Qual o lugar do escritor? Vemos aqui registros de
espaços físicos e psicológicos, que certamente os ultrapassam. Qual é o lugar
do escritor? Em todos os lugares. Assim como o lugar da fotografia. Ela está em
toda parte, em eterna busca; ela cerca e acompanha o seu objeto de desejo, e de
perpetuação.
(Apresentação do livro O lugar do escritor)
O lugar do escritor se confunde facilmente com o
lugar de qualquer outro tipo de artista. A obra é de Eder Chiodetto, que
carrega o título de O lugar do escritor, se diversifica. Fotos
carregadas de simbolismo, demonstrando os mistérios literários de maneira
direta, alternando com textos curtos, jornalísticos. Trazendo apenas o básico,
mas não deixa em nada a desejar. Consiste em um material para quem aprecia o
novo. Alguns trechos dele em muito se parece com as definições que dei quando
escrevi uma crônica para cronistas.
João
Ubaldo Ribeiro
O material relata parte da vivência de escritores brasileiros que moram por aqui ou em qualquer outra parte do mundo. Demonstra o quanto diferentes linguagens artísticas se cruzam. Às vezes até revezam, como é o exemplo de Ferreira Gullar, que quando não encontra inspiração para grafar as palavras, desenha com desenvoltura, colocando o que está transbordando na alma em alguma tela ou, no caso dos poemas, em papel.
“Ao longo de cinco anos, o fotógrafo Eder
Chiodetto visitou 36 escritores brasileiros; de Adélia Prado a João Cabral de
Melo Neto, de Haroldo de Campos a Lygia Fagundes Telles, de Ariano Suassuna a
Paulo Lins. Além de colher seus depoimentos, captou detalhes dos ambientes de
trabalho, penetrou no território de suas bibliotecas e compôs um retrato sensível
de cada um deles. O lugar do escritor é um painel fascinante que
junta imagem e palavra, confissão e memória, diálogo e reportagem” (Editora
Cosac Naify).
Grande parte das entrevistas está recheada de
incômodos – o boato de que quem escreve gosta apenas de se revelar através das
letras, ou de qualquer outra forma de manifestação artística, traduziu-se como
verdadeiro, pelo menos no contexto dessa publicação. No entanto, quem entrar em
contato com o livro irá se surpreender com grande parte das revelações. Lamento
ser esse projeto uma divulgação dos mais conhecidos, consagrados. Como em
muitas iniciativas editoriais, o conteúdo mostra-se como um complemento do já
conhecido, mas não revelado.
Mesmo assim, em nada perde o encanto. Conteúdo
preciso, inspirador inclusive para alguém que deseja transcender, desbravar
outras realidades, conversar com outras personalidades. Já pensou trilhar um
caminho como esse? A gama de possibilidades é infindável. Algo que podemos
perceber em outras iniciativas – muitas até ousadas – de divulgação literária
em um país que tem fama de não dar valor para arte.
Confesso que passei horas e horas lendo. Várias
vezes me flagrei hipnotizado com as imagens. Indo e voltando nos textos. Coisas
de quem degusta, aprecia. Sentimento que guardo faz tempo, como leitor, agora
como escritor. Algo que se renova. A cada leitura as impressões se
diversificam. Pensando que em tempos atuais – isso pra quem tem certa
sensibilidade de observação – escritores pipocam por todos os lados.
Os que praticam o ofício não mais se resume aos
que têm seus trabalhos impresso. Sites e mais sites, veículos dos mais
diversos, compartilham novidade em tempo real. Engana-se quem acredita que
blogues não têm profundidade e falta pesquisa antes das publicações. Deixe
Heloísa Buarque de Hollanda dizer o que ela pensa sobre o assunto, opiniões que
compartilho.
Não irei gastar mais linhas com essa questão.
Esse, pelo menos em minhas análises, é um assunto que será compreendido apenas
ao longo do tempo, lógico que não por todas as pessoas. Infelizmente, para
muitas coisas, afirmações das mais diversas, o passar dos dias é necessário
para ser entendido. Uma infinidade de intelectuais, artistas, pessoas que
afirmam algo que a primeira vista parece ser absurdo, é entendido apenas após a
morte.
Nas páginas que se pode correr de um livro com
quase duas centenas de folhas, para quem é leitor voraz, com certeza dará
vontade de voltar. É o tipo do livro que é pra ser lido em ordem, fora da
ordem, algumas páginas que vem a lembrança depois de várias leituras. Algo
posso afirmar… Não é para ser lido apenas uma vez…
Pessoas aparentemente com uma áurea especial, ou
algum dom vindo do ceú, mostram-se de modo humilde, de forma comum, ao
contrário do que muitos pensam. Lutam com a inspiração o tempo inteiro – alguns
deles, não todos.
Sem inacessibilidade, pelo menos é o que o
discurso de cada relato transmite. Agora, evidente é que não é um caminho
fácil, ainda mais no Brasil, país que o campo artístico não está bem
consolidado enquanto forma de sustento. A maioria nasceu em alguma família com
condições financeiras de maior vantagem. Ou, no limar da profissão, entre um
trabalho ou outro, alternam entre a paixão e a necessidade. Entre o amor e o
que cai no colo como trabalho já encomendado. Mesmo assim, quanto mais os dias
passam, maior é a convicção de que esse lugar que o escritor busca é mais
fortalecido com o acumular das experiências, resultado de muito trabalho.
Haroldo de
Campos
A maioria dos escritores que estão no livro
ainda gostam de escrever a mão ou, no máximo, com uma máquina de escrever que
não seja elétrica. Computador, então, nem pensar. Muitas são as declarações que
faz com que o leitor perceba isso. Separei uma delas…
“O
computador não fica comigo. Fica numa outra sala a cargo da Carmen, minha
mulher. Em matéria de computador sou totalmente analfabeto. Aquela tela branca
brilhando… Você aperta uma tecla, tudo desaparece. Não quero mais saber. Não
tenho paciência. Escrevo à mão ou à máquina. Comprei uma máquina elétrica, mas
gosto de escrever à mão. Tenho prazer na caligrafia. No passado aprendi a fazer
letras góticas. Fui um ótimo datilógrafo. Aprendi em escola e datilografo com
os dez dedos. É meu limite. Computador já é demais. É como a reforma
ortográfica. Não aceito. Já passei por várias. Comecei na época em que se
escrevia farmácia com ph. Simplificaram, simplificaram. Agora basta” (Haroldo
de Campos).
Os menos reflexivos podem de bate e pronto dizer
que os papas da literatura são avessos à tecnologia. Digo algo diferente, a
questão nem é essa. Produção, criação, inspiração, depende diretamente do
repertório de cada pessoa. Seria o mesmo de sair dessa página a equivocada
afirmação de que intelectuais, produtores culturais, militantes, etc., nascem
apenas nos espaços universitários. O pior é que ouço isso de muitas pessoas
superficiais.
Recuso-me a acreditar em tal falácia. Até porque
vejo nascer em quebradas o que a “elite cultural”, com toda sua aparelhagem nem
sonha em dizer. Não se trata de disputa. Chegou a hora de cada sujeito entender
que cultura não se classifica.
A prova disso é a diversidade presente no livro.
Desde escritores brasileiros que pouco viveram por aqui e foram desbravar o
solo europeu, até gente que sempre teve como fonte de inspiração o lado do
Brasil conhecido como foco da miséria, o sertão, como é o caso de Rachel de
Queiroz. Diversos também são os relatos que revelam a rotina de trabalho. Tem
os que de modo quase sagrado sentam diariamente no escritório e apenas assim as
letras começam aparecer. Outros, porém, não tem um local específico para grafar
muitas páginas que uma obra completa exige.
“Sou
composto por dois personagens: o Grande Ubaldo, um cara legal, que leva a vida
numa boa, e o Pequeno Ubaldo, que me cobra, pega no meu pé, um chato. Basta eu
vacilar um pouco que ele solta: ‘Então hoje você não quer saber de trabalho,
não é? Olha o prazo, o tempo está passando…’ Às vezes dou uns berros com ele e
o pessoal de casa acha que estou doido. Mas talvez seja ele que me faça sentar
aqui todo dia e produzir. Três laudas por dia é a meta que coloco quando estou
desenvolvendo um livro. Menos que isso, o Pequeno começa a chiar”(João Ubaldo
Ribeiro).
Quase um Universo
Particular. Abertura de uma realidade que não é qualquer coisa.
Intimidade da criação… Nisso a obra não peca! Ela vai até o ponto que o
escritor permite. Mostra o que muitos leitores morrem de curiosidade em saber.
O que está por trás das letras? Como acessar aquele que muito gosto de ler e
muitas vezes não conheço sequer o rosto? Um monte de livros, às vezes um
computador, um espaço consolidado como o lugar de criação. Seria muito
simplista dizer que esse é o lugar. Descubra antes qual é seu lugar diante de
uma criação literária. Assim terá mais condições de desvendar o lugar do
escritor. Quem sabe esse também não é seu lugar?
(Texto de
Jean Mello)
Jean Mello é educador social formado pelo Núcleo de
Trabalhos Comunitários da PUC/SP, vinculado à Faculdade de
Educação, educomunicador, músico, escritor e estudante de Psicologia na
Universidade de Santo Amaro – UNISA.
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