1.
Michel Foucault, no primeiro
volume da História da
Sexualidade, parte da seguinte premissa: a história do mundo
moderno, incluindo o contemporâneo, é simultaneamente a da produção do
biopoder, entendido como uma forma de tecnologia de dominação através da qual o
soberano, com seu romano poder de morte sobre os súditos, perde espaço
(principalmente nos países centrais do Ocidente) para uma emergente
jurisprudência: a que foca seu raio de ação no poder de vida, de gestar,
organizar, classificar, distribuir, perfilar vidas humanas, subjetividades, num
contexto em que as forças da vida, fundamentalmente adaptadas à ordem produtiva
do capital, tomam o lugar das forças da morte.
2.
O que esteve e está em jogo na
produção da modernidade capitalista, na perspectiva de Foucault, inscreve-se
nas seguintes questões: como produzir um perfil humano imanente ao modelo
produtivo do capitalismo ocidental e que, por isso mesmo, encarne,
subjetivamente, o projeto
moderno de ocidentalização do mundo? Como realizar o
prodígio de fazer com que o soberano se confunda com o súdito de tal maneira
que um passa a ser o outro, sem que o soberano seja um fora transcendental,
Deus do Antigo Testamento,
em relação ao povo? Como engendrar uma civilização que seja antes de tudo uma
biocivilização, posto que, em seu processo de constituição, a tecnologia mais
importante passa a ser a da produção histórico-produtiva da própria
civilização?
3.
O que a modernidade ocidental
expandida faz e tem feito, pois, é, além de concentrar mais-valia econômica num
cenário de relações de produção determinadas pela propriedade contratual dos meios de produção,
é a permanente invenção de si mesma tendo em vista o seguinte axioma: o meio de
produção mais importante,
mais que as fábricas, as corporações, é a própria civilização ocidental em
expansão planetária. Os verdadeiros donos dos meios de produção, portanto, os
burgueses, são aqueles que se apropriam da civilização ocidental planetarizada,
essa hiper-empresa mãe de todas as demais.
4.
A corporação
ocidental-planetária é o verdadeiro empreendimento da modernidade capitalista,
constituindo-se como um bioempreendimento que é também um biopoder. Este possui
dois eixos intercambiáveis, a saber: 1) um eixo individual, ao qual Foucault dá
o nome de anátomo-político; 2) um eixo coletivo, que abarca o perfil da
civilização a ser engendrado ininterruptamente: o da biopolítica da população.
5.
O primeiro eixo, o
anátomo-político, se concentra na produção de corpos individuais e pode ser
definido como uma fábrica de produção de identidades humanas, abarcando desde a
confecção de subjetividades de referência, homem, heterossexual, branco,
tecnocrático, ocidental, cristão, quanto os perfis que serão concebidos como
alteridades em relação aos traços da identidade dominante, a saber: pobres,
como os outros para o rico; negros, índios, amarelos, mestiços, como os outros
para os brancos; mulheres como as outras para os homens; homoafetividades, como
os outros para os heterossexuais; vodu, candomblé, islamismos, hinduístas,
budistas, como os outros para o cristianismo.
6.
O eixo da biopolítica da
população, por sua vez, possui dois momentos importantes: um primeiro
circunscrito à sociedade disciplinar e um segundo que diz respeito à sociedade
do controle. O primeiro eixo, o disciplinar, diz respeito à produção de uma
biocivilização disciplinar, imanente aos meios de produção igualmente
disciplinares, de modo que tudo passa a ser investido de vontade de produção de
corpos disciplinados, dóceis.
7.
Se partimos da premissa de que a
sociedade disciplinar é uma empresa mundial disciplinar, uma imensa fábrica
planetária, então o que usualmente é chamado de divisão social do trabalho pode
e deve ser pensado não apenas no âmbito da fábrica e sua divisão interna de
perfis laborais, mas também e antes de tudo em relação ao conjunto da
sociedade, marcado pela divisão social de instituições, como a família, a
fábrica, a escola, o hospício, a cadeia.
8.
Cada instituição, na cadeia
produtiva da fábrica civilizacional disciplinar, possui seus regulamentos
internos próprios que servem precisamente para disciplinar os corpos
individuais, razão pela qual o eixo da biopolítica da população tem vínculo com
a dimensão anátomo-política. O modelo da civilização disciplinar se compara com
a esteira de produção fordista na linha de montagem, que se movimenta enquanto
operários diversos, imóveis, ocupando posições diferenciadas no decorrer da
esteira, dividem tarefas: alguns põem os parafusos no lugar adequado, outros os
apertam; outros põem o capô do carro e assim por diante, de tal maneira que no
final da esteira tem-se o carro praticamente montado.
9.
Tal como a esteira fordista de
produção, a civilização disciplinar encarrega às suas instituições
disciplinadoras o papel de imprimir no corpo individual as marcas subjetivas e
mesmo físicas que definirão, quando adulto, a identidade disciplinar. A família
imprime suas marcas, desde o nascimento e talvez mesmo antes no corpo de seus
filhos e filhas. A escola, por sua vez, inscreve outras marcas, vinculadas ao
saber, que também é disciplinar. A mesma situação se dá na fábrica, na igreja,
nas instituições disciplinares. Se, ainda assim, a pessoa não for aprovada
pelos diversos testes de qualidade disciplinar, ela fatalmente ou vai parar na
cadeia ou no hospício, sendo considerada louca ou criminosa.
10.
A relação entre o eixo
anátomo-político e o da biopolítica da população de forma alguma é baseada numa
estrutura de causa e efeito, embora possua um método comum, mediador, que é
igualmente usado em todas as instituições disciplinares, a saber: o dispositivo
da sexualidade. Este é igualmente manietado, embora sob diversas perspectivas,
com o objetivo de produzir confissões. A família joga com o dispositivo da
sexualidade a fim de que os filhos se confessem como homens e mulheres
heterossexuais, trabalhadores, marcando, na pele daqueles que não se encaixam
ao padrão, signos negativos, preconceituosos, que serão depois apanhados por
outras instituições, como as relativas ao mundo dos saberes, como a psicanálise,
a psicologia, a medicina, o direito, os quais, de uma forma ou de outra,
produziram saberes e poderes, logo verdades, sobre os perfis subjetivos
humanos, tachando-os ora de normais, ora de anormais.
11.
Principalmente em seus primeiros
momentos (final do século 18), durando até pelo menos a primeira metade do
século passado, a sociedade disciplinar pegou pesadíssimo com os considerados
anormais, empurrando-os no limite ou para o hospício ou para a cadeia, não
sendo circunstancial que as subjetividades vistas e concebidas como desviadas e
desviantes eram precisamente as que detinham maior potencial de desconstrução
da ordem disciplinar, os indisciplinados desordeiros da disciplina, razão por
que era e é preciso capturá-los, isto é, de muitas e variadas formas,
normalizá-los, adaptando-os à ordem vigente.
12.
A norma, portanto, é o objetivo
da ordem disciplinar, a norma, bem entendido, disciplinar, o que, sob o ponto
de vista de Deleuze e Guattari, seria chamado de sujeição social: a disciplina
foi (ainda é) uma fábrica civilizacional de subjetividades sujeitadas,
normatizadas e normatizantes.
13.
Um argumento que Marx nos legou
e que não podemos perdê-lo de vista jamais é o seguinte: o capitalismo vive sob
o signo do desafio de suplantar seus limites, seja de escassez de produção,
seja de superprodução, com vistas a produzir a autovalorização do valor, da
concentração das riquezas. Esse argumento de Marx vale também para a indústria
civilizacional disciplinar. Diante do limite colocado pelos corpos considerados
fora da norma, como os rebeldes processos de subjetivação produzidos na
contramão da disciplina, por operários rebeldes, por mulheres,
homoafetividades, negros, índios, latinos, árabes, colonizados insubmissos, o
desafio das tecnologias de poder se concentrou no projeto civilizatório de
normatizar os desvios, capturá-los, momento em que as tecnologias disciplinares
de sujeição social são substituídas gradativamente por novos artefatos técnicos
de produção/ampliação da norma.
14.
Diante dos limites tecnológicos,
policiais e epistemológicos da sociedade disciplinar, cujas indisciplinas
operárias, negras, indígenas, femininas, homoafetivas, linguísticas alcançaram,
durante a primeira metade do século passado, dimensões que colocavam em risco a
biopolítica da e na civilização burguesa, emerge a sociedade do controle cujo
objetivo é capturar os rebeldes, as alteridades insubmissas, normatizando-as,
independente se tais alteridades sejam de esquerda, não patriarcais, não
heterossexuais, não brancas, não europeias. A sociedade do controle, portanto,
é constituída por novas tecnologias de poder – agora não disciplinares –
voltadas antes de tudo para cooptar alteridades, domesticá-las, mantendo ao
mesmo tempo a publicidade de que as demandas indisciplinares do modelo
disciplinar precedente foram realizadas, razão pela qual, no jogo de ilusão de
ótica, estaríamos vivendo numa sociedade finalmente livre, comunista, de
iguais.
15.
Estamos, pois, no cenário
civilizacional do biopoder do controle, distinto do disciplinar não apenas
porque não mais disciplina através da imposição de uma norma estreita, ancorada
no rosto do padrão dominante, mas porque, sem abandonar este, passa a ter como
foco a norma para os desviados e desviantes da sociedade disciplinar, as
alteridades de classe, de gênero, étnicas, religiosas, geográficas,
epistemológicas. No biopoder do controle, o dispositivo da sexualidade é
ampliado e deslocado para o que poderíamos chamar de dispositivo
libidinal-fundamentalista, despertado e estimulado pela e através da confissão,
que continua presente, embora com o objetivo de, através de tecnologias de
controle, produzir alteridades confessadas, tanto mais normais quanto mais se
afirmam como particularidades, diferenças positivas; quanto mais demandarem
representação e espaços sociais na ordem do capital.
16.
A sociedade disciplinar, como
foi dito, não termina. Num certo sentido, seria possível dizer que ela foi e é
largamente vitoriosa, como tecnologia de poder disciplinar. Se sua função era
produzir subjetividades no âmbito anátomo-politico, tendo como referência o
corpo individual a fim de dividi-los em normais e anormais, sob o ponto de
vista da biopolítica da população, ela cumpriu plenamente o seu objetivo,
capturado pelo biopoder do controle, que vai precisamente radicalizar na
perspectiva anátomo-política, reificada para, a partir do corpo da alteridade
individual e isolada, instaurar o dispositivo libidinal-fundamentalista,
despertando confissões igualmente isoladas, reificadas, separadas.
17.
A identidade, seja normal ou
anormal, foi especialmente uma invenção das tecnologias disciplinares, cabendo
às de controle ampliar a norma, inscrevendo-nos, as alteridades, como
normalmente diferentes, na ordem do capital, marcada pela abstração geral do
dinheiro, a única referência realmente comum, sol que faz girar em torno de si
uma rede indefinida e metamórfica de alteridades confessadas, libidinais,
fundamentalistas.
18.
Se, na dimensão disciplinar da
biopolítica da população, o modelo produtivo da fábrica social era cortado e
recortado pela divisão social das instituições disciplinares, que estabeleciam
o alto e o baixo, hierarquicamente, o alto da norma e o baixo do fora da norma,
na ordem do controle tal hierarquia é eliminada precisamente na dimensão
anátomo-política, individual, subjetiva; dimensão que, sempre separada,
transforma-se em uma biopolítica da população especial, porque, ao invés de
estar ancorada nas instituições disciplinares, tem como referência a indústria
cultural, razão por que é possível afirmar que tudo na sociedade do controle se
torna cultural – uma indústria cultural.
19.
Vivemos, assim, numa
biocivilização do controle fundada na sociedade do espetáculo: uma
biocivilização como indústria cultural, de modo que tudo é espetacularizado de
forma anátomo-política: as subjetividades, as corporações, os estados
nacionais, o setor primário, secundário e terciário da economia. Uma sociedade
da produção, da comercialização e da distribuição anátomo-politicas, na qual e
através da qual tudo é reificado, separado e marcado pelo dispositivo
libidinal-fundamentalista, cuja palavra de ordem comum é: confesse-se!
Confesse-se Coca-Cola, confesse-se Google, confesse-se evangélico, homoerótico,
negro, azul, vermelho, yihadistas, salafista, ocidental, oriental, judeu,
americano, brasileiro, flamenguista. Tenha a sua marca e a divulgue de forma
libidinal-fundamentalista, produzindo-a, distribuindo-a e consumindo-a no
âmbito da indústria cultural do controle.
20.
Mais que as mídias intermediárias
entre a sociedade disciplinar e a do controle, como a televisão, o rádio e a
imprensa escrita, a internet se tornou e nasceu mesmo para ser, como rede das
redes ou mídia das mídias, a mais legítima tecnologia do controle da
biocivilização do espetáculo anátomo-politico. A rede mundial de computadores é
o virtual espaço da confissão planetária. Inevitavelmente ao usá-la nos
confessamos de forma libidinal-fundamentalista, mesmo se o não desejamos,
porque ainda assim, quer queiramos ou não, somos vigiados, esquadrinhados e
capturados pelas corporações como Google, Microsoft, Yahoo, Facebook, as quais
nos oferecem (muitas vezes “gratuitamente”), seus serviços a partir dos quais
nos confessamos e a partir dos quais somos capturados, catalogados, vigiados e
eventualmente punidos.
21.
O objetivo do biopoder do
controle não é vigiar e punir (pelo menos prioritariamente) na dimensão
anátomo-política, mas na do contexto da biopolítica da população. É aqui que
entra o que Foucault chamou de racismo de Estado, embora o tenha analisado no
contexto de um biopoder disciplinar. Para o autor de Arqueologia do Saber (1966),
o biopoder coloca em destaque a disciplina da vida, nos parâmetros do modelo
produtivo dos países centrais do Ocidente. No entanto, engendrar vidas
produtivas, inscrevendo-se na norma da reprodução do capital, só é possível
através da invenção de inimigos da norma, potencialmente encontráveis fora dos
Estados de biopoder. Estes, por consequência, precisam assumir a tarefa de
produção estatal de racismos, o que ocorre através da invenção permanente de
patologias do biopoder, encarnadas em Estados, principalmente os da periferia;
e perfis humanos que supostamente põem em risco a vida nos países ocidentais do
biopoder.
22.
Distintamente do racismo de Estado
disciplinar, que produzia racismo mantendo a relação entre a dimensão
anátomo-política e a da biopolítica da população, o micro e o macro, o racismo
de Estado do biopoder do controle, o atual, separa em polos opostos a dimensão
anátomo-politica, individual, da que diz respeito à biopolítica da população,
fazendo com que aquela entre em conflito (bélico) com esta. Emerge, assim, o
racismo de estado da sociedade do controle, no qual e através do qual alguns
Estados, especialmente os Estados Unidos, devem assumir e patrocinar uma forma
racista específica, a saber: a que negativa e inferioriza, expondo-a como
perigosa, terrorista, louca, patológica, de forma suicida, a humanidade
inteira.
23.
O que está em jogo no biopoder
da sociedade do controle, em sua dimensão mais funesta, é a afirmação da
anátomo-política, de indivíduos isolados, razão pela qual a norma fica dilatada
apenas nesse âmbito, sendo estreitada, como compensação, no polo da biopolítica
da população, o que significa que existe, nos centros ocidentais, a produção de
uma civilização que se volta contra a própria civilização, ao afirmar a vida,
engendrando biopoder, apenas no âmbito anátomo-político, o da vida separada,
reificada, individualizada, assumindo, por sua vez, uma forma esdrúxula de racismo:
o racismo contra a biopolítica da população, contra, portanto, a
biocivilização.
24.
Está-se formando, portanto, uma
nova figura da soberania, a que detém o direito de morte sobre os súditos: a
soberania anátomo-política. Nesse cenário, o biopoder do controle perde seu
duplo gancho, produzido no interior da sociedade disciplinar, o gancho
anátomo-político e o da biopolítica da população, posto que aquele se volta
contra este, elegendo-o como patológico, suspeito, terrorista e ao mesmo tempo
assumindo o direito de morte, mais que de vida, sobre a biopolítica da
população.
25.
A política neoliberal nada mais
é do que a ideologia planetária da soberania do biopoder circunscrita à
dimensão antátomo-política. Esta envolve, por sua vez, não apenas alteridades,
indivíduos ou grupos de indivíduos isolados, mas também alguns países,
principalmente os do centro do Ocidente, como Estados Unidos (o gestor racista
da guerra anátomo-política contra a civilização), Israel, Inglaterra,
principalmente; e França, Alemanha, Itália, Espanha, dentre outros,
secundariamente.
26.
O biopoder do controle,
exclusivamente anátomo-político, possui as seguintes figuras: 1) a de alguns
países que se assumem como anátomo-políticos, confessando-se como tais, de
forma fundamentalista, e tornando-se referências da norma geral. Estados
Unidos, Inglaterra, Israel são os principais países anátomo-políticos do
biopoder da sociedade do controle; 2) As corporações financeiras, econômicas e
midiáticas desses países em nome das quais o racismo de Estado impõe um
estresse jamais visto contra a civilização (a civilização burguesa), assumindo
o direito de morte sobre ela; 3) oligarquias, espalhadas pelo mundo, que
funcionam como a quinta coluna das duas dimensões anátomo-políticas
supracitadas, assumindo igualmente o direito de morte sobre tudo que cheire ou
se pareça com civilização, com biopolítica da população; 4) as alteridades,
principalmente as de gênero e étnicas, mas incluindo também as de classe, que passam ser
cooptadas em nome precisamente do biopoder anátomo-político dos países centrais
do Ocidente e de suas respectivas corporações, procedendo daí o que é chamado
hoje de guerras humanitárias, simples pretextos para a realização do racismo de
estado contra a biopolítica da civilização – contra a humanidade inteira.
27.
Essas quatro figuras do biopoder
anátomo-político neoliberal se tornaram os soberanos do mundo contemporâneo,
razão pela qual confessam, não sem muito fundamentalismo, as suas próprias
vidas como mais importantes que a civilização, momento em que se arrogam o
poder soberano, a partir do direito de morte, sobre a própria civilização. A
esse fenômeno é possível dar o nome de sociedade do controle soberano, a que
utiliza os suportes das tecnologias de controle (poder nuclear, internet,
satélites, aviões não tripulados, celulares, a biotecnologia, a nanotecnologia)
para afirmar o direito de vida do lado anátomo-político do biopoder
(principalmente as quatro figuras anátomo-políticas supracitadas), alçando-o como
o soberano (daí o poder soberano) dotado de direito de morte sobre a
civilização, razão pela qual o racismo de Estado o é antes de tudo o racismo de
Estado contra o que existe de civilização, dimensão coletiva, na humanidade
contemporânea.
28.
É, pois, a coletividade humana a
que sofre o racismo de Estado do biopoder do controle soberano. Por todos os
lados o que estamos assistindo é essa nova ( velhíssima) figura do
soberano, o anátomo-político, fazendo uso efetivo de seu direito de morte a tudo
que cheire civilização, inclusive as pessoas, grupos humanos, instituições e
países que, de um modo ou de outro, opõem-se ao biopoder anátomo-político
soberano, que, bem entendido, não conhece fronteiras e cassa sem piedade,
exercendo seu direito de morte, a tudo e a todos que se colocam no caminho
dessa nova ( velhíssima) besta ultraliberal, o que vale inclusive para os
cidadãos americanos, ingleses, israelenses, para qualquer um.
29.
A guerra que os Estados Unidos,
Inglaterra, Israel, Alemanha, França (a Otan) estão ameaçando desencadear
contra Síria é parte de um planejamento mais amplo contra países (não importa
que seus respectivos governantes foram eleitos pelo povo ou não; isso é só
pretexto) que impõem resistência às quatro figuras do biopoder soberano anátomo-político
do contemporâneo: aos Estados Unidos, Israel, Inglaterra (outros secundários),
suas corporações, as oligarquias a serviço dessa lógica, as alteridades
seccionadas, separadas, confessadas.
30.
Sem dúvida alguma, os próximos
países serão Irã, Líbano, Rússia, China, países da América Latina que estão
propondo não apenas resistência ao biopoder anátomo-politico soberano, mas
também perspectivas de alternativa, enfim, a qualquer um que pode emergir como
obstáculo, razão pela qual o lado civilizatório dos Estados Unidos, da
Inglaterra, de Israel ou de qualquer lugar do mundo é alvo da soberania do
controle anátomo-político, que pode, a seu bel-prazer, decretar o direito de
morte a qualquer alado lado que afirme o biopoder civilizacional.
31.
E qual a função da indústria
cultural, da sociedade do espetáculo no interior da sociedade do controle do
biopoder soberano? É a de produzir o espetáculo de uma civilização
anátomo-política; uma civilização contra a civilização, bem entendido,
promovendo e ao mesmo tempo se colocando ao serviço das quatro figuras
supracitadas do biopoder anátomo-político. A partir do argumento de que vivemos
numa civilização da indústria cultural, o que temos é o projeto planetário (para
não dizer terrorista) da indústria cultural anátomo-política contra tudo que
seja biopolitica da população, contra a própria população do planeta, portanto.
32.
Diante desse cenário
absolutamente catastrófico o que é proibido é a própria liberdade de imprensa
(ou liberdade de expressão, ou a liberdade mesma), se entendemos como liberdade
o direito de afirmar a dimensão coletiva em oposição às quatro figuras do
biopoder do controle soberano. Não é circunstancial que a polícia inglesa, em
nome da polícia americana, obrigou o jornal britânico, The Guardian, a eliminar
qualquer arquivo que contivesse informações das denúncias de espionagem
realizadas pelo ex-agente da CIA, Edward Snowden. Também não é de se estranhar
que os donos do The Guardian
tenham acatado a ordem, decretada a partir da afirmação irônica de que se
tratava de brincadeira: “Vamos acabar com essa brincadeira”, frase ambígua para
a situação que passa a humanidade no contemporâneo.
33.
O que o poder do controle
soberano objetiva é colocar a humanidade toda sob os narcísicos direitos de
morte da soberania anátomo-política das quatro figuras do apocalipse acima explicitadas, que podem brincar,
confessando seus próprios Ids, com a civilização em seu conjunto, com o
planeta, como os donos da bola, isto é, da Terra, ao mesmo tempo em que, sob o
ponto de vista desta última, da Terra, a sua coletiva defesa não passe disto,
de brincadeira civilizacional, cujo jogo deve acabar imediatamente: o jogo de
nos fazermos como iguais, justos e livres, os guardians de um planeta vulnerável que flutua,
ao mesmo tempo de forma absurda e poética, no cosmos, abrigando vidas.
34.
Os únicos guardiões possíveis
para as quatro figuras do apocalipse são suas próprias libidos
fundamentalistas, confessionais. Não é circunstancial que as corporações
americanas, israelenses (incluindo as bélicas) e inglesas sejam aliadas dos
regimes monárquicos soberanos e absolutistas do Golfo Pérsico. Não é
circunstancial também que sejam aliados do fundamentalismo islâmico, de
salafista, yihadistas, al-Qaida, financiando-os e treinando-os para combater
civilizações que resistem ao biopoder do controle soberano.
35.
Sob o ponto de vista das quatro
figuras do apocalipse, as libidinais confissões fundamentalistas são os
verdadeiros aliados do eixo do bem: do bem posto, tecnologicamente, para matar
o planeta.
***
Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria
da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo
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