Há 40 anos, Operação Dragão abriu espaço para os filmes de kung fu no cinema americano. Mas o filme que fez de Bruce Lee um astro também foi uma luta. Confira aqui a história de um clássico
Como se faz um mito
Em agosto de 1973, dois times chineses da tradicional dança do leão desfilaram pelo Hollywood Boulevard em frente ao Chinese Theatre para a estreia do filme Operação Dragão. A estridente plateia, que havia começado a se formar na noite anterior, se entrelaçava ao quarteirão. “Pelo vidro de trás da limusine, vi grupos e mais grupos de pessoas, eles simplesmente não terminavam”, relembra John Saxon, que interpretou Roper, o jogador malandro da história. “Perguntei ao motorista o que estava acontecendo, e ele respondeu: ‘É o seu filme’.”
Saxon não foi o único pego de surpresa com o sucesso de Operação Dragão. Apesar de ter sido rotulado inicialmente como ultraviolento e de baixo orçamento – um filme chinês de ação sobre kung fu com uma produção ao estilo americano –, sua popularidade lançou no Ocidente um gênero novo que continuou a prosperar, como ficou evidenciado em filmes como Matrix, O Tigre e o Dragão e Kill Bill. Operação Dragão mudou a maneira como filmes de ação eram feitos – quem podia estrelá-los e como os heróis deveriam lutar. O soco de John Wayne era coisa do passado. Depois de Operação Dragão, passamos a exigir que cada protagonista – de Batman a Sherlock Holmes, de Mel Gibson em Máquina Mortífera a Brad Pitt em Clube da Luta – fosse um especialista em artes marciais, tão habilidoso com os pés quanto com os punhos.
Feito com 850 mil dólares, o filme amealhou 90 milhões mundo afora em 1973 e seguiu faturando o equivalente a cerca de 350 milhões de dólares ao ano pelos 40 anos seguintes, incluindo os lucros de uma recente edição dupla em Blu-ray. Mas o estrondoso sucesso de crítica e de bilheteria teve um gosto amargo: Bruce Lee morreu um mês antes da estreia, aos 32 anos, e não viu seu sonho, de ser a primeira estrela chinesa do cinema americano, se concretizar.
Bruce Lee nasceu em 27 de novembro de 1940 – o ano do dragão – em Chinatown, São Francisco. Seu pai, Lee Hoi-Chuen, era ator numa trupe cantonesa de ópera de Hong Kong que se apresentava para plateias norte-americanas, e sempre levava a esposa grávida a reboque. Nascido na estrada, entre apresentações, Lee cresceu em Hong Kong e descobriu que lutar era o seu negócio. Depois de ser expulso de um colégio particular de elite e ir em cana por causa das brigas, seus pais o despacharam para morar com um amigo da família em Seattle. Quando chegou, em 1959, Lee desistiu da ideia de fazer carreira no cinema americano. Como contou mais tarde à revista Esquire: “Quantas vezes aparece um chinês em filmes americanos?” Fazia sentido. Os únicos protagonistas chineses eram Fu Manchu, o vilão amarelo, e o detetive Charlie Chan, modelo para uma minoria.
Fred Weintraub, produtor da Warner Bros., tentou escalá-lo como protagonista da série de TV Kung Fu, hit da contracultura, mas Lee foi rejeitado para o papel de Kwai Chang Caine por ser muito chinês. Colocou em seu lugar um ocidental – David Carradine. Lee havia feito filmes e séries em Hong Kong ao longo da década de 60 e era heroi por lá. Quando Weintraub viu uma cópia de The Big Boss, estrelado por Lee em Hong Kong, em 1971, sabia que tinha algo vencedor nas mãos. Feito com apenas 100 mil dólares, o filme havia se tornado um blockbuster na Ásia. Depois de muita briga, ele aprovou o ainda irrisório orçamento de 250 mil dólares para fazer Operação Dragão.
Weintraub, o coprodutor Paul Heller e o roteirista Michael Allin produziram rapidamente uma história de 17 páginas sobre três heróis (um asiático, um branco e um negro) que entravam no perigoso campeonato de artes marciais Han e acabavam com o tráfico de drogas e o trabalho escravo que rolavam por lá. Enquanto Heller e Allin trabalhavam no roteiro, Weintraub viajou para Hong Kong para chegar a um acordo com Raymond Chow, dono do estúdio que produziu o filme e sócio de Lee. E não estava sendo tão bem-sucedido. Enquanto ele arquitetava sobre a assinatura de um contrato, um esquivo Chow, apelidado de “o tigre sorridente”, educadamente se desviava dele. Depois de uma semana, Weintraub finalmente concluiu que Chow estava agindo de má fé, com receio de que, se o filme fosse feito, Hollywood roubaria Lee, sua galinha dos ovos de ouro. Em sua última noite em Hong Kong, Weintraub se encontrou com Chow e Lee num restaurante japonês. Avisaram que Lee estava na casa, e milhares de fãs apareceram. “Eu vi uma oportunidade para dar minha última cartada”, Weintraub relembra no livro Bruce Lee, Woodstock and Me. “‘Bruce, vou embora amanhã porque não conseguimos chegar a um acordo. É uma pena que Raymond não queira que você seja uma estrela internacional.’ Raymond me encarou de súbito, consumido pelo ódio. Naquele instante, ele sabia que havia perdido. Bruce disse: ‘Assine o contrato, Raymond’.”
Hoje em Hong Kong, o ainda vivaz e charmoso Chow, aos 84 anos, insiste que sua relutância foi puramente uma tática. “Eu e Bruce já havíamos conversado sobre a coisa toda. Tudo o que ele queria era um acordo justo. É muito difícil para um produtor independente conseguir um acordo justo com um estúdio multinacional.”
As restrições de orçamento eram de longe o principal problema. Bob Clouse, que havia feito apenas dois longas-metragens até então, foi escolhido como diretor porque, segundo Weintraub, “a gente conseguiu o cara por um preço ridiculamente baixo”. O velho amigo de artes marciais de Lee, Bob Wall, concordou com o papel de Ohara, o malvado guarda-costas de Han, como um favor. O novato Jim Kelly foi uma substituição de última hora para o personagem Williams, depois que Rockne Tarkington o recusou por causa da grana. A única pessoa que recebeu um salário de mercado (40 mil dólares) foi John Saxon. Weintraub precisava de um ator de renome, e Bruce Lee era quase desconhecido fora do Oriente. Mesmo esse dinheiro era apenas suficiente. Saxon só entrou no avião depois que Weintraub prometeu que ele seria a estrela do filme. Já a seleção de elenco chinês foi significativamente menos tensa. O que parecia desprezível em Hollywood era uma fortuna em Hong Kong, onde atores de cinema eram tratados como operários.
Lee não perdeu tempo tentando impor sua liderança durante Operação Dragão. No primeiro dia de Saxon em Hong Kong, em janeiro de 1973, Lee o levou à sua casa e pediu-lhe que mostrasse o seu chute lateral. “Aí ele disse: ‘Vou te mostrar o meu’”, lembra Saxon. “Ele me entregou um escudo acolchoado para a minha defesa. Deu um salto, um pulo e explodiu no escudo. Eu vim voando e aterrissei na cadeira, que se partiu. Eu fiquei em choque por alguns momentos, e então Bruce veio na minha direção com uma cara preocupada. Eu disse: ‘Não se preocupe, não estou machucado’. Ele respondeu: ‘Não estou preocupado com você. Você quebrou minha cadeira favorita’.” “Você acreditou que seria a estrela do filme?”, perguntei a Saxon. “Certamente não depois dessa primeira manhã.”
Ainda assim, Lee se recusou a aparecer no set de filmagens no primeiro dia, e no segundo e no terceiro. Um ataque de ansiedade durou duas semanas e quase fez a equipe inteira debandar. Enquanto Lee lutava contra seus nervos, as equipes americana e chinesa lutavam uma contra a outra. O principal tradutor no set era Andre Morgan, recém-formado em estudos do oriente pela Universidade do Kansas, que trabalhava havia seis meses como assistente de Chow. De acordo com Morgan, parte do problema era o fato de os americanos não perceberem o quanto de inglês a equipe chinesa de fato entendia. “Um dia, estávamos filmando a cena na qual Bruce Lee, John Saxon e Jim Kelly pulam dos pequenos barcos chineses de madeira para uma grande embarcação”, diz Morgan. “Não tínhamos walkie-talkies. Estávamos usando megafones para dar as deixas. Hubbs gritou: ‘Corta!’ Nos barquinhos de madeira, eles não ouviram e seguiram. Bob Clouse gritou: ‘Chineses de merda!’ O continuísta, que era velho e pequeno, disse em chinês: ‘Este é o último insulto que recebo desses estrangeiros de merda’. Ele pegou sua prancheta e veio para dar uma porrada no Clouse por trás. Tivemos de agarrá-lo e tirá-lo de lá.” As frustrações dos americanos estavam focadas principalmente no equipamento obsoleto e na mania dos chineses de dizer “sim” mesmo quando queriam dizer “não”. Já os chineses não gostavam da arrogância dos americanos e da tendência que eles tinham de gritar com os subordinados. Apesar das diferenças, um respeito mútuo entre os dois grupos eventualmente cresceu.
Acidentes são inevitáveis no set de um filme de kung fu. O mais lendário aconteceu entre Lee e Bob Wall. A cena da luta entre eles previa que Wall quebrasse duas garrafas e usasse uma para tentar golpear Lee, que a chutaria da mão de Wall e daria na sequência um soco na cara dele. Depois de muito treino, Lee errou o chute e seu punho bateu violentamente na ponta da garrafa. “Bruce ficou muito bravo com Bob Wall”, diz Chaplin Chang, que levou Lee para o hospital. “Ele dizia: ‘Eu quero matá-lo’, mas acho que era da boca para fora. Minha mulher diz com frequência que quer me matar, mas nunca concretiza”, diz Morgan. “Se Bruce ficou puto? Ficou. Mas ele sabia que havia sido um acidente.”
Quando Lee voltou ao set de filmagens, seu staff sempre leal de dublês chineses esperava que seu campeão programasse uma revanche. Em uma cena, Lee deu um chute lateral tão forte na barriga de Bob que ele saiu voando na direção dos dublês. “Puseram uma almofada em Bob”, lembra o dublê Zebra Pan, “mas ele decolou como se tivesse levado um tiro! E Bruce insistiu em fazer 12 takes!”. A força do chute foi tão grande que Wall quebrou o braço de um dos dublês na queda.
Os produtores precisaram aplicar alguns truques na hora de contratar o harém de Han. Nenhuma atriz chinesa podia interpretar uma prostituta num filme americano, o que obrigou os produtores a contratar profissionais de verdade. A dificuldade não era encontrá-las, mas convencê-las a participar do filme. “Como você vai saber que os amigos do seu pai e da sua mãe não vão ver o filme?”, diz Morgan. “Elas queriam receber mais dinheiro do que eu teria de pagar se quisesse transar com elas.” Quando os dublês descobriram quanto as prostitutas estavam ganhando, quase entraram em greve.
Lee era frequentemente desafiado por novatos. Ele costumava ignorar as ofertas, percebendo que elas não traziam vantagem. Se ele perdesse, isso seria manchete. Caso ganhasse, também seria manchete, igualmente negativa, por ter bancado o valentão contra um pobre-coitado. Mas enquanto filmava a climática batalha final, Lee se cansou dos coadjuvantes que tinham sido recrutados entre membros de gangues locais e o pintavam como astro só para as telas. “A postura deles era: ‘Esse Lee é um bundão, precisa de 15 takes para acertar um chute?’”, Morgan relembra. Como testemunhas mais tarde recordaram, um dos meninos veio forte para cima de Lee certa vez, com a real intenção de machucar. Mas Lee metodicamente bateu nele. E transformou o duelo numa lição particular, corrigindo a postura do menino em determinado momento. Ao fim, o menino se curvou diante de Lee e disse: “Você é realmente um mestre das artes marciais”.
Assistindo à cena de abertura, que Lee escreveu e filmou por sua conta, depois que a equipe americana do filme já tinha voltado para casa, é impossível não notar quão magro e pálido ele havia ficado durante as filmagens. Lee sofria de enxaqueca e estava se automedicando com os brownies de maconha de Alice B. Toklas. Em 10 de maio de 1973, ele teve um colapso e precisou ser levado às pressas para o hospital. Bruce Lee quase morreu em função de um edema cerebral agudo, excesso de fluido dentro do seu cérebro.
O médico Don Langford, testemunha no inquérito do governo de Hong Kong sobre a morte de Lee, explicou: “Nós demos a ele uma medicação (Mannitol) para reduzir o inchaço do cérebro”. Abalado pela experiência, Lee voou a Los Angeles para um exame completo. Os médicos disseram que ele tinha “o corpo de um menino de 18 anos”. Uma exibição-teste de Operação Dragão na Warner havia sido muito bem-sucedida – todos sentiram que tinham um grande sucesso nas mãos. Lee, casado e pai de dois filhos, havia retomado sua relação com a amante, Ting Pei, com quem tinha rompido durante as filmagens.
No dia 20 de julho, dez semanas depois de seu primeiro colapso, Lee participou de uma reunião com Chow, Morgan e George Lazenby, o ator que tinha acabado de incorporar James Bond, para discutir como encaixar Lazenby no novo filme de Lee, Game of Death. Depois do encontro matinal, Chow e Lee foram ao apartamento de Ting Pei para conversar sobre o script. Lee havia oferecido a ela um dos papéis principais. Quando ele reclamou de uma dor de cabeça, Ting Pei deu a ele Equagesic, medicamento controlado que combina aspirina e o relaxante muscular Meprobamate. “Era o que minha mãe sempre usava”, Ting Pei conta. “Bruce já tinha tomado antes.” Os três iam jantar com Lazenby para comemorar. “Quando Bruce disse que ia deitar por causa da dor de cabeça, Raymond provavelmente pensou que era uma desculpa”, Ting Pei diz, diminuindo o tom, sem perder o sorriso. “Então Raymond se levantou e disse: ‘Ok, eu vou primeiro’.”
Quando Lee não apareceu no jantar, Chow ligou para Ting Pei e ela o informou que Lee estava dormindo. Em seguida, ela ligou de volta em pânico, dizendo que não conseguia acordá-lo. Ting Pei chamou seu médico particular. Chow veio voando. Quando uma ambulância chegou, já era tarde demais. Por que uma ambulância não foi chamada antes ainda é um assunto delicado. Quando levanto esse tópico com Ting Pei, ela grita comigo. “Ninguém pensou que ele poderia estar morto. Ele havia caído no sono, iria acordar e voltar ao trabalho”, diz Chow.
A causa da morte foi conclusiva: edema cerebral agudo, o mesmo que quase o havia matado dez semanas antes. O que tinha causado o edema ainda é motivo de controvérsia. O laudo do médico legista encontrou duas coisas no estômago de Lee: Equagesic e maconha. O público chinês foi incapaz de aceitar que seu herói, um homem de 32 anos no auge de sua condição física, havia morrido subitamente sem motivos aparentes. Um inquérito governamental ajudou a pacificar a fúria ao concluir que o edema foi resultado de “hipersensibilidade a Meprobamate ou aspirina, ou a combinação de ambos, presente em Equagesic.” Mas rumores, suposições delirantes e teorias da conspiração continuam vivas. Quarenta anos depois, ainda não há consenso sobre a causa da morte de Bruce Lee. Ela continua sendo um mistério.
O que não é um mistério é a razão do sucesso de Operação Dragão: Bruce Lee. Ele foi o primeiro ator asiático-americano a incorporar a clássica definição hollywoodiana de estrela – os homens queriam ser iguais a ele e as mulheres queriam dormir com ele. “Toda cidade americana tinha uma igreja e um salão de beleza”, diz Weintraub. “Agora há uma igreja, um salão de beleza e uma academia de caratê com a foto de Bruce Lee.”
Por Mattew Polly - Playboy
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