A
Via Láctea. Legião Urbana (Composição: Dado Villa-Lobos/
Renato Russo/ Marcelo Bonfá)
Quando
tudo está perdido
Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Sempre existe uma luz
Mas não me diga isso
Hoje a tristeza não é passageira
Hoje fiquei com febre a tarde inteira
E quando chegar a noite
Cada estrela parecerá uma lágrima
Queria ser como os outros
E rir das desgraças da vida
Ou fingir estar sempre bem
Ver a leveza das coisas com humor
Mas não me diga isso
É só hoje e isso passa
Só me deixe aqui quieto
Isso passa
Amanhã é um outro dia não é?
Eu nem sei porque me sinto assim
Vem de repente um anjo triste perto de mim
E essa febre que não passa
E meu sorriso sem graça
Não me dê atenção
Mas obrigado por pensar em mim
Quando
tudo está perdido
Sempre existe uma luz
Quando tudo está perdido
Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Eu me sinto tão sozinho
Quando tudo está perdido
Não quero mais ser quem eu sou
Mas não me diga isso
Não me dê atenção
E
obrigado por pensar em mim
Não me dê atenção
E
obrigado por pensar em mim
Essa canção foi tirada do CD A tempestade ou O livro dos dias, lançado
no ano da morte de Renato. Esse e o Uma
outra estação, lançado no ano seguinte, foram escritos e compostos entre
1994 e 1996. Russo “nunca havia deixado
de se expor através de sua arte, mas, em letras com A via Láctea e Clarisse, ia ainda além. Tanto era assim que ele mesmo duvidava até onde devia
ir” (DAPIEVE, 2000, p. 158). No enterro do filho, Maria do Carmo, emocionada,
alivia-se no lamento da perda: “meu filho
só foi feliz quando era criança. Tudo o angustiava, até uma guerra lá na
Conchinchina. Nos últimos meses, estava deprimido, sabia que estava perto do
fim” (REVISTA CARAS, 1996, p. 20), um retrato de como foi para Renato nesse
período de composição e produção dos seus últimos trabalhos. Dapieve, biógrafo
oficial de Renato, relatou, ainda, em seu livro as impressões que os músicos
que o acompanhavam nas gravações tiveram naquela época: “(sic) Renato, na verdade, apareceu muito esporadicamente no estúdio.
Quando Marcelo [Bonfá, baterista da Legião] o reencontrou no AR, depois de
algum tempo sem vê-lo, ficou impressionado, mal impressionado. ‘Ele estava num
sofá, muito magro’, contaria. ‘E é incrível porque aqueles discos têm a voz
mais fraca nas linhas melódicas mais difíceis’. Trilha [Carlos Trilha,
tecladista que trabalhou com Renato em seus discos solos e nos últimos
trabalhos da Legião] também ficou mal: ‘Ele não estava mais dando conta de
cantar. Fui chorar e tomar um banho’. Renato registrou quase tudo de primeira
[esse registro de primeira é conhecido também como voz guia], e não voltou para
regravar nada, exceto A via Láctea,
que, contra a opinião da EMI-Odeon, queria transformar na música de trabalho do
CD. Quando cantou ‘hoje a tristeza não é passageira / hoje fiquei com febre a
tarde inteira / e quando chegar a noite / cada estrela parecerá uma lágrima’,
Renato estava efetivamente com febre. ‘A música era muito triste, uma bandeira
completa’, lembraria Rafael [Rafael Borges, produtor executivo da Legião]”
(DAPIEVE, 2000, p. 158-159)
Essa canção faz menção a muitos
lamentos, o mais evidente é o da morte. É ainda um retrato de um protesto
politicamente romântico de uma lamentação. É o encontro da esperança com a
realidade crua de não se poder fazer nada, é a contradição que tanto fez parte
da vida e da obra de Renato. É uma canção que fala abertamente da doença,
morte, de amor.
A canção começa com uma espécie de
mote: “quando tudo está perdido”. Quando algo está perdido, há a esperança
de encontrá-lo, mesmo sendo muito difícil, há essa esperança. Mas quando tudo está perdido? O que resta? Nesse
tudo entra a vida? A Via Láctea, em
latim, significa “caminho de leite”. Já no título se percebe o caráter uma viagem
para outro plano. Nesse caminho para luz, o qual sugerimos como interpretação,
supomos que seja uma tentativa de auto-tranquilidade, de paz, de esperança, mas
com um fundo melancólico de lamento. Segundo Dapieve, Renato teria dito à mãe
que já havia conversado com Deus sobre tudo o que havia feito de certo e errado
e que estava em paz (DAPIEVE, 2000, p. 166).
Para afirmar que não se pode nunca
perder a esperança, o eu que fala nessa canção coloca uma situação difícil, mas
de momento: “quando tudo está perdido /
sempre existe um caminho / quando tudo está perdido / sempre existe uma luz”,
quando quer dizer naqueles momentos
em que seu interlocutor ou seu auditório está passando dificuldades, sempre há uma saída, ou seja, um caminho
e uma luz são constantes, motivo para não perder a esperança. Nessa
argumentação, o “eu” (chamaremos de “eu” a pessoa que fala na canção,
equivalendo-se ao termo orador e
“eus” das análises das outras canções) coloca uma situação difícil, mas a
caracteriza como sendo um momento, devido à escolha do denotativo então e modifica esse estado com o
advérbio de tempo sempre.
Porém, esse mesmo “eu”, logo em
seguida, refuta querer conhecer esse subterfúgio psicológico de esperança.
Utilizando-se do operador argumentativo mas,
ameniza a situação e pede para que lhe diga aquelas coisas: “mas não me diga isso”, verso que
acompanha todas as respostas ao mote, como se não quisesse aquela consciência.
Nesse disco, em cada canção, há um
verso, uma estrofe que percebemos um sinal de despedida. Essa canção inteira
transmite essa idéia. É indissociável a canção dos últimos dias de Renato. É
como se depois de ler sua biografia e ouvir a música, percebe-se em cada
contorno seu as crises sofridas pelo cantor. A febre é o problema, e a mesma representa todas as doenças que
atemoriza esse “eu”. Nos versos “hoje a
tristeza não é passageira / hoje fiquei com febre a tarde inteira / e quando
chegar a noite / cada estrela parecerá uma lágrima”, percebemos algumas
marcas argumentativas. Nesse primeiro verso, quando afirma que hoje é
diferente, subentende-se que, ao frisar esse tempo, em outros momentos aquela
tristeza fora passageira, pois nesse mesmo hoje
sua doença durou toda a tarde.
Um detalhe muito significativo é a
escolha pelos advérbios de tempo e os denotativos de situação que permeiam toda
a canção. Nesses versos, o “eu” usa dois momentos do dia: tarde e noite para
colocar duas situações de sua vida. Assim, somos inclinados a identificar como
um lamento de proximidade da morte. A tarde inteira a febre o acompanhou,
proporcionando-lhe uma tristeza que não é passageira. Mas, quando chegar sua
morte, a noite, cada estrela, da Via Láctea ou mesmo de todo Universo, “cada estrela parecerá uma lágrima”, um
lamento.
Esses próximos versos encontram
eco nas palavras de Maria do Carmo, acima citadas, onde é testemunhado toda
angústia que o filho tinha ao sentir o mundo. Em “queria ser como os outros / e rir das desgraças da vida / ou fingir
estar sempre bem / ver a leveza das coisas com humor”, é não só uma referência
a esse estado de doente terminal e deprimir-se com essa impotência, como também
ver todos os desastres e não poder fazer nada. Em entrevista a Ricardo
Alexandre, a 26 de setembro de 1996, Renato justifica a melancolia que o cerca:
“Logo depois teve o acidente com os Mamonas. (...) Eu fiquei muito surpreso que
ninguém tenha notado a importância deles como evento cultural brasileiro. (...)
Foi horrível, de qualquer forma. Aí, vieram as enchentes, aí a chacina no Pará.
E este disco novo, dizem, está tão melancólico, tão triste, tão não-sei-o-quê,
que está perfeito para todos esses problemas que a gente está tendo de
enfrentar” (RUSSO, 1996, p. 261).
Novamente o “eu” refuta a idéia
posta, “mas não me diga isso” e dessa
vez justifica, ainda na esfera do tempo, denotando uma falsa momentaneidade dos
pensamentos: “é só hoje e isso passa / só
me deixe aqui quieto / isso passa”. Para argumentar essa tranqüilidade o
“eu” apela para uma informação de senso comum e faz uma pergunta ao seu
interlocutor, deixando para a consciência dessa, a afirmação do argumento: “amanhã é um outro dia não é” (grifo nosso).
O tempo, co-protagonista dessa
canção, é tão rápido e inconstante que o “eu” nem sabe por que se sente assim e
quando diz: “vem de repente um anjo
triste perto de mim / e essa febre que não passa / e meu sorriso sem graça”
já indica não consegue mais esconder a sua situação e em um último argumento,
desmonta seu interlocutor com uma ordem e um agradecimento: “não me dê atenção / mas obrigado por pensar
em mim”. Não quer que ninguém o ouça, se importe com ele, uma tentativa,
vã, de fortaleza, mas fica “feliz” por fazer parte dessa preocupação alheia.
No desfecho da canção o “eu”
repete o que disse durante toda canção em versos casados que representam os
autos e baixos que a doença lhe proporcionava, repetindo no fim a ordem e o
agradecimento: “quando tudo está perdido
/ sempre existe uma luz / quando tudo está perdido / sempre existe um caminho /
quando tudo está perdido”, acrescentando sua condição de solidão e de não
mais querer aquele sofrimento, “eu me
sinto tão sozinho / quando tudo está perdido / não quero mais ser quem eu sou /
mas não me diga isso / não me dê atenção / e obrigado por pensar em mim / mas
não me diga isso / não me dê atenção / e obrigado por pensar em mim”.
A teoria da literatura lírica tem
como uma de suas regras não confundir o “eu lírico”, a voz que fala na poesia,
com o autor. Mas, no caso de A Via Láctea,
entendemos que o lamento é um dêitico e que remete, não ao autor ou cantor,
Renato Russo, mas o outro habitante do seu corpo, Renato Manfredini Júnior.
(Texto de Marxwel Alves Pantaleão)
Marxwel Alves Pantaleão, formado em Letras Português pela UFES, é professor de português e literatura. Além de poesia, escreve contos, crônica e letras de música. Não se considera um poeta, mas sim um fascinado pelas letras. Gosta de Legião Urbana e todas as vertentes do Rock. No romantismo e no Simbolismo se encontra, mas flerta com o modernismo. Mantém um Blog na rede (www.marxletras.worpress.com) onde publica as Letras dele mesmo e de seus heterônimos (sim, ele gosta de Fernando Pessoa e se acha!).
Muito bom!
ResponderExcluirPegando um gancho de Fernando Pessoa, Renato fingiu sentir a dor que, deveras, sentia. E eu a sinto toda vez que o ouço.
DESEMARANHAMENTO DA ÁGUA A ÁGUA VAI DESAPARECER EQUAÇÃO DO
ResponderExcluirDESEMARANHAMENTO DA ÁGUA
D=XH2O÷YTERRA=ADI ÁTOMOS DIVIDIDOS E
INVISÍVEIS
LEGIÃO URBANA RENATO RUSSO BRASÍLIA-DF