Segundo o
sociólogo português Boaventura de Souza Santos, em Crítica da razão indolente. Contra o desperdício de experiência (2003),
a pós-modernidade está tomada e tramada por um sistema de racionalidade
indolente e, não obstante a sua presunção e a sua arrogância simultâneas, está
escandalosamente muito aquém dos desafios e riscos postos, no contemporâneo,
pela e para a humanidade, além de ser incapaz de estabelecer uma relação
dialógica e afirmativa com as diversidades sociais, econômicas, epistemológicas,
biológicas e culturais que se agitam por todos os lados deste planeta,
convidando-nos a nos exprimir tendo em vista os compassos irreprimíveis de uma
coletividade cuja potência benfazeja está sendo absolutamente desperdiçada e
bloqueada, no exato momento em que a civilização burguesa, como um bicho
preguiça cosmológico, abraça-nos mortalmente, com suas gigantescas unhas
bélicas, através de guerras de pilhagem, hipocritamente disfarçadas de
intervenções humanitárias; através de um modelo produtivo insustentável
ecologicamente; através de incontáveis e inexprimíveis sofrimentos e
humilhações que atingem bilhões de humanos (se formos pensar de modo
antropocêntrico).
Uma indolente
forma de racionalidade, talvez a mais incrustada em nossas instituições, determinando
destinos, é a que Boaventura chama de razão metonímica, maneira de atuar
através da qual fazemos a parte tomar o lugar do todo. Nosso sistema de ensino,
da base ao topo, constitui-se através da razão metonímica, pois separar os
saberes em segmentos isolados nada mais é do que condená-los à indolência, de
vez que os desafios e problemas que nós mesmos produzimos, em qualquer situação
da vida, têm sempre relação com o modelo de produção de riquezas, que tem
relação com a forma de apropriação delas, das riquezas; que tem relação com a
existência de exércitos, que tem relação com a estrutura de comunicação
dominante, que tem relação com o que comumente chamamos de cultura, que tem
relação com o que pensamos ser o amor, que tem relação, enfim, com o que fazemos
e deixamos de fazer, desejamos ou desprezamos, tornamos presentes, destacando
como negativo ou positivo e, por outro lado, condenamos ao mais violento
ostracismo, à inexistência absoluta, no geral precisamente daquilo que conta,
como, por exemplo, a efetiva necessidade de mudança de rumo, de construção e
invenção de uma civilização terráquea na qual e através da qual o todo, sempre
inacabado e em transformação, pensa-se, pensa e atua, relacionando tudo com
tudo, sem preconceitos, sem privilégios, sem dogmas, com cuidado, investindo
todas as fichas num mundo coletivamente próspero, feliz.
Intrigas
em uma rede de intrigas
Falar em razão
metonímica, portanto, é como gritar “pega ladrão, não fica um meu irmão”, de
vez que ela começa da gente mesmo, como indivíduos, razão pela qual somos uma
razão metonímica ambulante quanto mais tendemos a crer que individualmente
criamos, amamos, produzimos riquezas, somos, enfim, merecedores, em distinção,
de algo em detrimento de outrem; ou quando, por outro lado, condenamos alguém
isoladamente, sem considerar que o crime é sempre igualmente coletivo, pois o
cultivamos cotidianamente naquilo e através daquilo que vivemos como legal,
como não criminoso, pois o lugar da legalidade é precisamente o lugar que
ratifica o absurdo, o pior, as razões metonímicas das guerras todas, da miséria
e do abandono da maioria esmagadora da humanidade tomada, tramada e sequestrada
por esta nefasta razão metonímica, a mais insuportável, no interior da
pós-modernidade, a saber: o 1% da humanidade roubando parasitariamente o
trabalho, o sonho, o direito de viver dos 99%, razão suficiente para
destacarmos positivamente os chamados movimentos ocupaWall Street, Rede Globo e
tantos outros, pois apontam para tudo que temos de mais urgente hoje: ocupar o
lugar simbólico, jurídico, epistemológico, econômico, bélico, midiático do 1%
da humanidade, a mais fascista e inaceitável encarnação da razão metonímica
neoliberal, pós-moderna.
Diante do
imbróglio civilizatório do qual a razão metonímica é ao mesmo tempo causa e
consequência, efeito de efeito de efeito, penso que o papel mais relevante das
esquerdas do mundo seria o de evitar plataformas políticas fundadas em razões
metonímicas e, portanto, a produção de uma teoria crítica radicalmente oposta
às percepções, identidades e atuações metonímicas, enxames de gafanhotos, para
fazer uso de uma imagem bíblica, que nos roubam e impossibilitam a vida em comum. Não por culpa
delas, evidentemente, de vez que é uma patologia civilizatória, as esquerdas, e
nós também, tendem a ser estruturalmente tramadas por dogmáticas perspectivas
justificadas, sempre, por razões metonímicas, motivo pelo qual têm a tendência
de se organizarem por grupos de afinidades ideológicas, assim como a não menos
perniciosa tendência de gastarem mais energias críticas, e ódios, aos outros
segmentos de esquerda que com a forma atual de organização, sedimentação e
hegemonia da civilização burguesa.
A fim de
evidenciar como a razão metonímica prejudica a produção de informação crítica
também de segmentos de esquerda, li, com essa ótica, alguns artigos sobre a
renúncia do papa Bento 16 publicados em sites de esquerda, chamados de
alternativos, como Carta Maior, brasileiro, Lahaine, Rebelión, espanhóis;
Resistir, de Portugal. Todos, sem exceção, destacaram, ao buscarem as reais
motivações da renúncia de Bento 16, ora a corrupção, que infesta o Vaticano,
ora os supostos desvios sexuais da alta cúpula da Igreja Católica, ora a
encarniçada briga por espaço de poder nos bastidores do Vaticano. Considero as
três perspectivas absolutamente motivadas por razões metonímicas, cuja
metodologia é esta: isolo um fato ou uma instituição e o analiso isoladamente,
reificando-o. É evidente, a propósito, que Bento 16 não renunciou por causa de
corrupção no Vaticano, tampouco em função de próximos cardeais pedófilos ou
ainda porque o cardeal tal, que ocupa tal posição, puxou o tapete de outro
cardeal, que desejava ocupar a sua (sexual?) posição – intrigas em uma rede de
intrigas.
Um
homem pode sorrir e ser infame
Bento 16 não
renunciou nem por causa da corrupção do Vaticano, nem por causa de cardeais
pedófilos e muito menos porque um cardeal puxou o tapete de outro, pois, se
assim fosse, sequer teria assumido o papado, pela evidente razão de que uma
instituição de vocação essencialmente colonizadora, eurocêntrica e
plutocêntirca, como o Vaticano, sempre foi visceralmente parasitária, corrupta,
assim como sempre foi cenário privilegiado das mais, ainda que secretas,
encarniçadas traições e lutas por postos de poder, na hierarquia eclesiástica,
assim como, por razões igualmente evidentes (com tantos homens juntos, a
imposição do celibato) sempre esbanjou os mais usuais e “desviados” delírios
sexuais.
Acaso ignoramos
que o poder mundial de uma instituição religiosa, como a Igreja Católica, não
passa de um gancho a mais na estrutura de poderes da expansão Ocidental, sempre
estando fielmente a seu serviço, e de nenhum outro? Acaso acreditamos que uma
instituição, no seu centro esplendoroso, o Vaticano, repleto de ouro, de pompa,
de luxo, possibilitados pela sangria dos povos colonizados, no seu cume
hierárquico, tenha realmente alguma remota relação com o acontecimento
religioso de um Deus tornado mortal, Jesus Cristo, pobre, pobre, pobre, como um
legítimo Deus dos e para os pobres do mundo? Quem teve a lastimável
oportunidade de assistir a cerimônia de renúncia, especialmente o momento em
que o então emérito papa aposentado abandonava o Vaticano rumo a um
esplendoroso castelo, sendo transportado por um carro (sem mencionar os carros
do séquito de cardeais e seguranças) cujo valor provavelmente alimentaria, café
da manhã, almoço e janta, milhares de crianças famintas do mundo, nutre, alguma
esperança de fidelidade a Cristo, se tiver olhos realmente cristãos, naquele
séquito de séculos e séculos de parasitismo?
Uma mídia que
se autodenomina como alternativa não o será nunca realmente se não faz um
esforço cotidiano de abandono da razão metonímica, a fim de produzir informação
revolucionária, distinta do que faz a mídia oficial, corporativa, absolutamente
incapaz de produzir qualquer tipo de informação que não seja baseada em uma
infinidade de razões, estratégias ilusionistas e afetividades metonímicas. Ao
produzir informação metonímica, mesmo com o objetivo de desgastar o centro pomposo
do poder da Igreja Católica, o Vaticano, a imprensa alternativa perdeu uma
oportunidade singular de evidenciar o funcionamento nada metonímico dos centros
de poder do mundo. Perdeu, enfim, a oportunidade de aproveitar o momento e
produzir um realmente alternativo enfoque, porque necessário, a saber: todo
centro de poder, sem exceção, alimentado por pompas midiáticas, publicitárias;
por luxos, ouro, concentração de riqueza, é fundamentalmente corrupto; centros,
antes de tudo, das mais pervertidas maldades, ainda que falem em nome de Deus,
da democracia, da liberdade de expressão, pois, dialogando com uma fala do
personagem Hamlet, da obra homônima Shakespeare, acaso ignoramos que um homem
(ou uma mulher, ou) pode sorrir e ser absolutamente infame, como Obama, por
exemplo, presidente do centro do imperialismo estadunidense, mundial?
Tomara
que o poder católico esteja envelhecido
Se assumirmos
um ponto de vista não motivado por razões metonímicas, portanto, que não nutre
qualquer esperança no que pode vir e advir do Vaticano, a hipótese mais
provável da renúncia de Bento 16 talvez esteja mesmo relacionada à sua idade
senil. E não me refiro propriamente à sua idade biológica, está muito velho,
mas à sua idade histórica. Bento 16 não foi um papa pós-moderno; não foi, pois,
um papa pop, razão por que, mais que ter renunciado ao cargo, a verdadeira
razão de sua saída de cena está, direta ou indiretamente, relacionada com a
demissão imposta pelos outros centros de poder, como o poder político, do
imperialismo ocidental, a serviço do poder financeiro, inclusive do Banco do
Vaticano, que ecoa e se inscreve no poder das corporações petroleiras,
midiáticas, farmacêuticas, militares, centros sísmicos dos eternamente
corruptos centros transcendentais, essencialmente produzidos para roubar e
parasitar os povos.
Acredito, nesse
sentido, que a questão de base, porque – espero – não marcada por razões
metonímicas, seja a seguinte: existirá, entre os cardeais papáveis, algum que
seja tão pop como o foi João Paulo 2º, apto, portanto, com bastante
plasticidade e dissimulados sorrisos, a ecoar as estratégias terráqueas dos
ocidentais centros de poder, fornecendo-lhes um estatuto divino,
transcendental?
Tomara Deus que
o centro do poder católico esteja realmente, historicamente falando,
envelhecido. Pelo menos assim os centros terráqueos do imperialismo ocidental
estarão mais distantes da eternidade.
Amém!
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na UFES.
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