sábado, 20 de julho de 2013

LICENÇA PARA CONTAR: SARAH VERVLOET


Sarah Vervloet nasceu em Vila Velha, no Espírito Santo, em 1989. É graduada em Letras-Português pela UFES e atualmente cursa o Mestrado em Letras/ Estudos Literários na mesma universidade. É professora e também escreve irregularmente. Foi contemplada em um concurso de Literatura da Secretaria de Cultura do Espírito Santo, na categoria contista estreante e seu livro está no forno. E-mail:sarahvervloet@gmail.com e Blog: http://chadechama.blogspot.com.br. Confira, abaixo, o conto “Um dominó para Tolstoi”:

UM DOMINÓ PARA TOLSTOI

Não me parecia que todas aquelas pedras de marfim diziam qualquer coisa, a não ser um pálido conjunto de paralelepípedos, sem estratégias. Vinham-me poucas, quase nenhuma estratégia à vista para este ou aquele outro jogo a que me pertencia: o amoroso. Quando se aproximou de mim, o senhor sorria e trazia um gorro exorbitante, feito de pele de coelho. E misteriosamente nada me disse, apenas misturou todas as peças com paciência e olhos negros. Eu desviei o olhar por insegurança e, em seguida, percebi que estávamos numa fria Rússia. Pude respirar o frio das lembranças calorosas. Eram momentos que não necessitavam do frio, já que havia alguém com quem trocar palavras de calor. A memória congelava-se a cada tentativa de lembrar, lembrar e lembrar.

Lembro-me que perguntei a mim mesmo se ela estaria sentindo o mesmo frio que eu. O jogo estava armado. Um duplo-seis dispunha-se elegante. Perguntei de Ana ao homem, mas não obtive sucesso. Só restava prosseguir naquela nebulosa mesa sem tabuleiro. Minha ponta de seis formava um seis-três, que completava um três-cinco e depois um cinco-dois. Em que momento trataríamos de nos cumprimentar modestamente? Sufocava-me tudo aquilo. Eu havia de ganhar-lhe a partida? Olhei-te novamente e nada consegui extrair. Equilibrava-me entre jogar e compreender onde estava Ana.

- Tragam-me uma vodca! Gritei, perdendo o controle, feito Nicolau.
O senhor, que ainda não se encontrava sem o gorro, continuou estático e analisou suas possibilidades na jogada. “Não é possível que ele tenha estratégias”, pensei inocentemente. Eu tinha três rodadas em mão, e não sabia como proceder. Tentava chamar-lhe a atenção de todo tipo, embora estivesse exausto para persistir:
- O gelo explodiu teus miolos? Por Deus! Pare com este jogo ridículo e diga-me como poderei ver Ana. Não me faças de tolo, eu imploro.

O homem só precisava de uma ponta de cinco e, como a neve exagerada lá de fora, vieram duplos de quatro para ele. Houve um fecha.
- E então? Caiu-me uma lágrima de pavor pelo que pudesse suceder.
 Ele juntou as pedras, uma a uma, com muita cautela. Começou a alinhá-las em pé, construindo uma sequência holandesa. Já não tentava entender a que filete de tempo nos dedicávamos, tampouco tinha forças para sair dali. Quando, por fim, todas as peças estavam dispostas em fileira, à semelhança de um exército russo, o senhor bebeu o último gole de vodca do meu copo e levantou-se. Olhou seriamente para mim e tocou a primeira pedra branca da fila de outras pedras brancas. O exército se desmanchava diante dos meus olhos enquanto o senhor saía pela porta da frente. Eu o seguia, preocupado com o término da queda de todas as peças. Ana estava do outro lado da rua, acenando com um pequeno lenço azul. Corei-me instantaneamente, sentindo o palpitar do coração, gelado que estava. Podia ler em seus lábios as estranhas palavras: “domino gratias”.

Não pude compreender, mas sentia-me mal. Não havia vitória nem derrota, como em qualquer vida mundana. O homem saía numa carruagem sem se despedir e Ana sumia à medida que a rua ficava mais larga. Eu não conseguia gritar porque não ouvia minha própria voz. Sentia que queria Ana de volta, mas ela tinha-se ido, como um jogo em que as peças se perdem ou são escondidas pela desonestidade. Retornei para dentro, obrigado por um frio cortante, e quando me sentei, já as pedras estavam misturadas e distribuídas. O sol que jamais teria saído dali derretia muita neve vista das janelas.



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