Tão interessante quanto a conferência “O que é o autor?”, realizada por
Michel Foucault em 1969, na Sociedade Francesa de Filosofia, foi a
intervenção, em forma de debate, de figuras como Lucien Goldmann,
Jacques Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo e J. Wahl, pois de uma forma e de
outra todos os presentes tocaram naquilo que Foucault não falou
explicitamente embora lá estivesse todo seu argumento acerca da questão
autoral ou mesmo a questão do sujeito, a saber: na estrutura, no
estruturalismo.
O principal argumento de Michel Foucault sobre o autor não se centrou
na sua existência ou não existência, na sua morte ou não morte. Foucault
evitou a falsa polêmica, como a de saber, por exemplo, se Deus existe
ou não existe. A premissa que sustentou seus argumentos foi: a questão
que importa não é a da morte do autor, mas a da função que cumpre em um
regime discursivo de uma época, entendendo por este o conjunto de
práticas discursivas que esquadrinha um determinado tempo histórico,
seja sob o ponto de vista da criação, sob o ponto de vista científico ou
mesmo sob o ponto de vista dos discursos correntes no cotidiano das
maiorias.
A questão para Foucault, portanto, era: por que no campo, por exemplo,
da criação literária se permite a presença de um autor experimental,
revolucionário e, por outro lado, no campo discursivo das ciências
econômicas a simples referência a um autor experimental soaria como
absoluta falta de rigor científico? Qual o peso social que tem o
discurso literário em relação ao discurso econômico? Imaginemos, em
todas as faculdades de economia do mundo, o incentivo teórico à ideia de
autoria experimental, insubmissa, iconoclástica? Se isso ocorresse
teríamos economistas que funcionam como verdadeiros guardiães do status quo, da propriedade privada?
Imaginemos, para prosseguir o raciocínio, que, nos cursos de direito, o
rigor, o necessário, o certo fosse o incentivo teórico a um direito
experimental, radicalmente histórico e, portanto, absolutamente aberto a
se rever permanentemente, tendo em vista a igualdade e o fim de
qualquer forma de privilégio? Se isso ocorresse teríamos um Gilmar
Mendes, um Joaquim Barbosa? Por que na literatura se permite e mesmo se
incentiva uma autoria insubmissa, ávida de realizar sátiras com os
burgueses, os sérios, “a moral e os bons costumes” e no campo do direito
uma jurisprudência satírica, apta a debochar dos ricos e dos
privilegiados, desconstruindo juridicamente suas farsas ideológicas, é
absolutamente impossível, nos termos da ordem discursiva do
contemporâneo?
As contradições entre opressores e oprimidos
A função incentivada e justificada teoricamente para o autor num campo
discursivo e noutro, suas semelhanças e diferenças, seus “pode aqui” e
“aqui não” determinam o regime discursivo de uma época e, portanto, a
ordem hierárquica dos discursos, mantida ferreamente com objetivo de
garantir, via saber, os lugares sociais de diferentes perfis humanos:
aqui fica o oligarca, de modo intocável, porque é o que arrisca, o que
investe, o que gera riquezas; ali fica o trabalhador, porque não ousa,
porque é medíocre; porque não tem capacidade de aproveitar as
oportunidades que o mundo da economia oferece.
Ao pensar a questão autoral em termos de função que cumpre o autor num
campo discursivo ou noutro, investigando semelhanças e diferenças,
Foucault se valeu, mesmo que não o tenha admitido, da ideia de
estrutura, tendo em vista a seguinte premissa: existe uma estrutura
social, que é também econômica, que é também mental, que é também
linguística que é também epistemológica, que é também jurídica, que é
também cultural que é, portanto, civilizacional.
Chamemos de mathema essa estrutura social/econômica/cultural de uma dada época. O mathema
estrutural é o que permite que uma dada civilização possa se reproduzir
ao infinito, mesmo diante de injustiças, de contradições, de guerras e
genocídios. O mathema é, portanto, o próprio regime discursivo e sua imanente ordem igualmente econômica, social e cultural.
É precisamente aí, no mathema estrutural, que Marx errou o
diagnóstico ao afirmar que as contradições da civilização burguesa,
estruturalmente inscritas no campo da luta de classes, gerariam quase
que naturalmente os germes de seu fim. Marx errou o diagnóstico porque o
mathema estrutural da sociedade burguesa é o que reproduz sem
cessar as contradições entre possuidores e não possuidores dos meios de
produção; entre opressores e oprimidos, exploradores e explorados.
O atual estágio da civilização burguesa
Apenas uma vontade coletiva (e isso Marx teorizou com singularidade
propositiva), consciente de si, pode mudar o mundo e para tal é preciso
destituir o mathema estrutural de sua época. Para isso, é
preciso inteligência igualmente coletiva para responder de forma ousada
as seguintes questões: qual o mathema de nossa época? Como não reproduzi-lo mesmo pensando que o estamos destituindo? Como propor revolucionariamente outro mathema estrutural, outro regime discursivo outro mundo, portanto?
À primeira questão, elaboremos a seguinte hipótese, como resposta: o mathema estrutural do atual estágio da civilização burguesa é o da reificação de todos e de tudo, reproduzível infinitamente, entendendo por reificação
precisamente a falsificação ideológica que faz com que vivamos como se
não estivéssemos numa estrutura social específica, como se algo pudesse
estar desvinculado do contexto estrutural de sua época. Tudo,
absolutamente tudo, no contemporâneo é reificação: as
identidades de gênero, étnicas, de classe, de nacionalidades; as línguas
e suas variações, os saberes institucionais; o amor, a religião, os
poderes constituídos, o que chamamos de Estado, o que chamamos de
burguesia, de trabalhador, as multinacionais, os perfis humanos de modo
geral, a violência, as guerras; as mercadorias, quem as tem e quem não
as tem e o que acontece, como agem e reagem seus possuidores e seus não
possuidores.
Tudo está reificado porque tudo é vivido como se não
pertencesse a uma dada civilização, como se não fosse parte e
contraparte dela num contexto em que a ilusão desse não pertencimento
constitui a infinita força do mathema estrutural do
contemporâneo: quanto mais saímos pelo mundo como se não fôssemos, nós e
os demais, um pedaço dele, mais o reproduzimos, mais o dilatamos, mais o
eternizamos; mais enfim somos e seremos a função sujeito ou a função
autor da ordem discursiva e econômica de nossa atual época.
Como esse mathema da reificação de tudo e de todos
não surge do nada sua razão histórica é uma só: a intensa divisão
internacional do trabalho que tomou a humanidade toda, que é também uma
divisão internacional dos saberes, das técnicas, das mercadorias, dos
processos econômicos, das identidades e mesmo ou talvez principalmente
das ideologias. O mathema do contemporâneo, nesse sentido, é o da divisão, razão pela qual atuar nela é reforçá-la, é constituir-se como o próprio mathema, parte e contraparte do atual estágio da civilização burguesa.
A mentira da indústria cultural
A única forma de combater o mathema da divisão de tudo e de todos, que é também o mathema da reificação
de tudo e de todos se dá no horizonte igualmente sem fim da não
submissão a ele, o que só é possível não insistindo, não desejando e não
cultivando e não nos capitulando perante a divisão internacional de
tudo e de todos, tendo em vista cada vez mais a produção e a reprodução,
em escala planetária, de mathemas da igualdade, antes de tudo econômica, num contexto de cidadania planetária, partindo com clareza não reificada da seguinte premissa: somos todos terráqueos e todos merecemos viver com dignidade.
Uma questão de método para se contrapor, não nos capitulando, ao mathema da divisão e da reificação,
que seqüestrou toda a humanidade, é esta: as mídias corporativas ou
simplesmente a indústria cultural são na atualidade o epicentro sísmico
do mathema da reificação e da divisão de tudo e de todos, razão pela qual, suas reificadas mercadorias, incluindo redes sociais, uso de celulares e outros artefatos tecnológicos, tornaram-se cem por cento reificadas e reificantes – e não conhecem outra linguagem!
Como a reificação, além de um tremendo engano e autoengano é
também uma escandalosa e não aceitável mentira (além de não aceitáveis
hipocrisias e cinismos), sobre ela podemos afirmar sem medo de errar: as
corporações midiáticas produzem uma indústria cultural planetária
absolutamente mentirosa, cínica, hipócrita, porque só permitem uma
linguagem, a reificação, a divisão, o cultivo de diferenças
isoladas, descontextualizadas, estruturando-nos para nos iludirmos ou
pensarmos (dá no mesmo, nesse caso) que não pertencemos à estrutura ou
ao regime discursivo da civilização burguesa ou que, por outro mesmo
lado, só esse mathema, o da divisão e da reificação é
possível, situação paradoxal porque se estrutura a fim de que venhamos a
crer na civilização burguesa como eterna, o próprio reificado fim da
história, pois, além de reificar, produzir mercadorias reificadas e reificantes (e tudo é mercadoria em seu interior), ela mesma, a civilização burguesa planetária, se constitui como a própria reificação histórica, porque separada da/na histórica, embora seja simplesmente histórica, logo mutável, logo potencialmente passageira.
No horizonte do mathema da reificação, marca
principal do atual estágio da civilização burguesa, a mentira faz parte
do DNA da indústria cultural e, portanto, de suas instâncias promotoras,
no horizonte das mídias corporativas televisivas, cibernéticas,
radiofônicas, fílmicas, gráficas. E como sempre mentira é mentira em
relação a algo, a mentira da indústria cultural do mathema da
divisão como a única hipócrita verdade possível é por excelência em
relação a tudo que não seja ou resista ou se ofereça como alternativa à
divisão e à reificação gerais.
Os vestígios de igualdade conquistados em 15 anos
Sob esse aspecto consideremos (mais uma vez) o caso recente do golpe
oligárquico em curso na Venezuela. O que está em jogo lá é evidentemente
o controle da renda petroleira. Embora esta ainda esteja concentrada
nas mãos da oligarquia, desde o primeiro governo de Chávez
gradativamente parte dessa renda está sendo canalizada para a
historicamente abandonada população venezuelana. Isso é uma verdade
histórica, incontestável, bastemos para comprovar que observemos
qualquer estatística com peso social, no contexto venezuelano da era
Chávez/Maduro. Nunca, em toda história da Venezuela, os recursos
advindos da renda do petróleo foram tão significativos na área da
educação e da saúde públicas; da habitação, da infraestrutura urbana de
transporte coletivo, do cuidado da infância, da velhice, da juventude,
do acesso a alimentos mais baratos. Todas as estatísticas comprovam um
significativo aumento de qualidade de vida da população venezuelana, não
sendo circunstancial que das dezenove eleições (se não me engano) nos
últimos 15 anos a revolução bolivariana perdeu apenas uma.
É, pois, o medo e o ódio à igualdade que movem a golpista oligarquia
venezuelana, marcada por um desespero cada vez maior, seja porque não
tem conseguido virar o quadro eleitoralmente, seja porque tem assistido
com pavor uma gradativa perda do controle sobre a renda do petróleo. É o
desespero dessa oligarquia, taticamente manipulado pelo imperialismo
americano, que o financia e treina, que está nas ruas de Venezuela, de
forma racista, sociopata e extremamente violenta em relação antes de
tudo ao povo simples, seu verdadeiro inimigo de classe.
Como as mídias corporativas só conhecem reificação e como o lado humano da reificação
adorada é o oligárquico, até porque tudo ocorre de oligarquia para
oligarquia, é com a oligarquia venezuelana que elas ficaram e ficarão
sempre, de versão para versão, conversão convertida, razão suficiente
para dizer que tudo, absolutamente tudo que dizem, informam e mostram
sobre o que está ocorrendo na Venezuela é mentira, enganação, reificação exaltada de sua oligarquia.
Para ratificar essa imagem paradoxal por si mesma de uma oligarquia
oprimida pela polícia bolivariana os meios de comunicação oligárquicos
utilizam evidentemente as armas do mathema da civilização burguesa: a divisão e a reificação que dominam o planeta. Como, conforme o que foi dito, a reificação
significa simplesmente o jogo sem fim da descontextualização, tirando
algo de lugar e colocando em outro, estrutura fundamental da atual fase
do capitalismo planetário, não é circunstancial, sob esse ponto de
vista, que seja isto que estejam noticiando (mentindo descaradamente)
sobre o desesperado (e nem por isso menos planejado) golpe oligárquico
na Venezuela: a reificação cinicamente revolucionária de uma
oligarquia que no fundo e no raso vai às ruas para atacar violentamente
todos os vestígios de igualdade conquistados pelo povo venezuelano nos
últimos 15 anos.
Uma urgente lei da comunicação
Para realizar esse surrealismo reacionário, de colocar como vítima os
proprietários dos meios de produção, vale tudo e principalmente a
descontextualização generalizada, não sendo por acaso que boa parte das
imagens que circulam o mundo sobre a Venezuela não tem relação alguma
com as suas manifestações golpistas oligárquicas, pois são imagens
capturadas de outros lugares do mundo, do Egito, da Síria e inclusive do
Brasil, apresentadas como se fossem provas cabais da repressão de um
governo ditatorial – sinal, portanto, que o governo de Maduro está sendo
bastante complacente com os golpistas.
É assim que funciona hoje a reificação das notícias no reino das mídias corporativas: a utilização do mathema da reificação e da divisão infinitamente como tática e estratégia para aprofundar uma humanidade dividida e reificada. Num mundo totalmente reificado a reificação
é a arma contra todo princípio de igualdade, não sendo circunstancial
que o principal inimigo desse modelo é: a contextualização, num contexto
em que contextualizar é no limite contextualizar no âmbito maior da
civilização burguesa.
Se a Venezuela tem conseguido resistir a esse ataque oligárquico
planetário, ao mesmo tempo midiático, econômico, cultural, é porque lá,
como em lugar algum no mundo, a revolução bolivariana produziu e tem
produzido o que Gramsci chamou de bloco ideológico, o que só se consegue
politizando a população contra a reificação generalizada da civilização burguesa.
É apenas por isso, e não é pouco, que Maduro ainda não foi derrubado pelo golpe oligárquico.
Por outro lado, a maior vulnerabilidade de Venezuela está relacionada
com outro tipo de renda: a renda do espectro radioelétrico, ainda
oligarquicamente concentrada, pois mais de oitenta por cento de seus
meios de comunicação se encontram sob um restrito e golpista domínio
oligárquico.
O governo bolivariano está na obrigação, para sobreviver e prosseguir avançando contra a reificação
generalizada, de produzir uma urgente urgentíssima lei dos médios,
tornando evidente como o reificado direito oligárquico à expressão nada
mais é que o próprio lugar da censura – e do golpe contra um mundo de
justiças, porque de igualdades.
(Texto de Luís Eustáquio Soares)
***
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor do Departamento de Letras da Ufes.
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