Muita gente não sabe, mas existem algumas figuras históricas que optaram por não se alimentar de animais. Gandhi era meio puxado no “veganismo” e não consumia nem mesmo ovos ou leite e seus derivados. Contam que uma sobrinha dele teve um problema de saúde e o médico receitou uma dieta com ovos, inclusive a casca. Gandhi foi contra, a menina fora criada em sua casa e nunca havia se alimentado de nenhum ser vivo. O médico então sugeriu separar a galinha do chefe do terreiro, não sendo “galado” o ovo nunca geraria uma vida, era só – como dizia Sonia Hirsch - a “menstruação da galinha”. E parece que foi o que salvou a moça...
Existem várias explicações para não se alimentar de animais, a maioria defende uma forma de “vida mais saudável”. Na contramão alguns médicos lembram que o consumo de determinadas proteínas da carne são indispensáveis ao bicho homem, sei até de um problema que rolou com um amigo que resolveu “vegetarianizar” e os “países baixos” pararam de funcionar, voltou correndo pra churrascaria mais próxima. Os mais espiritualizados alegam não ter o direito moral de mandar outro ser vivo para a pança; utilizam, inclusive, o mandamento bíblico “não matarás”. Nesse sentido um vegetariano controverso foi Adolf Hitler. O homem mais odiado do século passado devia ter nojinho de detonar uma picanha, respeito à vida é que não era...
Machado de Assis escreveu ser “carnívoro por educação e vegetariano por princípio”, porque o costume de matar animais para comer era tão arraigado e comum em fins do século dezenove que beirava a falta de educação recusar um bife acebolado ou uma galinha ao molho pardo. Nesse quesito avançamos pouco, em fins do século vinte sofri na pele semelhante assédio da convenção social carnívora. Deixei de me alimentar de animais mortos durante uns doze anos e sofri todo tipo de pressão para recair pelo menos na penosa de molho sangrento, mas reagia com bom humor e sacanagem: “galinha eu só como viva”. Também sofri “bullying” de piadinhas sem graça, a mais comum era dizer que eu levava a namorada pra trás da moita e comia a moita.
Com ancestrais que praticavam o canibalismo, tem muita importância esse devorar no status social patropi. Aqui no Brasil – sei lá como é em outros lugares - comer carne diariamente e fazer grandes churrascos tem a ver com a conquista de certo padrão de vida elevado e a maioria parece pensar que é indispensável se alimentar de proteína animal. O mais comum é crer que aquele “não matarás” referia-se exclusivamente a questões entre humanos e que os animais foram colocados na Terra para servir ao homem, especialmente dentro da panela. Por falar nisso, uma das questões mais controversas envolve, obviamente, a figura de Jesus: será que “o messias” comia carne ou não? A discussão pega fogo quando se fala no episódio da multiplicação dos peixes.
Lá nos anos oitenta Cazuza cantou “canibais de nós mesmos, antes que a terra nos coma”, o “Agenor Exagerado” via todos como parte de uma grande cadeia alimentar e talvez não estivesse errado. Aliás, “Onde se ganha o pão não se come a carne”, pode não ser por acaso que a forma mais chula e trivial de se referir ao sexo no português BR é “comer”. Para alguns “silvícolas” dos tempos do descobrimento, devorar um inimigo valente significava tomar posse de suas habilidades. Tem vegetariano que concorda com isso, afirmam haver ligações sutis entre a dieta carnívora e o comportamento depressivo e, sobretudo, violento. Um criador de cães de raça certa vez me disse que via verdade nesse último, os bichos alimentados com carne eram muito mais agressivos e perigosos do que os alimentados somente com ração.
Estamos submersos em uma sociedade carnívora, competitiva e francamente violenta; o que não sabemos ou podemos afirmar é até onde uma coisa tem a ver com a outra. Fato é que muita gente adora certos animais e os defende com todo amor do mundo e, do mesmo jeito, sem nenhuma culpa come outros. O problema talvez seja a escala industrial na qual os bichos são mortos e transformados em produtos, incógnitas embalagens plásticas no supermercado. Dificilmente alguém conseguiria fazer relação entre um grande pedaço abstrato de carne e uma alegre vaquinha pastando com seus filhotes, ou olhar pela janela de um carro e ao ver uma boiada pensar somente que aquilo seria uma “plantação de churrasco”.
Um vez meu primo Enyldo me disse que era naturalmente carnívoro, porque quando um bife fritava na panela sua boca se enchia de saliva e o mesmo não acontecia com uma fruta pendurada na árvore. Ponderei que a comparação não era justa, que quando ele visse uma vaquinha pastando tranquila e sua boca salivasse num desejo doido aí sim, estaria pronto para voltar às cavernas. Matar um bicho, tirar uma vida com as próprias mãos, não é coisa tão fácil e agradável quanto se fantasia. Se todo mundo que sente um desejo alucinado de comer uma carninha precisasse pegar um porrete, um facão e ir matar e destrinchar um grande mamífero o mundo estaria bem mais cheio de vegetarianos. É preciso pensar nesse fato e em suas implicações: no que fazemos e suas consequências e no que aceitamos que os outros façam, sendo coniventes e achando que não somos culpados por não termos parte nisso.
Em tempo, hoje sou como o Machado de Assis, uma espécie de vegetariano platônico, mas para corroborar minhas palavras - admito que o texto ficou longo - vou almoçar no Verde Perene. Para quem não conhece, é um ótimo restaurante vegetariano de comidas orientais. Acho que são coreanos do Japão ou da China. Fica na escadaria do Rosário, no centro de Vitória, aquela rua atrás do Theatro Carlos Gomes. O preço é muito bom, a comida é uma delícia e, melhor de tudo: viva! Se tiver preguiça de ir ao centro da cidade (downtown periferia, hehehe), vá ao Hortomercado da Praia do Suá, o Sol da Terra do Marcos Ortiz reabriu lá e a comida está uma maravilha como sempre.
(Texto de Juca Magalhães)
Para ler a crônica "FÚRIA RACIONAL - PARTE I", DE JUCA MAGALHÃES, clique no link a seguir: http://outros300.blogspot.com.br/2014/02/cronica-de-domingo-furia-racional-parte.html
Juca Magalhães é músico, escritor e ex-integrante do grupo “Pó de Anjo”. É um dos mais requisitados mestre de cerimônias do Estado, com atuação em eventos públicos e privados. Autor do blog a “Letra Elektrônica” e textos publicados no Caderno Pensar, do Jornal A Gazeta. É autor dos livros “O Livro do Pó” e “Da Capo - De Volta às Origens da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo”. Magalhães também trabalha na divulgação e desenvolvimento de projetos voltados para educação e performance de música, sobretudo canto coral, clássica e popular.
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