Em
1990, Hilda Hilst publica “O caderno rosa de Lori Lamby”, o primeiro de uma
série de livros que a autora classificou, na época, como pornográficos. Para
Alcír Pécora, crítico e organizador das obras da escritora, esse livro seria
seguido por outros três: “Contos d’escárnio & textos grotescos”, de 1990, “Cartas de um sedutor”, de 1991; e “Bufólicas”, de 1992. A
junção dos três primeiros livros escritos em prosa com “Bufólicas”, o único em
poesia, formaria a tetralogia obscena
da autora.
“O
caderno rosa de Lori Lamby” evoca as características de sua narradora-personagem,
a menina de oito anos de idade. Há um neologismo que elucida uma característica
marcante da protagonista: a palavra “Lamby”. No inglês a palavra “Lamb” significa cordeiro, o que ressalta a
ingenuidade que é dada às crianças de um modo geral. Entretanto, a união da
palavra inglesa com a semivogal “y” cria uma ambiguidade, já que a nova palavra
é uma subversão da ingenuidade para o verbo “lamber” do português, empregado no
romance na descrição do ato sexual realizado de forma oral. Eliane Robert
Moraes (1999), em “Da medida estilhaçada”, ressalta que as lambidas são
privilegiadas na narrativa da menina, explorando, desse modo, os prazeres da
boca. Tanto que Lori escreve de forma oral: “e aí eu tirei”, “mami”, “papi”, além
das repetições e da construção das frases iguais as das crianças. Logo, para
Lori, escrever seria uma forma de prazer, de ser lambida.
O obsceno
Eliane
Moraes e Sandra Lampeiz (1984), em “O que é pornografia”, refletem que a
obscenidade é pôr em cena algo que deveria estar escondido. Seria, pois, a
exibição do censurado, daquilo que não queremos mostrar. Utilizando-se da
tradição libertina, Hilda Hilst compõe a personagem Lori Lamby como uma criança
inocente que, ao longo do romance, vai aprendendo as malícias e os prazeres da
carne. Entretanto, Hilst radicaliza na idade, pois, ao contrário do que ocorria
nos romances libertinos, nos quais as protagonistas eram mulheres jovens
sexualmente inexperientes, no romance da autora, Lori não é uma jovem, mas
apenas uma criança. A obscenidade em questão, que é o crime da pedofilia, é
colocada aos olhos viços do leitor.
Nos
moldes dos libertinos, Lori tem o consentimento dos seus pais. Além de ser
ingênua, a protagonista não vê nada de errado na prática da venda sexual aos
adultos, como podemos conferir na aceitação de Lori à fala da personagem Tio
Abel, quando este explica para a menina o significado da palavra “predestinada”:
“uns nascem pra serem lambidos e outros pra lamberem e pagarem”. Na sua visão
despida de moral, Lori vê a prática de lamber e ser lambida como um desdobramento
do prazer de comer e da possibilidade de comprar os produtos que a sociedade de
consumo impõe para as crianças.
Outra
evidência do obsceno no romance, como ressalta Eliane Moraes (1999), é a
reflexão sobre o ato de escrever disfarçada de pornografia que perpassa todo o
livro. Para conseguir vender e sobreviver, o autor tem que se deixar levar pelo
mercado editorial e escrever “coisas porcas”. Assim, como salienta Alcir Pécora (2005), em
“Hilda Hilst call for papers”, o editor Lalau, que está ligado intimamente ao
comércio da escrita, desloca a noção de valor literário do livro para a
quantidade de venda, ou seja, de lucro. Diante de tal impasse, o escritor só vê
duas alternativas: desistir de escrever ou ceder às suplicas do mercado e fazer
do obsceno sua base de criação.
Tais
assertivas nos remetem à dedicatória e à epígrafe do livro. O romance é
dedicado “à memória da língua”, que é tida como morta por causa do mercado editorial.
Ao citar Oscar Wilde na epígrafe: “Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de
nós olham para as estrelas”, Hilda Hilst ironiza o fazer literário, já que fica
evidente que o pronome pessoal utilizado (nós) seria uma forte referência aos
escritores que estão na pobreza a olhar estrelas e a privilegiar o valor
literário e não o mercado. A esses autores que vivem a observar as estrelas,
metáfora da qualidade literária, a narradora-personagem Lori Lamby dá a lição
quando responde a epígrafe, dizendo: “e quem olha se fode”. A esses que vivem a
priorizar o belo e a qualidade só resta acabar mal e ficar à margem do mercado
e do público. Assim, há dois tipos de escritores: um que olha a qualidade
literária, como o pai de Lori, e outros que dão ao público o que eles querem,
fazendo, dessa forma, sucesso editorial, como a narradora-personagem Lori
Lamby.
(Texto de Carlos Alexandre da Silva
Rocha publicado no Caderno Pensar, do Jornal A Gazeta, no dia 08/12/2012)
Carlos
Alexandre da Silva Rocha
nasceu em Vitória-ES em 1988. Escreve desde os treze anos de idade e tem como influências
Drummond e os escritores simbolistas. Em 2008, lançou, pela Lei Rubem Braga, o
livro de poemas “Um homem na sombra”, que aparentemente se coloca aos olhos do
leitor como algo simples. Entretanto, como o livro versa sobre as angústias
humanas, ele torna-se não tão fácil de ser encarado. Carlos Alexandre é formado
em Letras-Português pela UFES e escreve no Blog Pierrô crônico (www.pierrocronico.blogspot.com).
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