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Durante a quase
totalidade do período das civilizações grafocêntricas, o controle da escrita por
oligarquias religiosas e palacianas, determinou um verdadeiro monopólio
econômico, político, cultural, étnico, estético, patriarcal e interpretativo do
mundo, através do qual a aristocracia e o clero, como classes letradas, usaram o poder da comunicação
escrita a fim de fundamentar religiosamente o domínio delas sobre os povos
explorados e humilhados.
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A contribuição mais
importante da Reforma Protestante, a partir do século 16, está relacionada com o
indireto papel democratizante que cumpriu – com o objetivo divulgar a si mesma
– para que mais e mais pessoas tivessem acesso à cultura letrada, através da
impressão e distribuição em massa da Bíblia do cristianismo ocidental,
reescrita/retraduzida tendo em vista as 95 teses reformadoras propostas por
Martinho Lutero em 1517.
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O acesso ativo cada vez
mais massificado à escrita colocou na berlinda a aristocracia e o clero, contribuindo
para a emergência da burguesia como classe social que se valeu da massificação
da cultura letrada a fim de ratificar a sua própria hegemonia, tendo como
argumento/promessa/justificativa: igualdade, fraternidade e liberdade, em
conformidade com credo da Revolução Francesa de 1789.
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A burguesia
estrategicamente passou a usar a cultura letrada massivamente com o objetivo de
divulgar a si mesma, através da autopromoção de seu modelo de vida, por meio da
indústria monopólica gráfica, cujo ciclo incluía no mesmo pacote a
produção/distribuição de papeis, editoras e donos de jornais.
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O hegemônico ciclo
burguês de controle monopólico da cultura letrada procurou determinar e
circunscrever o que as grandes massas deveriam saber, sentir e desejar, tendo
como exemplo – dentre outros – os romances românticos do século 19, publicados
em folhetins de jornais de grande circulação, os quais sedimentavam ou
contribuíam para sedimentar uma mentalidade e uma subjetividade burguesas entre
os segmentos sociais medianos, conhecidos genericamente como classe média e
também entre as classes
populares, através da produção simbólica de conteúdos letrados voltados para
esse e aquele segmento de classe.
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Como contraparte à
burguesia, diferentes segmentos sociais organizados passaram a usar a escrita
com o objetivo de expressar suas demandas, desejos, expectativas, ao mesmo
tempo em que intercambiavam experiências, informações, culturas e saberes
revolucionários, cobrando da burguesia o cumprimento de suas promessas de
igualdade, de fraternidade e liberdade.
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O aprofundamento do
intercâmbio planetário da cultura letrada revolucionária, tecido e entretecido através da luta, foi o
principal motivo da expansão dos direitos econômicos, políticos, sociais e
civis, principalmente no contexto europeu e norte-americano, através do estado
de bem-estar social, mantido, ainda assim através da exploração e sofrimento
dos povos periféricos.
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Um campo promissor
de saberes, de artes e movimentos sociais revolucionários intensificaram suas
perspectivas e práticas, dilatando-se e intercambiando afetos e desejos,
através do aprofundamento planetário da democratização crítica, criativa e
inclusiva da cultura letrada.
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Sem esse intenso
processo revolucionário de democratização da cultura letrada, as conquistas
emancipatórias no interior da modernidade não seriam possíveis.
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O fim da hegemonia
da cultura letrada surge com o advento do rádio e da televisão, período que
inaugura a atual época em que vivemos: a midiocêntrica.
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Tal como a época em
que a cultura letrada estava sob o controle restrito da aristocracia e do
clero, na qual ambas as classes sociais justificavam teologicamente seus
privilégios e despotismos através de um monumental monopólio interpretativo da
vida em sociedade, hoje igualmente vivemos sob o signo do despotismo midiático,
pela singela razão de que suas tecnologias e seus conteúdos estão sob o domínio
igualmente despótico, religioso e monopólico de uma oligarquia midiática planetária, intimamente associada com a
burguesia industrial, financeira e bélica do capitalismo rentista
contemporâneo.
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Por essa razão, não
é precisamente em função do fim do bloco dos países socialistas, no final da
década de 80, que os gestores do capitalismo passaram a avançar, como nunca,
sobre os direitos sociais, econômicos, civis, políticos de povos e países, como
estamos acostumados a pensar. Mais precisamente é porque os ecos emancipatórios
da cultura letrada foram praticamente varridos do mapa a partir da década de 70
do século passado, através da mundialização midiática da humanidade, num
contexto extremamente adverso, pela singela razão de que tal mundialização se
encontrava e se encontra nas mãos de uma oligarquia empresarial planetária que
age em defesa econômica, política, estética, publicitária, subjetiva,
informativa, cultural, bélica de seus irmãos siameses do mundo agrário,
industrial, especulativo, bélico, linguístico, simbólico, étnico, patriarcal,
nacional, religioso.
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É, pois, em função
do monopólio interpretativo, dissimulado, inventivo e invertido dos
acontecimentos contemporâneos, manietado por uma oligarquia midiática
planetária, que a fase atual do capitalismo, conhecida como neoliberal, avança
sobre todos os direitos civis, sociais, trabalhistas, econômicos, corporais,
estéticos e políticos, conquistados a duras penas – ainda que parcialmente – no
interior da época em que a cultura letrada estava vivendo um intenso processo
de democratização emancipatória crítica e criativa, promovendo, com isso, um
verdadeiro retrocesso medieval, cartorial e pré-moderno da humanidade, em todos
os âmbitos, no cultural, no econômico, no étnico, no epistemológico, no de
gênero.
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Tal retrocesso
pré-moderno da humanidade é ao mesmo tempo a causa e a consequência da barbárie
do mundo contemporâneo, sendo, pois, igualmente a causa e consequência da
extrema violência – simbólica, material, bélica, ecológica, alimentar – vivida
e sofrida, passiva e ativamente, pelos mais diferentes povos do planeta.
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Sem o monopólio
midiático mundial, praticamente sem oposição, de tão hegemônico, o
neoliberalismo, em sua forma financeira e econômica, não teria avançado, como
avançou, sobre patrimônio estatal e os precários e incipientes direitos
econômicos e laborais dos povos do terceiro mundo, como ocorreu a partir da década
de 90.
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De igual forma, sem
o monopólio midiático mundial, sob o controle antes de tudo da oligarquia
americano-sionista, o neoliberalismo financeiro e econômico não estaria
destruindo, num ritmo acelerado, o estado de bem-estar social dos países da
Europa, assim como de todos os países até então chamados de primeiro mundo,
como EUA, Japão, Israel, Austrália, Canadá, em ritmos diferentes nuns e
noutros, tendo em vista a relação de forças e os interesses existentes em jogo
em tais e quais lugares.
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Tendo em vista a
prosa do mundo e o mundo da prosa, não é preciso inventar a roda para
construirmos uma sociedade mais justa e digna, para os povos do planeta, com
solidariedade, igualdade e liberdade sem fim e sem discriminação para tod@s. O mesmo movimento, inclusivo, liberador
e revolucionário que o ocorreu no interior da cultura letrada – quando estava
sob o manto mortuário totalizador de uma civilização grafocêntrica, sob o
domínio da aristocracia e do clero – deve ocorrer no interior da civilização
midiocêntrica, sob o controle de uma missionária oligarquia empresarial
comprometida, porque rica, com e como os ricos e hiper-ricos do planeta.
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Embora tal
movimento de democratização da cultura midiocêntrica esteja ocorrendo em
diferentes partes do mundo, sob diferentes formas, experiências e perspectivas,
seu ritmo não pode ser mais o mesmo do que ocorreu no interior da cultura
letrada, seja porque sabemos o caminho das pedras, seja porque a humanidade – a
vida na Terra – não tem mais tempo para esperar dezenas ou mesmo centenas de
anos para repetir o mesmo caminho emancipatório já trilhado dentro da cultura
grafocêntrica, repetindo-se, como Sísifo, o esforço da liberação da pena de ser
explorada, humilhada, assujeitada, assassinada, em benefício de poucos, para
poucos.
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O caminho da
emancipação da humanidade foi parcialmente trilhado no interior da cultura
letrada, através da luta pela sua democratização crítica, criativa, cultural,
civilizacional. Se quisermos interromper os retrocessos que estamos vivendo
hoje; se quisermos frear as táticas, estratégias e astúcias da oligarquia
racista que manda e desmanda no mundo, pondo em risco a vida na Terra através
de uma hecatombe atômica, o caminho é este: ocupar sem demora o midiocentrismo
oligárquico mundial, democratizando-o e descentralizando-o em benefício da
infinita liberdade coletiva.
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É aí que devemos
concentrar nossas energias emancipatórias; nossa potência coletiva de amor à
vida comum, no comum, vivendo-a nos libertando de toda e qualquer forma de
oligarquia, usurpação de tudo que pulsa, existe, ama, fora da escravidão de nós
pela gente mesmo, transformando os “plim-plins” globais em batuques de mídias
sem centro, sem origem, sem castas, sem donos, comumente de ninguém, porque
expressão corajosa, digna, criativa, solidária, fogosa de qualquer um.
(Texto de Luís Eustáquio Soares)
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Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria
da Literatura no Departamento de Línguas e Letras da Universidade
Federal do Espírito Santo.
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