Cleibson Freitas nasceu em 1985,
no Espírito Santo, residindo sempre na cidade de Cariacica. Filhos de pais
humildes, tornou-se um apaixonado e curioso pelo ser humano da vida comum.
Graduado em Língua Portuguesa e
Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Espírito Santo, o
escritor inicia sua carreira com a publicação de O óvulo e o ovo: tudo de novo.
Nessa obra, Cleibson Freitas talvez comece seu primeiro e verdadeiro encontro
com a arte. Como ele mesmo diz: “escrevo para ser livre. Ou melhor, brincar de
ser livre, de ter prazer e brincar de ser Deus. Escrevo para me esconder do
mundo e anular-me por completo. A literatura também serve para nos
escondermos”. Confira, abaixo, o conto “O Cientista”:
O CIENTISTA
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
Carlos Drummond de Andrade
Rolava-se
pra cá; rolava-se pra lá; arranjava-se de bruços; virava-se de barriga pra cima
e nada. O sono não vinha. Um pouco antes tinha discutido com a mãe. Queria
porque queria um caderninho novo, uma borracha-relógio e uma caneta
esferográfica de quatro cores igual a do Alberto, que não aguentava mais lhe
emprestar a sua.
– Que é
esferográfica, Alberto? Perguntara certa vez. – Sei lá, papai disse que é
caneta com ponta de ferro que controla a tinta.
Um
grande ódio da mãe agora o perturbava: “Por que negar um caderninho, uma
borracha e uma caneta?” Pensou. E por tanto pensar é que não conseguia dormir.
Até insistia bravamente contraindo os olhinhos, mas não conseguia. Já era
tarde, muito tarde. Precisava levantar-se cedo pra ir à escola. Na certa
convinha fazer um esforço pra dormir. Então, resolveu adotar uma isca pra pescar o sono. Teve
a imbecil ideia de contar até dez. Repetiu essa numerologia trezentos e trinta
vezes. Inútil! Novamente a raiva da mãe sacudiu seu coraçãozinho para agitá-lo
e distanciá-lo de morrer provisoriamente. Sim, por que não? Dormir é morrer
provisoriamente. Isso quem dizia era seu professor Santana. Adorava o professor
Santana, homem de sabedoria que se deleitava proferindo máximas e, ele, mesmo
um ser menino, sabia o que o Santana dizia lá no fundo das coisas. Mas acontece
que ele não sabia que sabia e ignorava sua alma perceptiva, algo absolutamente
normal à faixa etária, porque, se descobrisse a sua maturidade de espírito no
frágil corpo pueril, na certa envelheceria por completo e era aí que o mundo ia
doer de vez; porque o mundo, o enorme mundo, o mundo dói.
Ouviu
um barulho. Entreteve-se nele. Toda a atenção foi recobrada pra identificá-lo.
Com isso, ergueu meio corpo da cama e moveu os olhos na direção da cômoda.
Constatara um camundongo que roía uma caixa de sapato, produzindo um som
similar a uma serra elétrica apontada pro seu pescoço. Depois de espantá-lo, e
cessado o barulho, resolveu retomar a batalha com a insônia. Foi aí que teve
uma segunda ideia intuitiva pra pescar o sono: e se pensasse no nada? Então se
esforçou tresloucadamente pra criar uma representação mental pra possibilidade
da inexistência da existência. Empenhou todas as suas forças mentais na
tentativa de enxergar o que poderia existir se o mundo não existisse. O
resultado foi um incompreensível e escuro vazio para o qual sua lépida
imaginação não atinava. Mesmo assim, manteve aí por algum momento sua reflexão
fixa. E quando começou a suspeitar que estava esquecendo a ruindade de negação
que a mãe o fizera e achava que com o sono ia se deter, veio à tona na sua
consciência amedrontadores escarninhos:
– O
Costelinha é dono de fábrica de arroz, olha o caderno dele, é encapado com
sacola de arroz.
–
Costelinha, como pode você ser dono de fábrica de arroz e parecer com uma
vareta de bambu de tão magro? Você não come o arroz da sua fábrica não?!
Um
gigantesco flash na memória transportava sua cabeça da inexistência obscura,
que antes mentalizara, para a ainda mais obscura existência. Deparou-se então
com as ridicularidades do ambiente escolar, que mais se assemelhava pra ele um
reduto de carrascos ou alguma coisa parecida a um abrigo de monstros. Aí se
razoou e decidiu: não ia mais à escola. Ia fingir-se doente e não ia mais à
escola por conta da crueldade que lhe faziam. Ou será que já estava realmente
doente? Algumas vezes sentia-se tonto e tão fraquinho que batia até um desânimo
de soltar pipas. Isso sem mencionar a sua magreza, que deixava aparecer todos
os ossos da caixa torácica sem carnes. Seria um indício de que já estava
realmente lhe faltando a saúde? Pouco importava essa conjetura agora. Já tinha
decidido e pronto: ficaria doente de mentira, não ia mais à escola e, além
disso, também não ia mais comer. Ia fazer greve de fome. Talvez sua mãe, com
remorso que iria ficar, até lhe desse o caderninho novo, a borracha-relógio e a
mágica caneta esferográfica de quatro cores.
Dando
conta de si, pegou-se imóvel, de bruços, sem grandes contorções e agito na
cama. Foi que pensou no seu pai. Longe. Muito longe. Caminhoneiro que pai era,
a esta altura já devia cortar a fronteira do Brasil com o Paraguai. E se pai
adivinhasse e, na volta pra casa, trouxesse uma caixa inteirinha de caderno,
outra de borracha-relógio e uma ainda maior de caneta esferográfica de quatro
cores? Ou quem sabe ainda, talvez, até melhor seria, não era ruindade de
negação de mãe coisa nenhuma e ela estava preparando surpresa pra presenteá-lo
quando menos esperasse? Não, isso não. Mãe não tinha dinheiro. Costelinha
desconfiara que mãe não tinha dinheiro. Mãe sempre reclamava que ia parar de
coser pra fora e arrumar um emprego desses aí de verdade, que dá dinheiro,
desses de trabalhar em casa de família. Mas que ela, mãe, não iria parar de fazer
doces, e Costelinha, vida boa com mordomia que só queria, também não iria parar
de vendê-los na rua.
Ajudava
tanto a mãe. Às vezes até chorava escondido de tanto amor e piedade por ela e
agora, quando pedira seu presentinho, ela lhe negara. Também não ia mais é
coisa nenhuma vender doce quebra-queixo na rua. Mãe que arrumasse outra pessoa
pra carregar aquela caixa de madeira cheia de doces na cabeça e pra tocar
aquele triângulo insuportável. Pois Costelinha ia embora. Ia fugir de casa
assim que amanhecesse e só voltar moço adulto, quando já estivesse cientista,
conforme sonhara ser. E quando chegasse esse dia, daria uma grande festa no
colégio Santos Dumont, distribuindo caderno, borracha-relógio e caneta
esferográfica de quatro cores pra toda a gente da escola e do bairro. Ia ser a
maior festa que já vira. Festa ainda melhor do que a do comício que tinha
assistido. E nunca mais, nunca mais, acreditava ele, iria ouvir na escola
Santos Dumont piadas que fossem capazes de magoá-lo por completo. O que iria
ouvir, por ser tão digno o seu feito e o ofício da Ciência, seria toda a escola
gabando, cumprimentando e aplaudindo calorosamente o cientista.
Deu-se
que sentiu frio. Puxou o lençol e os pezinhos descobriram. Não queria ficar com
os pezinhos fora do lençol. Decidiu então descer o lençol e foi a vez da cabeça
descobrir. Irritou-se. Gostava de dormir com a cabeça e os pés tapados
simultaneamente. Precisava ajustar o minúsculo lençol de modo que preenchesse
então proporcionalmente a cabeça e os pés. Passou alguns minutos nessa
complicada atividade até conseguir o árduo objetivo. E fizera o lençol esticar tanto, que apenas o
leve contato das enormes unhas dos pezinhos o rasgara em dois lugares: “amanhã
mamãe costura de novo”, pensou. E dessa vez ela não ia brigar, não ia achá-lo
pra surrar, porque ele já estaria longe, longe! Longe bem lá no estrangeiro
onde queria estudar Ciência. Mamãe ia ficar sozinha, fazer doces quebra-queixo
sozinha e vendê-los sozinha. E quanto pai, Costelinha começava a desejar pra
que ele ficasse por lá mesmo na fronteira do Brasil com o Paraguai, porque
falta agora já não ia mais fazer. Mas era este um desejo hipócrita e tomado
pela incompreensão da ausência do pai, porque a verdade, a grande verdade
adormecida no seu coração e que ele não queria reanimar, era a sua eterna
compaixão por pai. O que queria mesmo era um dia poder crescer e dar ao pai um
caminhão igual ao que ele tinha visto na revista. O pai era bom quando
regressava de viagem, brincava muito com ele de soltar pipas. Às vezes até
parecia que pai também era criança feito ele. O pai gostava tanto de brincar
que nem parecia que era pai. Por que, então, rejeitá-lo? Por que, então,
desejar coisa ruim pra pai? Foi aí que equiparou: será que pai de Alberto
também era assim bonzinho feito pai?
Talvez
pai de Alberto só fosse inteligente mesmo. Talvez só soubesse mesmo de caneta
esferográfica! Pai de Alberto, por causa da ocupada e difícil profissão de
cientista que tinha, talvez não tivesse tempo de brincar com o filho. Mas
também, quando reservava um tempinho pra Alberto, deveras ensinava ao filho
tudo de esferográfica. Já pai seu, caminhoneiro do mundo que era, sabia nada de
esferográfica. Pobrezinho de seu pai, nem ler sabia direito! Mas pai de Alberto
também não dirigia que nem pai. Nunca que pai de Alberto ia cruzar fronteira de
Paraguai, Argentina, Uruguai, Bolívia e Colômbia. Só pai era quem fazia isso.
Só ele era quem dirigia aquele caminhãozão de carroceria grande e que assobia
chiando quando para... Ademais, quando crescesse, também ele, Costelinha, seria
um dia cientista feito pai de Alberto. Ia saber tudo de esferográfica, além de
acrescentar novos nomes de países aos que já sabia. Os países da América do
Sul, por exemplo, já sabia quase todos de cor e salteado; e pra decorar tudo,
só bastou pai relatar uma única vez o percurso que já tinha feito em trinta
anos de profissão.
Costelinha,
por um momento, se inquietou completamente. Começara a amadurecer a ideia de
entregar os pontos e desistir da batalha com o sono. Isso porque entrara na
guerra, também do lado oposto, a sua cama. A desconfortável cama não oferecia
uma posição adequada que pudesse abrigá-lo para o sono. Pra qualquer lado que
se mexia, lá vinha o estrépito do estrado quebrado e forrado com papelão. Uma
madeira solta parecia ainda cutucar-lhe propositadamente às costas. Era uma
madeira pontiaguda e insistente como as unhas das mãos da Inês quando ela
gesticulava pra dizer:
“O
Costelinha é dono de fábrica de arroz, olha o caderno dele, é encapado com
sacola de arroz”.
Um
grande calafrio percorreu-lhe o corpo. Temia a Inês. Queria nunca mais ver a
Inês. Queria nunca mais ir à escola pra ouvir aquela provocação e ter que
revidar com “vai, Inês, pega na minha outra vez”. Os colegas até gostavam
quando ele assim rimava, mas ele mesmo, Costelinha, sentia era um vazio igual
ao da geladeira de casa nas horas que chegava com fome e ia correndo abri-la
pra apenas o ar gelado encher-lhe os pulmões e agitar ainda mais o suco
estomacal. Vontade mesmo nessa hora era quebrar em milhões de pedaços a
geladeira e, depois de assim feito, também dar o mesmo fim na cama covarde que
dava murros de madeira na sua escassa espinha dorsal. E aí, já pegaria tudo: o
estrado quebrado, a cabeceira roída de cupim, a madeira pontiaguda, pegaria
tudo que o incomodava e enfiaria tudo na goela de alguém. Ainda acharia alguém
responsável pela geladeira, a cama, o caderninho encapado com sacola de arroz
e, conforme o desatino, enfiaria tudo na goela de alguém.
E se
fosse a Inês a responsável, Costelinha ainda queria vê-la implorando pra ele
não lhe rebentar toda a musculatura da goela. Todavia, sabia da isenção da Inês
no seu infortúnio. Mãe dele dizia que era vontade de Deus que isso assim
ocorresse e acrescentava que o Todo-Poderoso escreve certo por linhas tortas.
Também advertia que ele, Costelinha, devia era agarrar mais com Deus pra vida
melhorar. Se turbulenta assim se encontrava a vida é porque estava era faltando
fé, crença e bondade para com o Senhor Jesus. Mas Costelinha sempre não rezava
antes de dormir? Ele sempre não tinha fé no Todo- Poderoso? Talvez Deus não
gostasse dele. Costelinha pensava que o Senhor-todo-poderoso não gostava dele e
talvez era por isso que não lhe dava
ouvidos e ignorava o seu existir e de mãe. Mas mesmo assim ele rezava. Precisava
rezar pra ganhar o caderninho novo, a borracha-relógio e a caneta esferográfica
de quatro cores.
Como a
insônia o nocauteava e a amargura de mãe não amolecia, Costelinha achou sensato
e proveitoso rezar ali mesmo, imediatamente. Acreditou se assim fizesse, além
de agradar a Deus, o sono também viria pra abocanhá-lo quando menos esperasse.
Então rezou. Rezou chorando, suplicando, pedindo e implorando como um mendigo
faminto e desesperado. E, por tanto chorar, ia achando que suas preces seriam
ouvidas e solucionadas, quando, de repente, atinou com a ideia de que o
lacrimejo não era fiel. E se ele chorava e se desesperava daquele jeito era só
porque um sentimento de abandono do mundo parecia espreitar-lhe para lhe dar
piparotes. Chegou até a interromper a reza pra obter candura nos soluços e
cogitar por que as coisas conspiravam vorazes daquela maneira contra ele.
Decerto conspirava? Não, não conspirava! Era só o mundo doendo no prematuro das
coisas; Era só o
espírito conturbando-se no existir sem fim das coisas; era apenas a vida se
queixando com suas coisas angustiantes quando se revelam aterradoramente. Ou
talvez não era coisas? Talvez era só uma única coisa. A vida é só uma única coisa
homogênea em que se atam a alegria e a tristeza e o bem e o mal. Não há coisas
duplas. O que há é uma... O que há é uma... Como mesmo dizia o professor
Santana? O que há é uma... Há uma... Há uma... Adormeceu! Nem viu quando
adormeceu. Apenas adormeceu e tudo acabou. Tudo se fez silêncio na sua
consciência.
No
outro dia, se deu que aconteceu o inesperado de acontecer no real, mas que na
imaginação dele, Costelinha, há muito já tinha acontecido: mãe queria era mesmo
fazer-lhe surpresa. Levou à cama dele no dia seguinte tudo o que pedira. Mãe já
tinha comprado tudo. Tinha feito muito esforço pra comprar tudo. A caneta de
quatro cores, por exemplo, que muito trabalho dava de encontrar no mercado
nacional, mãe teve que pedir pra pai mandar lá do estrangeiro. Veio de longe.
Veio de lá de região alguma do Paraguai. Mãe já tinha planejado tudo. Mãe já
tinha planejado acordá-lo com todos os presentinhos na mão:
- Ei! Psiu! Acorda! Acorda! Adivinha o que eu
tenho! Acorda!
Costelinha
parecia pregado profundamente no sono. Mãe chamou-o novamente. Outra vez
nenhuma resposta. Mãe sacudiu-o. Nenhuma resposta. Sacudiu-o ainda com mais
força e Costelinha parecia esquecido por completo do mundo. Então
gradativamente mais força era posta na ação do sacolejo. Em vão a força. Nem
sinal de Costelinha acordar. Mãe resolveu verificar-lhe o pulso. Obteve aí o
sinal: um cruel silêncio nas artérias. Logo em seguida um grande estrondo: era
o mundo desabando no colo de mãe. O menino inerte nos braços dela devia ter o
peso do universo. E tudo se fez soluço. Tudo se fez soluço de amor materno.
Costelinha estava morto. E quando se morre se morre! Tem que ter motivo pra
morte? Não, não tem que ter motivo pra morte. Isso quem dizia era professor
Santana nas suas profecias sábias. Pra professor Santana a única maneira de
explicar a morte é morrendo e pronto! Mas no caso dele, Costelinha, fora morte
causada por complicações nas células leucócitas não diagnosticadas.
Na
sepulturazinha, ali, de volta à condição inicial das coisas, só ali, só ali é
que mãe pôde presentear. E ao baixar do corpo, foram depositados junto dele o
caderninho novo, a borracha-relógio e a mágica caneta esferográfica de quatro
cores.
É isso aí, Cleibson, continue escrevendo e criando... Abraços fraternos
ResponderExcluirRenata Bomfim