O Poder não se preocupa com nossa alma. Não no sentido metafísico da palavra, ou religioso, e sim como sinônimo de essência do homem enquanto ser social, essa complexa equação em que o todo influencia o indivíduo e vice-versa. Como resultado dessa fórmula, o homem produz e continuamente pavimenta uma estrada chamada cultura, aqui entendida não apenas como manifestação artística ou conhecimento adquirido pelo estudo sistemático: também o modo de viver, sentir o mundo e com ele interagir.
O ato artístico, seja individual ou não, funciona como uma espécie de espelho, na medida em que reflete a subjetividade do artista (ou uma face coletiva no caso, por exemplo, de grupos musicais). Entretanto, contrariando a concepção romântica do artista que o supõe quase um abençoado a quem regularmente ocorrem lampejos de inspiração e que estas seriam como mensagens mediúnicas -o que fortalece o mito da singularidade semidivina do autor-, esse espelho também reflete a visão estética de mundo do agrupamento social ao qual o artista pertence, pois neste estão balizados os códigos daquele. E o autor não precisa ser “militante” ou “engajado” para isso: os seus valores, pertencentes a uma estrutura maior de pensamento na qual ele está inserido, sempre se mostram, com maior ou menor nitidez. O artista não é, portanto, uma criatura cujas ideias surgem do nada: ele estetiza determinados valores sociais disfarçados no enredo do conto, na forma de representar a mulher em uma pintura, no machismo romanceado da música sertaneja.
Entretanto, esse espelhamento, que é uma forma de narrativa, não é democrático porque o universo estético dos indivíduos economicamente situados na base da pirâmide social não é retratado pelos artistas de outros estratos. “Pedro Pedreiro” de Chico Buarque, por exemplo, é a expressão estética de alguém a respeito de determinada realidade social não vivenciada diretamente, mostrando a espera como um ato de paciência diante dos infortúnios. É essa “narrativa em terceira pessoa”, essa visão romântica, o narrador distante, que passou a ser questionada por meio de manifestações culturais como o rap e o funk, por exemplo. Quando ouvimos frases do tipo “isso não é música”, relativamente a esses ritmos, o que se coloca, subliminarmente, é: “quem são vocês para falarem de vocês próprios?” Ou seja, a sociedade não concede a todos o direito de narrar, é privilégio de poucos, apenas os que possuem o tal “bom gosto”. A tolerância às narrativas socialmente desautorizadas, quando ocorre, vem acompanhada de algum rótulo que procura descaracterizá-la: é “folclore” ao invés de arte; “crendice popular” ao invés de mitologia; não é religião: é “macumbaria”. Mais recentemente, é “barulho”, ao invés de música.
Ocorre que as vozes antes apenas representadas quando estávamos na modernidade, agora querem a autorreferência. E não é de hoje esse fenômeno da pós-modernidade. Nesse cenário, há algumas movimentações na Grande Vitória que podem caminhar no sentido de se contrapor ao fato de que na região os eventos de cultura explícita se mostram ilhas eventuais. Estou me referindo, por exemplo, ao recente “Sarau Quebrando o Silêncio”, realizado no Centro de Referência da Juventude pelo Coletivo Literatura MarginalES , congregando jovens da periferia da capital em 30/01. Naquela noite eles declamaram seus poemas e expuseram sua visão estética de mundo por meio da dança e fanzine. Vejamos esse trecho de “Pique Esconde no Labirinto”, poema construído coletivamente por alguns presentes, pouco antes do evento: “Quero mais do que é oferecido! / às vezes o que é oferecido eu não quero, / então digo e sigo em frente / de repente, caio num abismo estridente, / mas continuo na caminhada.” Estes versos chamam a atenção não apenas esteticamente: põe em pauta a autoria individual, o glamour do autor que desfila seu ego por meio de uma suposta “originalidade” (existirá uma ideia nunca antes expressa literariamente?), pois no caso citado tem-se uma autoria literária coletiva, fruto de um sujeito que é um mosaico formado pela união de várias individualidades.
Pois aconteceu de novo, sinal de que vivemos dias de nuvens culturalmente carregadas. É que ontem (21/02), quase um mês após o “Sarau Quebrando o Silêncio”, houve um alvoroço multicultural batizado “Poesia na Calçada”, inspirado na música “Cada Lugar na Sua Coisa” (“Um livro de poesia na gaveta não adianta nada / Lugar de poesia é na calçada”), de Sérgio Sampaio, compositor capixaba a um só tempo admirado por uns e escassamente conhecido de muitos. Foram curtas, longas imagens na forma sarau poético, pintura, fotografia, a palavra cantada, a palavra dançada e outros setes que foram pintados na Rua da Lama por quem quis botar seu bloco na rua.
Porque o Poder não se preocupa com nossa alma, apenas com materialidades. Somos nós quem devemos construí-la, artisticamente.
(Texto de Eduardo Selga publicado no Caderno Pensar, do jornal A Gazeta, em 22 de fevereiro de 2014)
Eduargo Selga é professor de Língua Portuguesa e mestrando em Literatura pela UFES.
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