Em 1982 lançou-se às águas
da literatura produzida no Espírito Santo uma de suas naus capitânias, A nau
decapitada, novela em
que Luiz Guilherme Santos Neves lança mão, eficientemente, da
estratégia narrativa de construir personagens e enredo ficcionais a partir de
um fato histórico que, embora ignorado pela população capixaba porque a nossa
história é escassamente difundida, está documentado num relato de viagem do
presidente da Província do Espírito Santo, Sr. José Joaquim Machado de
Oliveira, incluso num apêndice à obra. Trata-se da chegada dessa autoridade
política em terras capixabas para assumir seu cargo no ano da graça de 1840,
que nos é narrada por major Marcelino. Contudo, não é esse o elemento essencial
da narrativa, e sim o percurso da embarcação, a partir da qual os personagens
se movem.
Ao mesclar numa só
correnteza os discursos histórico e ficcional, ambas as faces são robustecidas
exatamente porque diluem-se os limites entre elas e instala-se um saboroso
diálogo, que o senso comum e o pensamento positivista, essa religião, reputam
herético porque inaceitável. Essa intransigência em negar os tons dessa
conversa é um equívoco, conforme é possível constatar, por exemplo, nos
capítulos que narram o itinerário de Joaquim Machado rumo à capital a partir de
Piúma, a cavalo e em companhia do narrador-personagem (major Marcelino) e, já
em Vitória, sua rápida palestra com o presidente provincial que lhe passará o cargo.
É a ficcionalidade, por
meio da verossimilhança, “autenticando” fatos reais e fazendo supor
“verdadeiros” episódios fictícios mesclados a eles. Até certo ponto, o leitor
pouco afeito à história do Espírito Santo pode entender não estar lendo um
enredo ficcional, antes uma crônica histórica cujos personagens, todos eles,
teriam existido do modo exato como se fazem mostrar. É assim, mesmo no caso do
estereotipado contramestre Simão Boncarneiro, a encarnação da perversidade
demoníaca comandando ilegitimamente o brigue Vinte e Nove de Maio, uma espécie
de inferno flutuante a lançar à terra firme, de âncora em âncora, seus anjos
corrompidos por ordem do amotinado contramestre (contra o Mestre?). Não à toa,
“Boncarneiro” parece alusão ao “bom cordeiro” do cristianismo, sarcástica na
medida que seu comportamento é oposto ao que sugere seu sobrenome. O que não
elide a referência a “bucaneiro”, pirata hispano-americanos do século XVI e
XVII.
É a ficcionalidade, por
meio da verossimilhança, “autenticando” fatos reais e fazendo supor
“verdadeiros” episódios fictícios mesclados a eles. Até certo ponto, o leitor
pouco afeito à história do Espírito Santo pode entender não estar lendo um
enredo ficcional, antes uma crônica histórica cujos personagens, todos eles,
teriam existido do modo exato como se fazem mostrar. É assim, mesmo no caso do
estereotipado contramestre Simão Boncarneiro, a encarnação da perversidade
demoníaca comandando ilegitimamente o brigue Vinte e Nove de Maio, uma espécie
de inferno flutuante a lançar à terra firme, de âncora em âncora, seus anjos
corrompidos por ordem do amotinado contramestre (contra o Mestre?). Não à toa,
“Boncarneiro” parece alusão ao “bom cordeiro” do cristianismo, sarcástica na
medida que seu comportamento é oposto ao que sugere seu sobrenome. O que não
elide a referência a “bucaneiro”, pirata hispano-americanos do século XVI e
XVII.
Ao inverter o itinerário,
diluem-se as substâncias que remetem à ideia do sofrimento que flutua daqui
para ali, ao humor dos ventos e até mesmo da calmaria. Sem torná-la inválida,
entretanto. É que “Lúcifer” permanece, mesmo excluído do seu “inferno
original”. Comandante agora de outro navio, a sumaca Boa Viagem, Boncarneiro,
“que tinha partes com o Demo”, convence o ex-grumete da nau decapitada, Nico
Querubinho, “a única novilha que se salva”, a abandonar o narrador-personagem,
com quem vivia então muito sossegado em terra, e acompanhar o contramestre no
Boa Viagem. É a mesma lábia que a tradição cristã atribui ao Anjo Caído, o
verbo instrumentalizando-o no intuito de arrebanhar 1/3 dos anjos do Paraíso,
num verdadeiro motim contra o Criador, do que a sublevação sem atos violentos
comandada por Boncarneiro no Vinte e Nove de Maio é analogia. Ou seja, aqui o
verbo atua de modo invertido ao fiat lux divino, porquanto destrói. É o que faz
com a esperança e a boa fé de Esmeraldina Especiosa, estereótipo da indígena
“apática de vontade e afeita a fazer apenas o que lhe fosse mandado”, e também
com o doce relacionamento “cheio de gorjeios e assovios” do narrador-personagem
com o grumete Querubinho.
E não é que temos um
interessante diálogo intertextual com bom-crioulo (1895)? Neste romance
naturalista brasileiro de Adolfo Caminha também há um grumete, Aleixo (ou o
Bonitinho), cujas características físicas lembram a pureza de Querubinho
(observe-se o diminutivo em ambos). Ele se relaciona sexualmente, mas sem
afeto, com outro marinheiro, Amaro. Este equivaleria ao contramestre, inclusive
no fato de seu ingresso na vida maruja ter ocorrido um tanto por acaso. A
personagem correspondente ao major Marcelino seria a antiga prostituta
Carolina, alguém que, por sua carência afetiva e instinto maternal, se apaixona
pelo Bonitinho e o seduz. Sedução que redunda em sofrimento, pois Amaro
consegue retirar o grumete da convivência dela. Boncarneiro causa essa mesma
dor da separação, mas não por meio do homicídio como fez seu “duplo literário”,
e sim através do “sequestro” de Querubinho.
Não apenas o Vinte e Nove
de Maio e sua similitude com o inferno flutuam. Também o discurso do major
Marcelino, narrador-personagem, é calmaria, é temporal. Até o instante em que a
homoafetividade dele em relação ao grumetinho, que possuía “cabelos encoscorados
e cara oblonga de querubim”, não se mostra insistentemente sugerida, na parte
final da novela, o pragmatismo típico do discurso masculino mantém-se. A partir
do momento em que as emoções vêm à tona a objetividade do major bordeja à
esquerda e à direita. O afeto insinuado provoca uma estratégica alteração na
discursividade narrativa, com a presença abundante de vocábulos que denotam
carinho. Assim, o grumete é o “pródigo filho adotivo de minh’alma” que “me
proveu com a maior boa afeição, demonstrando-me por gestos e palavras, notável
consideração e apego”.
No século XIX ser
reconhecido como alguém que nutrisse sentimentos amorosos por outrem do mesmo
sexo equivalia a ser visto de esguelha pela sociedade, sujeitando-se a habitar
sua margem, pois se acreditava que o indivíduo fosse doente ou um pervertido moral.
Para um militar de formação religiosa, como o major Marcelino, a imagem social
estaria seriamente comprometida se houvesse exposição pública desse carinho. É
sintomático e alegórico, portanto, que a percepção da saudade motivada pela
ausência do grumete já embarcado no Boa Viagem ocorra pelos olhos de
Esmeraldina Especiosa, mulher e índia, portanto estigmatizada por um duplo
silêncio imposto pela sociedade. Tamanho mutismo, a sociologia nos diz, provoca
a elocução de proibidos modos de sentir o mundo. Ora, Esmeraldina conhece o vocabulário
do não-dito e do subtexto. Por isso, solidariamente (e os excluídos são
solidários entre si, por questão de sobrevivência), diz ao narrador-personagem:
“major, não arrepara no que vos digo e não leve a mal o meu dito. Mas arreda pé
desse chão de areia e cuide da vida que Querubinho está de todo perdido”.
Estranheza e fascínio,
deslocamentos do espírito que a obra literária esteticamente relevante em geral
causa, nós os encontramos em A nau decapitada, nas antíteses discursivas e no
modo como a linguagem, enfunando suas velas, as torna harmônicas.
(Texto de Eduardo Selga publicado no Caderno
Pensar, do jornal A Gazeta, em dezembro de 2011, traçando algumas observações
sobre o livro "A Nau Decapitada", do Luiz Guilherme Santos Neves)
Eduargo Selga é
professor de Língua Portuguesa e mestrando em Literatura pela UFES.
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