Nascido em Vitória (ES), em 1971, José Roberto Santos Neves é formado em Jornalismo pela UFES, com pós-graduação em Gestão em Assessoria de Comunicação pela Faesa. Trabalha no jornal A Gazeta desde 1994, onde exerce atualmente a função de editor do Caderno Pensar. É o criador da página Fanzine, que circulou entre 1995 e 2011 nesse mesmo diário. Como baterista, gravou os CDs "Hidden Melody" (1994), da banda The Rain, e "Todo dia é dia de blues" (2003), da Big Bat Blues Band. É autor dos livros "Maysa" (2004), a primeira biografia da cantora Maysa, e "A MPB de Conversa em Conversa" (2007), reunindo bastidores de 40 entrevistas com grandes nomes da música popular brasileira. Confira, abaixo, a entrevista com o jornalista:
1 – Entrevistar um entrevistador é sempre complicado. Ainda mais quando se trata de um excepcional entrevistador de grandes artistas. Diga - nos qual é a chave para se fazer uma boa entrevista?
Resposta: Não existe uma fórmula infalível para o êxito de uma entrevista. Mas alguns tópicos são essenciais: pesquisar a fundo a obra do entrevistado; comparar diferentes momentos de sua carreira; elaborar perguntas que fujam do óbvio; instigar a fonte, mostrar a ela que você domina o assunto da entrevista; e, por fim, ser insistente, chato, e nunca desistir diante da primeira dificuldade (porque vão aparecer várias até você chegar ao entrevistado). E, depois, ao redigir a matéria, o jornalista deve colocar as suas impressões sobre a conversa, descrever o ambiente da entrevista, evitando assim o tom declaratório muito comum atualmente.
Lembremo-nos que a entrevista consiste em uma conversa entre dois interlocutores da qual deve-se extrair algo que seja de interesse público. O problema é que esse interesse atualmente está sendo confundido com frivolidade, e muitas possibilidades de boas entrevistas na área cultural são desperdiçadas com perguntas que poderiam ser feitas por fãs. Ou seja, o jornalista, ao invés de instigar o artista com perguntas que levem à reflexão, acaba jogando confetes sobre o entrevistado, repetindo clichês, perguntando o óbvio... No meu livro “A MPB de Conversa em Conversa”, reúno 40 entrevistas com grandes nomes da música brasileira acompanhadas de bastidores.
Tirei duas lições dessa experiência: 1) Em 99% dos casos, quando uma entrevista fracassa, a responsabilidade é do entrevistador que não soube envolver o entrevistado durante a conversa. Entrevista também é um jogo de sedução, uma química que se estabelece entre os interlocutores – ou não. 2) Na entrevista, o repórter deve ir além do factual e provocar a fonte no sentido de ela responder questões que superem a ação do tempo presente e se tornem referência histórica. Por exemplo: uma pergunta a Caetano sobre a presença do Tropicalismo na cultura brasileira contemporânea irá provocá-lo a pensar e a dar uma resposta que vai além do factual, e que supera o status de descartável do jornal, diferenciando-se do noticiário.
2 – Vamos de início. Como você decidiu ingressar nas artes e cultura em geral? Quais foram suas influencias na época em que decidiu, de fato, entrar para o mundo cultural?
Resposta: Foi uma escolha natural, pois venho de uma família de escritores. Meu avô, Guilherme Santos Neves, foi um pesquisador incansável da cultura popular do Espírito Santo, tendo sido o fundador da Comissão Espírito-Santense de Folclore, na década de 40. Meus tios – Luiz Guilherme e Reinaldo – são romancistas de mão cheia, entre os melhores do Brasil. Sou apaixonado por jornalismo desde criança. Sempre fui leitor voraz das páginas de esporte e cultura, e lia clássicos de Machado de Assis e Maria José Dupré na infância. E sempre teve a presença da música na família, através dos pais e dos irmãos. Cresci ouvindo MPB, rock, Caetano, Rita Lee, Queen, Pink Floyd, Cazuza...
3 – Hoje, renomado, você passeia por alguns ramos artísticos, é músico, jornalista e escritor. Conte-nos, como foi o inicio de sua carreira?
Resposta: Na adolescência, participei como baterista de várias bandas de rock. Gravei dois CDs, com o The Rain, em 1994, e a Big Bat Blues Band, em 2003, e acompanhei todo o movimento musical de Vitória desde a segunda metade dos anos 80. Ainda no curso de Jornalismo, na Ufes, fui convidado pelo professor José Irmo Gonring para estagiar no setor de Pesquisa de A Gazeta, onde selecionava matérias de cultura de O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil! Naquela época, percebi que havia uma lacuna na cobertura sobre a mídia jovem, e criei o Fanzine como projeto de graduação. A editora do Caderno Dois, Andréia Curry, se interessou pelo projeto e me convidou para desenvolver o Fanzine em A Gazeta, às quartas-feiras, com espaço para diversos temas que compõem o universo da juventude. Naturalmente a produção musical jovem estava entre esses temas, e o lançamento do Fanzine, em agosto de 1995, coincidiu com o boom das bandas autorais capixabas. A partir daí, me especializei na cobertura musical e, mais tarde, fui editor do Caderno Dois, até a criação do Pensar em 2011.
4 – Fazer arte no Brasil talvez seja muito mais um exercício físico (transpiração) do que emocional (inspiração). Porque nosso país, um notório celeiro de talentos, tem tanta dificuldade em vender e propagar a arte?
Resposta: Essa é uma questão complicada, porque envolve uma série de valores e perspectivas históricas. Viver no Brasil é difícil para todos, não apenas para os artistas. Veja, por exemplo, o salário dos professores. Infelizmente, a cultura ainda é vista como uma pasta “menor” dentro dos ministérios e secretarias estaduais e municipais. Acho até que o Gil fez um ótimo trabalho no MinC, algo que não vem se repetindo na atual gestão. Veja que contradição: a música brasileira é uma das mais ricas do mundo, e o que exportamos para o mundo? Michel Teló e outros produtos descartáveis que serão esquecidos daqui a dois anos? Acho que deveríamos fazer um grande pacto, entre poder público, empresários, imprensa, escolas, para levar a cultura brasileira à população. É um erro acreditar que o público só quer ouvir e assistir a bobagens. Como ele poderá escolher outros programas, se não encontra alternativas ao “Big Brother”? Outra questão: por que os concertos anuais da Ofes levam milhares de pessoas à Praia de Camburi? Porque tem gente interessada. Se cada um fizer a sua parte nesse sentido, teremos boas surpresas pela frente.
5 – Falando em divulgar arte. Você sempre foi, antes de mais nada, um grande agitador cultural (no jornal A Gazeta, fundou o Fanzine e foi editor do Caderno Dois). Em todo esse tempo, você percebeu progressos no campo artístico nacional e capixaba?
Resposta: Houve avanços, principalmente na produção capixaba. Se falarmos sobre o audiovisual, a música, a literatura, veremos que hoje estamos acima do patamar de dez, quinze ou vinte anos atrás. Hoje os músicos olham com mais atenção para a produção dos discos, pensam em um roteiro para os shows, cenário, figurinos, técnico de sonorização, assessoria de imprensa, fotos, vídeos... a internet ajuda muito nesse sentido. É claro que temos muito a evoluir, e uma das iniciativas mais interessantes nesse sentido foram os cursos de capacitação oferecidos pela Secult, em parceria com o Sebrae, alguns anos atrás. O problema – volto a dizer – é a formação de público. Como tirar as pessoas do conforto de suas casas para ir ao teatro? Como mostrar para a “classe C”, que hoje determina os rumos da economia e do consumo, que há produção cultural relevante no Estado? E como provar à elite – que muitas vezes paga caro por um camarote nos shows de country e axé – que vale a pena oferecer uma música diferenciada para o público?
Então, volta-se à questão da parceria entre os poderes para oferecer – veja bem, digo oferecer – alternativas para o público. Onde estarão essas alternativas? Nos eventos gratuitos, nos centros comunitários, nas rádios, TVs, no incentivo do empresariado, no compartilhamento de informações culturais na web... Por que temos que trabalhar com monocultura, se há tantas expressões culturais relevantes para o crescimento intelectual da população?
6 – Você, atualmente, é editor do Caderno Pensar, do Jornal A Gazeta. Acha que o caminho para a divulgação da arte, nos dias de hoje, é através de mídias modernas, como a internet, ou jornais e revistas, que são mídias antigas, ainda têm o seu valor?
Resposta: Todos têm o seu valor. É uma bobagem acreditar que a internet irá eliminar os jornais e as revistas, assim como se achava que a TV iria eliminar o rádio. Mas é inegável que a internet proporciona uma revolução na circulação de informações. O que acabou é a imagem do crítico onipotente, intocável, que não era contestado. Hoje, uma crítica é rebatida em tempo real por internautas, fãs. Todo cidadão tem o poder de emitir informação, por celular, redes sociais. Mas isso envolve um perigo: as pessoas querem dar opinião sobre tudo, mas, em geral, não querem estudar sobre o tema. É a supremacia do “achismo”, a supervalorização do gosto pessoal, o império do egocentrismo... a internet é uma ferramenta incrível , mas o mesmo não pode ser dito em relação ao uso que se faz dela.
É aí que o crítico, aquele profissional “ultrapassado”, se faz ainda mais necessário, pois o bom crítico deve ter isenção, conhecimento, critérios de avaliação, pesquisa, foco no leitor, contextualização... enfim, os princípios básicos do jornalismo que, muitas vezes, são desconsiderados nas opiniões que circulam pela rede. Por fim, críticos também erram, mas essas falhas devem ser contestadas sempre no campo das ideias, e nunca de forma agressiva, como vi em casos recentes ocorridos na web.
7 – Estamos, muito humildemente, buscando nosso espaço como indicadores culturais. Com sua experiência, nos diga, o que o Outros 300 precisa para alcançar um trabalho de reconhecimento e excelência?
Resposta: Em primeiro lugar, devo parabenizá-los pela iniciativa de promover o debate cultural na web. Esse reconhecimento virá naturalmente, a partir da publicação de textos com embasamento, critério, densidade. Deve-se buscar a excelência, sempre, além de um olhar diferenciado sobre a realidade, na busca de uma informação ou de uma análise que vá além do imediatismo.
8 – Você trabalha com uma gama muito grande de novos escritores no Pensar. O estado está bem servido neste ramo? Fale mais a respeito dessa molecada que vem surgindo agora.
Resposta: Tenho recebido, no Pensar, material de colaboradores de diversas faixas etárias. São desde jornalistas veteranos que tinham se afastado do jornalismo diário, até jovens talentos que estavam escondidos nas universidades. A cada dia me surpreendo positivamente com a nova geração. Vejo universitários – e, às vezes, estudantes de ensino médio – interessados em expor no papel suas ideias, sentimentos e visão de mundo, por meio de resenhas, poesias, crônicas, contos, ensaios. É uma geração pulverizada, porque cresceu diante das possibilidades ilimitadas da internet, mas que também valoriza a memória, o conhecimento, a base do tema sobre o qual escreve. Estou falando dos colaboradores do Pensar; é claro que uma análise geracional merece uma avaliação mais ampla, e envolve outros fatores. Mas acredito que, tendo incentivo, os jovens vão querer ir além do “gosto médio” e buscar autonomia para fazer suas escolhas culturais.
9 – É fácil capitanear essa turma toda? Imagino que devam chegar muitos artigos para você analisar... Como funciona essa analise e a escolha de pessoal e textos?
Resposta: Trabalhamos de duas formas no Pensar: com os textos pautados pelo jornal e com as sugestões dos autores. Ou seja, convidamos especialistas para escrever sobre determinados temas e também recebemos artigos e colaborações espontâneas. A seleção é feita de acordo com a qualidade do material, no que diz respeito à excelência literária, relevância jornalística e abrangência do tema. Em geral, esses especialistas são do meio acadêmico e cultural, mas publicamos textos sobre diversos campos do conhecimento, incluindo sociologia, psicologia, história, política, filosofia etc.
10 – Você escreveu “Maysa” e “MPB de Conversa em Conversa”. Conte-nos mais acerca de seus dois livros.
Resposta: Em 2004, fui convidado pelo coordenador da Coleção Grandes Nomes do ES, Antonio de Pádua Gurgel, para fazer a biografia da Maysa, em função da minha atuação na área musical. Na verdade, a Maysa (1936-1977) fez parte da geração dos meus pais. Eu tinha cinco anos quando ela morreu. Durante a pesquisa, me apaixonei pela obra dela, por sua voz única, pela vida atribulada, as paixões, os fracassos amorosos, os porres, a loucura de uma mulher que viveu intensamente, e que enfrentou as hipocrisias da alta sociedade com coragem e coração.
Em 2008, fiz a minha reedição do livro, com novas informações, fotos e capa, e um acabamento à altura da obra da homenageada. O “MPB de Conversa em Conversa” (2007) nasceu da ideia de reunir em um livro os bastidores das minhas entrevistas, revelando ao leitor aquilo que não era publicado no jornal, seja por questão de espaço ou editorial. Selecionei 40 entrevistas com diferentes personagens da MPB, com o objetivo de mostrar que, através do jornalismo diário, é possível construir entrevistas que superem a ação do tempo presente para virar fonte de referência histórica. Ambos tiveram lançamento em Vitória e no Rio, e têm distribuição nacional pela Mauad.
O livro "Maysa". A primeira biografia da grande cantora.
11 – É mais “fácil” entrevistar cantores e músicos sendo um deles (você toca bateria, não é?) ou isso indefere?
Resposta: É claro que o conhecimento musical ajuda, mas não irá determinar o êxito da entrevista. Sempre digo que o repórter ou crítico deve circular intensamente pela área em que atua. No caso da música, é bom conhecer a forma de gravação de um disco, as etapas de estúdio, ter noção dos instrumentos, muita leitura, uma biblioteca abrangente. Na crítica musical, devem-se usar critérios bem claros, como melodia, harmonia, ritmo, originalidade, conteúdo lírico.
O livro "A MPB de Conversa em Conversa" (2007) apresenta bastidores de 40 entrevistas com grandes nomes da MPB.
12 – Você teve acesso a verdadeiras figuras da nossa música popular e fatalmente deve ter passado por alguma situação bem inusitada. Conte-nos alguma que não foi publicada em seus livros.
Resposta: Que não foi publicada... difícil (risos). Os episódios inusitados com Tom Zé, Beto Guedes, Ângela Ro Ro, Caetano, Alceu Valença, Ivete Sangalo, Elba Ramalho foram publicados no “MPB”. Aqueles que não publiquei foram os que não renderam o que se esperava. Por exemplo: Ney Matogrosso e Djavan, que foram lacônicos (muito provavelmente por causa da condução do entrevistador, rs – afinal o jornalista tem que ter humildade para reconhecer suas falhas). O contrário deles foi a Daniela Mercury, que fala absurdamente, sem parar, e me surpreendeu ao se revelar fã do Iron Maiden!
13 – Podemos esperar mais algum livro ou todas suas “baterias” estão voltadas para o Pensar? Quais seus projetos futuros?
Resposta: Ainda neste primeiro semestre, em março ou abril, vou lançar um livro sobre a história do rock em Vitória. Será um livro-reportagem que começa nos anos 60 e vai até 1995, com depoimentos de mais de 60 entrevistados e fotos de várias bandas. Minha referência nessa área é o “Chega de saudade” do Ruy Castro, por isso a obra inclui bastidores, passagens inusitadas, sonhos, vitórias e fracassos, com o objetivo de descrever a atmosfera emocional de uma época. O relato começa nos anos 60, com The Bats, Les Enfants, Os Infernais, Os Mamíferos; passa pelos anos 70, com o Epitáfio, de Sérgio Benevenuto; registra a explosão da década de 80, com Pó de Anjo, Thor, Combatentes da Cidade, Camisa de Força, a turma do heavy metal, os punks, os bares como o Dose Dupla, Rock House, Trailer do Socó, os points de shows; até chegar aos anos 90, com o vídeo “Ilha do Rock”, Porrada!!!, Lordose pra Leão... Assim que tiver a data de lançamento o blog será informado!
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