Sandro Bahiense é professor,
bibliotecário e amante das coisas que envolvam escrita. Lançou em 2008, em
parceria de Ricardo Salvalaio e de mais 7 colegas poetas, a coletânia de
poesias "8 Vezes Poeta", trabalho em que pôde expor um pouco de seus
sentimentos e arte. Ficou conhecido entre os colegas da UFES por fazer uma
crônica para cada um deles. Além de crônica e poesia, Sandro também escreve
artigos de opinião, contos e máximas. Tais trabalhos podem
ser vistos em seu próprio blog cujo endereço é http://sandrobahiense.blogspot.com/. Sandro trabalha também, claro, neste blog como
um dos colunistas. Confira, abaixo, o conto “Michael
Douglas Day”:
MICHAEL
DOUGLAS DAY
Michael Douglas ator norte americano recentemente diagnosticado (e dizem
curado) de um câncer atuou em 1998 num filme chamado "Um dia de
fúria". O enredo deste filme era de um homem que, saturado pelo
massacrante dia a dia de nossa sociedade moderna, decide se rebelar contra o
sistema provocando as mais loucas e inusitadas situações. Dez anos depois
Charlie, aficionado fã do filme, decide criar um site intitulado "Michael
Douglas ouve você" onde pessoas do mundo inteiro entram literalmente para
desabafar os seus problemas ocorridos por causa do sistema. Não valiam
desabafos de assuntos pessoais. Somente desabafos referentes a problemas por
causa do sistema seriam aceitos e rígidos moderadores cuidavam para que tal
regra fosse cumprida a risca.
Audrey uma jovem da Austrália teve uma idéia, a criação de um dia em que
todos colocariam em prática o seu dia de fúria batizado de "Michael
Douglas day". Claro que essa fúria seria bem mais branda para que ninguém
terminasse como o personagem do filme (acabou assassinado). Charlie comprou a
idéia e passou a divulgá-la no site. Logo decidiu que a data seria em 26 de
novembro, data de aniversário de Audrey, numa espécie de homenagem a ela. O
número de pessoas que afirmavam por em prática tais ações foi enorme e estimou-se
que milhares de pessoas pelo mundo todo teriam seu dia de fúria no dia 26.
Quando o relógio deu zero hora do dia esperado Charlie mal se agüentava
de curiosidade, afinal pelo fuso horário Audrey e outros cidadãos da Oceania e
Ásia já deveriam ter começado seu dia de fúria. Como uma peça do destino quase
que Charlie teve seu dia de fúria iniciado dentro de sua própria casa, pois tamanha
foi a quantidade de acessos que seu site deu pane. Teve que se controlar,
afinal ele deveria ser o organizador daquilo tudo e não poderia deixar seus
seguidores na mão. Criou um site alternativo e contactou membros da rede
mundial de computadores para resolver o problema. Recebeu a informação que o
problema que acontecia em grande parte dos Estados Unidos fora provocado por um
japonês que, irritado por ter perdido dinheiro em sites de bolsas de valores,
decidiu tirá-los do ar sem perceber que tiraria a todos (inclusive o site de
Charlie) por tabela. Quando soube da versão, Charlie se acalmou e tratou de dar
a notícia a todos através de um site alternativo que logo teve um número de
acesso recorde.
Porém o criador do site continuava curioso esperando por notícias de
Audrey que não as mandava. Enquanto não recebia notícias da menina, Charlie se
deleitava com as outras notícias. Chandok um rapaz da Índia, irritado com o
grande número de ratos que povoavam sua vila, decidiu prende-los para soltá-los
posteriormente em plena sede do governo local causando confusão e o fechamento
da repartição. Outro indiano entrou depois no site para dizer que Chandok
estava preso e que ele e outros membros do site estavam se mobilizando para ir
protestar em frente à cadeia (cada uma com seu ratinho na mão para dar impacto,
ele disse). Charlie sorriu largamente e podia imaginar a cena.
Daipú um rapaz tailandês que perdeu o emprego por causa de uma mulher
que dormia com o chefe, tirou foto dos dois nús e colocou num out door para a
cidade inteira ver (a mulher dele lhe deu dois tapas e o expulsou de casa, ele
disse no post). Já Kalua de Samoa Ocidental disse que, com a ajuda de dois
amigos, quebrou todas as lâmpadas dos postes de sua cidade, pois os morcegos
estavam, por causa delas, perdendo a capacidade de viver e procriar, pois
batiam nas coisas e acabavam se machucando ou morrendo (os humanos se preocupam
tanto com eles próprios que se esquecem da natureza e isso me deixa furiosa)
afirmava.
Outros depoimentos chocavam Charlie, como o de Stewart um Neozelandês
que cortou o próprio pênis (num ato de fúria), pois não queria se casar com uma
jovem (ele era gay, mas seus pais não aceitavam sua opção e queriam obrigá-lo a
viver com a moça) ou de Branton um australiano que acabou morto pela polícia ao
tentar furtar caça níqueis (que só o roubavam e que era hora dele recuperar o
que era dele) palavras do rapaz antes de ser alvejado pela polícia. Posts
pipocavam no site e Charlie temia perder o controle da situação.
Mas antes que a preocupação o consumisse por completo, eis que chega o
post de Audrey. A jovem diz que seu dia de fúria iniciou quando ela começou a
abrir os presentes (todos me indicavam caminhos a seguir, como o presente do
meu pai, um ursinho vestido de médico, ele não poderia ser mais sutil?)
ironizou (o estojo de maquiagem da mãe sempre induzindo que a aparência é tudo)
e o cd de Lady Gaga dado pela irmã (pelo amor de Deus o que era aquilo?!? Quem
disse que eu tenho que gostar desta desmiolada que se veste com roupa de carne
viva?). Ela disse que abriu tudo e sorriu. Voltou para o quarto, arrumou suas
coisas em uma pequena mochila, raspou o seu longo cabelo loiro, rasgou sua
calça na altura dos joelhos e saiu. Contou aos pais, que estavam estutepáfitos
com aquela sua imagem, sobre o dia de fúria e disse que, apesar de sua própria
sugestão, faria diferente. Ela teria uma vida de fúria (e não só um dia), e
saiu (eu só sabia o que eu não queria) disse. Levei o note book e o 3g só por
sua causa, disse ela, meio que se defendendo por ter ficado com um aparelho que
traduz futilidade e consumismo. Você saberá de mim, disse com ar misterioso
(estou quebrando meu note book bem na frente da loja de eletrônicos mais
populosa, não antes de fazer um discurso contra a modernidade) afirmou. No
final apenas um "até breve".
Aquilo intrigou e preocupou Charlie. Seu sonho e de Audrey havia
realmente saído de controle. Notícias de prostitutas agredidas, lojas de discos
destruídas, bibliotecas queimadas, intoxicações, mortes, assassinatos, foram
atribuídas ao Michael Douglas day. Charlie não conseguia ficar furioso - somente
triste - e arrependido por tudo o que acontecia.
Eram cinco da tarde, note book aberto no site, quando a campainha
daquela típica casa do Arizona tocou. Surpreendentemente era Audrey. Ela
segurava uma arma calibre 22 em sua mão. Charlie não entendeu. Ela se apresentou,
elogiou a agilidade das companhias aéreas, e entrou. Surpreso ele perguntou do
porque daquilo. Viu como as coisas têm acontecido pelo mundo? Perguntou ela. Vi
sim, respondeu Charlie tomado pelo medo. Aquele cara que colocou coco dentro
dos hambúrgueres lá no Brasil foi demais, foi o que eu mais gostei, disse ela
com semblante satisfeito. É, respondeu Charlie apreensivo. Porque essa arma?
Novamente questionou ele. Me diga Charlie você está arrependido não está? Você
vai cancelar o site não vai? Não sei, limitou-se a responder o rapaz. Não minta
pra mim! Gritou ela nervosa. Charlie fechou os olhos até quase não vê-la. O
suor na testa o denunciava, estava no limite do pânico. Trêmulo, decidiu tomar
coragem e disse que sim, que iria acabar com o site e que estava arrependido.
Não era o que eu queria, terminou ele. E você acha que se o personagem do
Michael Douglas tivesse se arrependido nós veríamos aquele filme? Teríamos o
site? O Michael Douglas day? Não meu caro, não teríamos. Sabe o que me deixa
furiosa de verdade? Gente covarde. Acho que é hora de começar realmente o meu
dia de fúria. Audrey deu cinco tiros em Charlie que morreu na hora. A jovem
levou o corpo para a garagem. Sentada em frente ao computador ela só dizia:
Isso não pode parar... Isso não vai parar...
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