vista, falhado.
Não digo que seja na escrita, no concreto das situações, mas é um livro que
está posto ao contrário. Se eu pudesse ter escrito o livro ao contrário, pondo
a fratura no fim, mas aí era outra história que tinha que começar, pois se a
fratura ponho no fim, precisava continuar, para explicar o que acontecia
depois. Então, ali está. Esse livro é o tal. Os outros, é muito difícil. Há
várias razões. Eu, às vezes, digo que eu ponho, talvez, O Ano da Morte de Ricardo Reis acima dos outros. Mas, ao
mesmo tempo me pergunto por que eu iria colocar O Ano da Morte de Ricardo Reis acima do Memorial do Convento? Ou da História do Cerco de Lisboa? Ou do Evangelho? De modo que, como no ciclismo quando eles
chegam no Pontão, quer dizer, aquilo que eu desejo é que meus livros cheguem
todos em Pontão e que sejam creditados ao mesmo tempo. Eu admito que A Jangada de Pedra vem 2 minutos atrasados, e é bem feito
[risos].
Gilberto Mansur: O sucesso
do Evangelho, que é o
seu livro que fez mais sucesso, que vende mais, balançou alguma coisa? Você tem
uma predileção por ele com relação aos outros?
José Saramago: Não, não.
O que eu considero é que a “carreira” do Evangelho, para
pormos a questão assim, não vai poder ser julgada por questões quantitativas.
Razões de ordem exclusivamente quantitativas. Não digo exclusivamente, mas,
quantitativas. Quer dizer, tem 140 mil exemplares publicados em Portugal,
vendidos em Portugal, vai vender com certeza mais, mas aquilo que eu espero que
aconteça é que o livro tenha, produza e continue a produzir nos leitores,
efeitos profundos. E por aí é que eu penso o Evangelho. É possível que o Evangelho seja, dos meus livros, aquele que vai ficar,
não por razões meramente, exclusivamente literárias, mas porque, ao contrário
dos outros livros, que também levantam questões que não são de ordem meramente
literárias, este põe muito mais questões. E essas questões, suponho eu, vão
levar as pessoas a ler o Evangelho, espero
que dentro de 50 anos ainda leiam. Daí pra diante, enfim...
Gilberto Mansur: E ele te
deu mais trabalho? Tem algum livro que te deu mais trabalho?
José Saramago: Não, não.
O livro que eu penso que me deu mais trabalho, mais esforço e mais suor, foi A História do Cerco de Lisboa, por causa dessa diferença
de planos, século XII, século XX, a articulação entre isso, digamos...
Luiz Antônio Giron: Você
acredita nessa, você falou que Jangada de
Pedra não funciona porque...
José Saramago: Não, ele
funciona.
Luiz Antônio Giron: Funciona
menos, porque no começo tem um ponto culminante. Você acredita nessa
linearidade do romance, de narrativa que conduza a um ponto culminante, nesse
momento do romance contemporâneo?
José Saramago: Não, não,
eu não quero dizer que eu não sinta, que eu pense que o interesse tenha que vir
crescendo, até chegar ao fim onde seria a apoteose. Agora, considero que é um
livro desequilibrado porque o ponto fortíssimo está à entrada dele e faça o
autor o que fizer, ao longo dele, já não pode equilibrar. Se eu tivesse um
ponto forte a princípio, outro mais adiante, outro mais perto do final, o livro
equilibrava-se. Mas, o livro não pode equilibrar-se, porque o clímax é na
abertura do livro. A partir daí ele vai como pode.
Rodolfo Konder: Saramago,
infelizmente o nosso tempo está chegando ao fim. Então, em nome da TV Cultura
eu queria agradecer muito a sua presença aqui. A entrevista foi excelente,
muito interessante, tenho certeza que os telespectadores também gostaram muito.
Agradecer aos jornalistas e aos escritores que nos ajudaram aqui a fazer a
entrevista...
José
Saramago:
Eu posso também? Só por um minuto? Agradecer o modo simpático como se
comportaram comigo. Podiam ter me esfacelado e não me esfacelaram [risos]. A
troca de idéias em que, de fato, resultou esse encontro, a oportunidade de
conhecer gente nova, de rever amigos meus e, enfim, e se isso serviu para que
os meus leitores conhecessem um pouco melhor, eu fiquei conhecendo um pouco
melhor, através das vossas questões, o interesse que os brasileiros tem por
aquilo que eu faço. Muito obrigado.
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