Começo este artigo me apoiando em dois
argumentos contidos, respectivamente na tese sexta e sétima do ensaio de Walter
Benjamin Sobre o conceito de
História, escrito no ano de sua morte, em 1940. Na sexta tese me
deterei no seguinte trecho: “O perigo ameaça tanto a existência da tradição
como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes
dominantes como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição
ao conformismo que quer apoderar-se dela.”
Da sétima tese, por sua vez, considerarei
o seguinte argumento: “Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de
todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre,
portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos
os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores
de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão.”
Em diálogo com a supracitada sexta tese
de Sobre o conceito de história,
defendo que os meios de comunicação devem ser compreendidos literalmente como
os instrumentos tecnológico-comunicativos das classes dominantes, na
atualidade, razão por que se constituem como o próprio conformismo apoderado, apoderando-nos.
Nesse contexto, o que usualmente é chamado de liberdade de expressão nada mais
é do que a liberdade sem fim de se conformar, como instrumentos comunicativos,
às classes dominantes. Qualquer outra forma de liberdade expressiva, nesse
contexto, será considerada automaticamente como censura à função
instrumental-conformista da e na sociedade do espetáculo em que vivemos, a qual
poderia também ser chamada de sociedade do conformismo.
Lei democratizante
Não existe, pois, contradição alguma na
concepção de liberdade de expressão das corporações midiáticas. Para elas,
liberdade de expressão é pura e simplesmente liberdade de usar as tecnologias
midiáticas como instrumentos das classes dominantes, fazendo proliferar
conformismos. Qualquer dispositivo jurídico que bloqueie ou limite minimamente
a função instrumental-conformista dos meios de comunicação será denunciado
previsivelmente como censura, autoritarismo, populismo, anacronismo, ditadura
ou qualquer outro nome pejorativo.
O DNA das corporações midiáticas é a sua
função literalmente instrumental-conformista em relação às classes dominantes
planetárias, principalmente às mais dominantes delas, entre elas: a
estadunidense, em primeira instância; e as ocidentais, de modo geral, em
segunda. Embora admita que o fim do monopólio, ou do oligopólio, na área das
comunicações, seja um democrático extraordinário avanço, tais fins não
significam por si sós uma verdadeira democracia midiática.
Só existe uma saída para esse imbróglio:
a política, entendida como o lugar do inconformismo, num contexto em que este
(e aqui entro na sétima tese de Walter Benjamin) deve ser claramente entendido
como litígio em relação aos vencedores de hoje e de ontem. Uma lei dos médios,
pois, realmente democratizante, deve facultar a existência de canais de
televisão, de rádio, portais de internet, imprensa escrita de DNAs
assumidamente inconformistas, em relação às classes dominantes locais e
planetárias, recusando sem cessar a apresentar-se como herdeira dos vencedores
de ontem e de hoje.
Cortejo triunfal
A sétima tese de Walter Benjamin, como é
possível observar, é de uma atualidade incisiva, constituindo-se como uma
decisiva encruzilhada comportamental, ética, estética, social, cultural,
econômica, razão por que sem cessar nos coloca, em todos os planos da vida, a
seguinte questão político-esfíngica: ou encarnamos o cortejo dos vencedores e
espezinhamos os vencidos, mesmo que estes sejam nós mesmos; ou recusamos, no
presente que nos cabe viver, não apenas a pose, o estilo, o lugar dos
vencedores, mas também o desejo de ser um vencedor.
Não se trata, bem entendido, de defender
a derrota ou de conformar-se com o vencido, posicionando-nos como um paradoxal
conformismo às avessas: o conformismo com o derrotado, o fracassado, explorado,
o vencido. Para se contrapor ao cortejo triunfal dos vencedores de ontem e de
hoje, é preciso não apenas recusar ou trair a herança civilizacional dos
vencedores, mas também não ser seu instrumento, seja como vencedor, seja como
vencido, das classes dominantes, razão pela qual o inconformismo deve
constituir-se, num mundo de cortejos triunfais, como um princípio de criação,
de produção crítica, de pensamento, de aprendizagem e de ensino; de relações
interpessoais, de felicidade, de vida, de ação – o princípio dos princípios, o
qual não apenas deveríamos defender e praticar, mas também reverenciar e
apoiar, em outrem, quando age, pensa, cria, ama, vive, como inconformista.
Por sua vez, o inconformismo, como
princípio existencial, ético, estético, deve constituir-se, não menos
literalmente como uma posição e ao mesmo tempo uma oposição clara em relação a
todo e qualquer cortejo triunfal, venha de onde vier, como os cortejos
triunfais da arte de prestígio (o da literatura, por exemplo), dos saberes
considerados rigorosos, desejáveis, das relações econômicas fundadas na relação
de compra e venda – os cortejos triunfais, enfim, do conjunto de nossa
civilização burguesa, ela mesma o cortejo triunfal por excelência, a espezinhar
a vida na Terra.
Monumento à barbárie
E é precisamente porque os meios de
comunicação se constituem como os conformistas instrumentos dos cortejos
triunfais da informação, da criação, da política, da economia, do amor, das
subjetividades, da vida, enfim, que nada lhes dá mais prazer tétrico-funeral
que a comunicação espetacular da morte de um inconformista famoso, não obstante
eles mesmos, os conformistas meios de comunicação, tudo tenham feito e fazem
para que tal ou qual famoso inconformista se tornasse ou se torne um morto
enquanto vivo, através simplesmente do silêncio absoluto em relação ao seu vivo
inconformismo, quando era vivo e quando morre.
Eis aí, pois, o que se tornou o
espetáculo midiático em torno da morte do arquiteto Oscar Niemeyer: um cortejo
triunfal conformista sobre a morte antes de tudo de seu vivo, quando era vivo,
inconformismo comunista. Se, portanto, como vivo inconformista, Oscar Niemeyer
simplesmente não existia para os vencedores meios de comunicação do Brasil – e
mesmo do mundo –, agora que morreu a marcha triunfal-funerária das conformistas
mídias brasileiras festejou instrumentalmente sua morte, espezinhando no vivo
inconformismo de tudo que ele foi e fez.
Espezinhando, pois, o inconformismo de
todos os vencidos, de ontem e de hoje, razão por que as dominantes mídias devem
ser definidas como, para citar novamente Walter Benjamin, o planetário
monumento à barbárie de nossa vencida vendida época.
(Texto de Luís Eustáquio Soares)
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria
da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo.
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