"O cavalheiro teme três coisas. Teme o Decreto do Céu. Teme grandes homens. Teme a palavra dos sábios. O homem vulgar, sendo ignorante do Decreto do Céu, não o teme. Trata grandes homens com insolência e as palavras dos sábios com ironia”. (Confúcio, Os Analectos. Livro XVI, 154.08)
Eu não fui pra rua no histórico “vinte de junho” de 2013, fiquei em casa que nem um velho reclamão acompanhando os “fatos” pela telê. Com a progressão regressiva dos protestos (dá-me de oximoros) percebi pela rua que as “manifestações” acabaram virando uma baita curtição para a “juventude”. Aquilo que chamávamos antigamente de “a maior zona” ganhou status de respeitabilidade (ou “cidadania” como dizem agora). A rapaziada parou o trânsito, depredou o patrimônio público e mostrou o seu lado Macunaíma de protestar. Alguns cartazes traziam ameaças cheias de graça (outro oximoro), tipo aquele: “Agora a porra ficou séria!”
Tive oportunidade de ver de perto os barulhentos e exuberantes manifestantes e lembrei muito da “nossa linda juventude”. Formávamos um grupo parecido com aquele, só que éramos arremedos mal acabados de roqueiros, tidos como alienados, apelidados com desdém de rebeldes “sem calça”. Mas a formação era quase a mesma: um núcleo com os líderes e mentores, o bolo quatro ou cinco vezes maior dos amigos seguidores (como tietes) e um ou dois bobos da corte fazendo palhaçadas, porque talvez fosse a única coisa socialmente criativa que conseguiram tirar da cartola.
Em meados do ano passado tive um contato imediato do terceiro grau com os tais “manifestantes”, foi numa reunião pública na Praia do Canto. O objetivo era discutir questões bastante específicas do bairro, mas a “voz da juventude” não quis perder viagem, abraçados, cantaram a uma só voz: “O movimento não pode parar, passe livre já!” Foi até bonito - Not! Ou como dizem agora: “Só que não” -, afinal, que catzo tinha a ver uma reivindicação daquelas numa reunião de comunidade? O tradicional seria ir se queixar ao Bispo ou talvez fosse mais coerente fazer barraco no Procon porque a seca de verão fez a maconha subir de preço.
A necessidade de marcar presença era telegrafada e, aparentemente, deliciosa a sensação de potência ante o receio contido no rosto de autoridades constituídas. Existe aí uma relação que todo mundo sonhava em ter na adolescência, especialmente na sala de aula. Vai entender, portanto, a razão de tanta condescendência para com o que antigamente seria visto como um “bando de guris bagunceiros”. Nos tempos da educação na vera seriam calmamente convidados a se retirar do meio dos adultos O que mudou desde então nessa relação? Conquista da cidadania, da democracia? Eu não sei não... Aliás, você viu o cabeção por aí? Eu não...
De acordo com a ideologia democrática todos têm o direito a participar de reuniões públicas organizadas pelo Estado e manifestar abertamente suas indignações. Porém, é preciso haver um fio qualquer de coerência, caso contrário, fica parecendo o que pareceu naquele dia: um grupo de estudantes secundaristas e universitários protestando animados por uma espécie de compulsão da moda. O engraçado é que depois de incorrerem em sedição (perturbação da ordem) e serem, consequentemente, retratados como arruaceiros (bagunceiros da rua), passaram a reclamar dos jornalistas, em seu entender expresso em sonoro uníssono: “mídia, fascista e sensacionalista!”.
Apesar de parecerem rapazes e moças idealistas e bem intencionados, os manifestantes não resistiram à tentação, no final da reunião, de agredir verbalmente as autoridades presentes. Montaram um cerco na saída, fizeram jogral “bunitinho” e aos berros chamaram quem passou por perto de “safado”, “ladrão” e por aí vai. Pode até não ser, mas toda aquela revolta gratuita - ninguém tinha chamado a mãe deles de “bunita” – pareceu mesmo coisa de “rebelde sem calça”. Devem ter saído da reunião direto para algum boteco da Rua da Lama, para “bebemorar” e bravatear o fato de terem dito o diabo a alguém que mal sabiam quem era ou o que fazia...
Esse tipo de afronta, especialmente quando acontece assim, sem muito sentido, é uma forma muito antiga do jovem (citação em epígrafe) vivenciar o rito de passagem para a idade adulta. A tentativa ingênua de obter, ou a ilusão de criar, uma imagem pública atacando aqueles que já a possuem. Qualquer um que viveu seus quinze minutos de fama sabe como isso é banal e, depois de certo tempo, cansativo. Outra forma “inovadora” que encontraram foi “ir pra rua” arrebentar janelas de prédios públicos e danificar monumentos históricos, assim percebem que estão fazendo alguma coisa concreta e serão levados a sério. O problema é que o que eles entenderam por fazer, era na verdade: desfazer, destruir.
Sugiro aos amigos – e aos manifestantes que estiverem putos dentro das calças me lendo - assistir ao filme “The Pervert’s Guide To Ideology” (2012) do Esloveno Slavoj Zizek. Esse “pensador”, digamos assim, percebe que, mesmo as convulsões sociais mais caóticas são reações das pessoas “presas na ideologia predominante, sem os meios de perceber o que esta ideologia demanda deles e reagem de forma selvagem, porém ainda inseridos no mesmo espaço ideológico. É o resultado de uma constelação muito específica, onde a grande ideologia - que demanda justiça, igualdade, etc. – se desintegra, então não importa mais o resultado do protesto”.
Passada a convulsão nacional que levou às grandes manifestações do ano passado e que se espalharam por muitas cidades grandes e pequenas, restou a velha e incômoda sensação de que “algo tem que mudar para tudo continuar do mesmo jeito”. A aprovação da presidente voltou a subir nas pesquisas, assim como voltaram a subir a gasolina, a cesta básica etc. O povo continua acreditando, desejando e comprando tudo o que a “indústria” põe ao alcance de suas mãos, embora nem sempre possuam os recursos necessários para pertencer ao imaginário de certa elite. Ou seja: o pior não é ter a ilusão de estar fora do jogo ideológico predominante, o mais perigoso é estar atolado até o pescoço e não o perceber.
(Texto de Juca Magalhães)
Juca Magalhães é músico, escritor e ex-integrante do grupo “Pó de Anjo”. É um dos mais requisitados mestre de cerimônias do Estado, com atuação em eventos públicos e privados. Autor do blog a “Letra Elektrônica” e textos publicados no Caderno Pensar, do Jornal A Gazeta. É autor dos livros “O Livro do Pó” e “Da Capo - De Volta às Origens da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo”. Magalhães também trabalha na divulgação e desenvolvimento de projetos voltados para educação e performance de música, sobretudo canto coral, clássica e popular.
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