sexta-feira, 2 de agosto de 2013

LICENÇA PARA CONTAR: SARAH VERVLOET



Sarah Vervloet nasceu em Vila Velha, no Espírito Santo, em 1989. É graduada em Letras-Português pela UFES e atualmente cursa o Mestrado em Letras/ Estudos Literários na mesma universidade. É professora e também escreve irregularmente. Foi contemplada em um concurso de Literatura da Secretaria de Cultura do Espírito Santo, na categoria contista estreante e seu livro está no forno. E-mail:sarahvervloet@gmail.com e Blog: http://chadechama.blogspot.com.br. Confira, abaixo, o conto “À luz dela”:

À LUZ DELA

No meio de tantos fachos de luz, uma senhora parece perdida e completamente desesperada, enquanto mais um rolo é desmontado no balcão. Uma claridade repentina sempre causa dor importuna, ou estraga imagens de felicidade, não há como prever. Um cavalo correndo contra o vento, três crianças brincando ao sol. Um casal abraçado debaixo de um guarda-chuva. São tantas as imagens.

Uma senhora como aquela não deve estar tão abatida só por causa de umas pequenas mudanças à vista: tudo agora parece mais claro que o normal. As luzes que ali se acendem não passam da generalização atenuada de uma vela. Com treze centímetros ilumina-se um raio de quilômetros, pensei. Mas não me parece tão possível que nem mesmo o sol tenha abandonado aquele trajeto por conta de uma senhorinha.

Aquela luz incomoda-a mais até do que um tormento físico, e queima a fita de tal forma que é bem capaz de sorriso nenhum ser capturado nesta tentativa. Uma forte dor já insiste nos meus olhos porque a luz não perde intensidade, por que a luz não perde intensidade? Pelo tempo que ela está acesa, já se espera ou a minha adaptação à sua brancura, ou a diminuição gradual da sua força. Porém, nada disso está acontecendo e, pelo contrário, parece que o brilho começa a causar-me cansaço. Consigo ver lágrimas escorrendo na face enrugada da pequena senhora. Consigo escutar seu desespero completamente iluminado.

Consigo sentir seu coração disparado como uma máquina de costuras, com suas agulhas finas e ágeis que perfuram qualquer superfície fragilizada pelo desgaste de uma luz. Consigo também me desfazer de sequências desconexas que só agora consigo enxergar, finalmente consigo. Pela primeira vez, durante todas essas horas, a senhora agora me olha, e me olha como quem olha um cardápio de restaurante. Sem saber o que dizer, prefere continuar olhando. As lágrimas não param de cair um só momento, no mais insuportável silêncio preenchido de luz.

Depois de seis meses em plena escuridão, ser perseguida por uma luz incongruente deixa de ser saída, para se tornar entrada de lembranças acordadas num solo pouco abatido. A própria dependência obscura que prevalecia entre o seu corpo e a inconveniência das mesmas piadas atrasadas deixava-a estática. Todos os dias, o único desejo era permanecer sem luzes.

Luzes podem nos causar descobertas indesejáveis, falava. Nem sequer a chama acesa do cigarro fazia sentido então. A senhora esqueceu os óculos ou, de repente, os trocou por algum anestésico. Mesmo o escuro causa dor. Tudo o que planejava, quando planejava, deveria ser rigorosamente seguido. O que empurrava seus tendões era a fuga de níveis, que sempre, por meio de alguma força bizarra e assustadora, sugava-a novamente de volta. São como os raios de luz que se aproximam do interior de um grande buraco negro, prestes a serem devorados por uma pressão intensamente escura. Ela sorria mesmo assim, somente à sombra, mas às vezes sentia que seus órgãos estavam sendo espremidos, ou que alguma substância toda anormal corroia suas veias.

Eu não sou de total infeliz. Nunca convivi tão profundamente com o sombrio, mas todos os dias parecem ser alternadas noites vermelhas. São minhas mãos que não cessam um minuto para sentir a triste ausência de luz com que me ocupo. Mas a triste ausência de luz não quer dizer minha tristeza diante da escuridão. O que me atinge com felicidade é a descoberta de cada imagem, passo a passo, como um nascimento de uma segura lembrança. Talvez porque o mar não seja negro, ou porque minha idade não tenha se avançado tanto. O problema é que a vermelhidão também causa suas sensíveis dores. O efeito não se revela por pura falta de cor, mas existem manchas que me fazem complicar a mente. E, o que do papel parecia traduzir perguntas, nesse caso elas parecem brotar desses borrões como jamais o fizeram.

A senhora que se tornou pergunta por uma simples complicação de luzes, torna-se minha completa descoberta. Fica claro o que encontro nesses olhos encharcados, nessa pele padecida, que nada oferecem. Pode-se apagar a luz novamente e deixar-me viver companhias vestidas de cinza e transparência, como vivem os espectros incandescentes. Como se encontram novamente, familiarmente, no sereno e em meus retratos. 






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