A relação de 42 anos da atriz com cineasta sueco é tema de documentário
Erosão, palavra fria, de ranço científico, é o
termo a que a atriz norueguesa Liv Ullmann, uma das musas supremas de Ingmar
Bergman (1918-2007), recorre para ilustrar seu desapego crescente com o cinema.
A perda de chão em sua relação com o audiovisual deve-se a uma série de fatores
que a estrela de “Persona” (1966) e “Cenas de um casamento” (1970) explica
nesta entrevista ao GLOBO, mas sem mágoas, sem rancores. Com uma voz doce,
sempre de bem com o humor, ela alterna suas reflexões estéticas com lembranças
do cineasta com quem fez dez filmes, viveu um casamento de cinco anos e teve
uma filha, Linn. Parte das histórias de paixão, decepção e reconciliação
vividas pela dupla dentro e fora dos sets será compartilhada com os brasileiros
no início de dezembro, quando estreia o documentário “Liv & Ingmar”, de
Dheeraj Akolkar, que aborda tormentas e calmarias na relação de 42 anos entre o
cineasta sueco e Liv, com quem ele fez seu derradeiro trabalho como realizador,
“Saraband” (2003). Num bate-papo pautado pela saudade, Liv fala de filmes, de
velhice e do existencialismo do verbo “amar”.
Globo: O que uma atriz cujo rosto foi considerado um dos mais bonitos do
mundo sente ao olhar no espelho e se ver com 73 anos?
Liv Ullmann:
Envelhecer muda a gente por dentro. Quando uma mulher é atraente, ela deposita
muito de si em seu visual. Seu rosto é uma pintura. Diz tudo. Quando essa mulher
envelhece e se olha no espelho, dependendo do ângulo da luz, ela vai se sentir
bonita, achar encantos. Mas aí ela olha uma foto e vê que é mentira, pois o
tempo está ali, na frente. Eu estou nessa fase, de ver que a pintura não é o
rosto, é o interior. Mas ainda me sinto mais bonita do que as mulheres de
botox. Minha face não tem retoques. Sou o que sou.
Globo: E de que maneira essa mulher olha para trás e vê as lembranças de
Ingmar Bergman?
Liv Ullmann:Essa
mulher que sou eu se arrepende de não ter falado mais com ele, sobre mais
coisas, sobre tanta coisa. O documentário “Liv & Ingmar” recorda momentos
que vivemos juntos. Nossa filha. Mas o momento maior talvez seja a recordação
de que, mesmo separados, quando nos víamos, andávamos de mãos dadas. Lembro da
mão dele na minha porque a gente nunca deixou de se amar, mesmo ficando apenas
amigos. Ele era um homem de quem o mundo lembra como alguém que encarava
conflitos da alma. Para mim, ele era esse mesmo homem, só que capaz de me
proporcionar momentos felizes.
Globo: E esse homem, esse Bergman da sua saudade, deu para a senhora um
método de atuar?
Liv Ullmann:
Eu não tenho outro método que não ler, entender e usar a pessoa que contracena
comigo como um tijolo a mais. Falam muito dos filmes que fiz com Ingmar, mas há
um longa americano, com Gene Hackman, que foi uma iluminação para mim no
entendimento da importância de se atuar em equipe: “A esposa comprada” (“Zandy’s
bride”, 1974, de Jan Troell). Hackman é um ator que tem uma noção tão
cristalina do espaço que eu me soltava. Criamos uma cumplicidade grande: quando
eu me irritava, ele ria e me desarmava. Com ele, aprendi que o bom ator é capaz
de tornar o colega de cena maior.
Globo: Há uma história sua com Bergman que sempre é citada, mas raras
vezes é contada na íntegra: o jantar que vocês tiveram com Woody Allen nos EUA.
Como foi estar com Allen, que trata Bergman como um deus e a senhora, como
pitonisa?
Liv Ullmann:
Eu estava me apresentando num teatro em Nova York, nos anos 1970, e Woody Allen
foi nos ver. Sentamos os três numa mesa. Eu vi aquele homem de óculos, que
antes falava sem parar, quieto, calado. Ingmar estava do mesmo jeito. Eles
apenas se olhavam. Em silêncio. Mas eram olhares de admiração mútua. Era nítida
a devoção de Woody. Mas talvez ele não soubesse que Ingmar conhecia seu
trabalho e gostava muito. Aquela mudez não era desconfortável. Era o encontro
de dois gênios que, de alguma forma, estavam ali reunidos num amor mútuo.
Globo: A senhora fala com amor do passado. Mas como anda seu amor pelo
cinema?
Liv Ullmann:
Estamos nos despedindo do grande cinema. Cada vez mais, os filmes são falsos,
guiados pelo dinheiro. Cada vez menos encontra-se aquilo que é a essência de
uma grande obra de arte: a transcendência, a habilidade de ela mudar sua forma
de olhar. Sou de uma época em que cinema era película. O que a luz gravava era
eterno, era o retrato de um instante. Hoje, o cinema é digital, e nele você
pode retocar tudo, de um rosto a uma atuação. Não existe mais aquele
investimento no instante pleno que a câmera flagrava, na busca por um take
perfeito, em que a a gente dava o melhor de si.
Globo: Por que passou cinco anos sem atuar e voltou agora em “Two
lives”, de Georg Maas (já em cartaz na Europa)?
Liv Ullmann:
Eu não tenho apego a esse filme, “Two lives”, porque a proposta era uma e a
realização foi outra, sobretudo na minha personagem. Desde que estreei como
diretora de longas, há 20 anos, com “Sofie”, atuei pouquíssimo no cinema.
Depois que você dirige, perde a paciência com realizadores despreparados. Mas
fiz muito teatro. Agora mesmo tenho uma temporada de “Tio Vânia” para dirigir
no Teatro Nacional de Oslo.
Globo: Algum filme recente foi capaz de tocá-la?
Liv Ullmann:
Há pouco vi um filme que me tocou, o drama francês “Ferrugem e osso” (de Jacques
Audiard). Ele tem uma estrela luminosa, Marion Cotillard. Mas há algo nele
de que não gosto: a perda de sutilezas trazida pela busca de realismo a partir
de efeitos digitais. Logo no início, a personagem perde suas pernas. Em momento
algum é necessário vermos suas coxas aleijadas. Marion é boa o suficiente para
insinuar a perda em gestos. Mas a câmera precisa escancarar suas feridas, para
mostrar o quanto o realismo digital é perfeito. Isso me desapega. É artificial.
Globo: Várias vezes a senhora citou “Uma rua chamada pecado”, de Elia
Kazan, entre suas lembranças mais preciosas de cinéfila. Por que não citar
“Persona” ou outro Bergman?
Liv Ullmann:
No cinema, o milagre da criação acontece quando um cineasta altera a nossa
percepção do mundo com um filme. Ingmar fez isso várias vezes. Mas o filme de
Kazan também tem sua majestade. E há o fato de que eu dirigi a peça na qual ele
se baseia, “Um bonde chamado desejo”, na Austrália, tendo no papel de Blanche
DuBois uma então novata chamada Cate Blachett, que é um gênio absoluto. Quando
apresentamos a montagem em Nova York, um crítico do “The New York Times” cravou
que nunca havia escutado uma prosódia tão americana de Tennessee Williams. E
isso vindo de uma australiana. É o choque de culturas, coisa que eu, norueguesa
nascida no Japão, valorizo muito.
Globo: Isso justifica seu apreço por “Central do Brasil” (1998), filme
do carioca Walter Salles, ao qual a senhora teceu loas diversas vezes?
Liv Ullmann:
Tenho visto poucos filmes brasileiros, mas “Central do Brasil” me levou a um
estágio tão grande de envolvimento que eu ouvia as palavras não como se fossem
faladas em português, mas como se fosse uma história da minha própria cultura.
É isso o grande cinema: a desterritorialização pela imagem, pela sensação, pelo
amor. É isso o que eu espero do cinema.
(Reportagem publicada no vespertino para tablet O GLOBO A MAIS)
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