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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

EVENTO MULTICULTURAL AGITARÁ VITÓRIA EM FEVEREIRO

Um super evento multicultural promete agitar Vitória em fevereiro. Trata-se do 'Poesia na Calçada', evento que reunirá cinema, dança, pintura, escultura, música, e literatura em um só lugar. Confira mais lendo a matéria completa.
Por Sandro Bahiense

O melhor evento multicultural do ano no estado
'Poesia na Calçada' promete agitar o ES em fevereiro

Cinema, dança, pintura, escultura, música, e literatura, tudo em um só lugar! Trata-se do 'Poesia na Calçada', evento elaborado pela Confraria dos Bardos que promete sacudir Vitória com o melhor de cada atividade artística. Com variado número de participantes, o evento ocorrerá a partir de 21 de fevereiro e desde já merece estar marcado em sua agenda.
Confira a programação completa abaixo:

- CINEMA - 
A partir das 14h

• Onírios Produções apresenta: Cinema? Aqui? Mas tem? - documentário (2010) - 15 min - Direção: Juane Vaillant e Ormando Neto. 
• Onírios Produções apresenta: A fantástica vida de Baffus Bagus Bagarius - ficção (2011) - 13 min 36 seg - Direção: Alexander S. Buck. 
• Outra vez #1 (2012) - 57 seg - Imagens: Erly Vieira Jr. / Edição: Sidney Spacini
• Outra vez #2 (2012) - 01 min 02 seg - Imagens: Erly Vieira Jr. / Edição: Sidney Spacini
• Outra vez # 4 (2012) - 43 seg - Imagens: Erly Vieira Jr. / Edição: Sidney Spacini
• Acaso - ficção (2011) - 11 min 13 seg - Direção: Cristiane Reis
• ES Cineclube Diversidade apresenta: Rasgue minha roupa - ficção (2002) - 10 min - Direção: Lufe Steffen. 
• ES Cineclube Diversidade apresenta: Nostálgico - ficção (2007) - 5 min - Direção: Eduardo Mello
• Como se fosse ontem - ficção (2005) - 6 min - Direção: Gustavo Moraes
• Até quando? - ficção (2008) - 18 min - Direção: Gustavo Moraes
• Baseado em estórias reais - ficção (2002) - 15 min - Direção: Gustavo Moraes
• A História do Puteiro mais antigo de Vitória - ficção (2011) - 11 min 19 seg - Direção: Sidney Spacini

***

- EXPOSIÇÃO - 
Mostra de vários artistas na parte externa do Cine Metrópolis 

• Pinturas de Adelton Souza da Silva, Leonardo Luíz da Silva Araujo e Pâmela Pimentel dos Reis. 
• Desenhos em nanquim/formato A4 que recebem o nome de Poemas postais, de Angela Goulart.
• Esculturas e fotografias de Antônia Fernanda. 
• Exposição do varal poético “Secando” do Coletivo Literatura MarginalES. 
• Mostra de fotografias intitulada “Provando a Existência”, de Louisky. 
• Mosaicos de papel sobre D13 de Regina Célia Nunes. 
• Gravuras de Waldirene D'Ávila Bernabé Mota.
***

- CULTURAL - 

18h: Dança artística 

• Double Style com Leonardo Rapman e Agda Feller
• Grupo Genies de dança pop coreana

18h30min: Apresentações musicais

• Thobias Lieven 
• Flávia Bonelli Silva / Fernanda Souza Soares 
• Alex Krüger 
• Eugênio Santos Goulart
• Patricia Eugênio / Daniel Silva 
• D'Silva-RP
• Mano Jô 

Durante o intervalo entre os músicos, ocorrerá a leitura e declamação de textos autorais dos escritores:

• Denise de Souza Pimentel 
• Jô Rodrigues 
• Marília Carreiro Fernandes
• Fabricio Costa
• Wagner Silva Gomes

21h: Sarau 

• Literatura MarginalES: declamação de poesias e lançamento do Zine (DES) Construção #2 
• Confraria dos Bardos

22h: Caminhada literária
• Distribuição de livros de autores residentes no Espírito Santo, de forma gratuita, na Rua da Lama 

Livros distribuídos:
Opala Negra, de Marília Carreiro Fernandes Fernandes. AmorS e outros contos, de Marília Carreiro Fernandes Fernandes. O riso que contrasta, de Fabrício Costa. Amadorismo, de Jô Rodrigues. Contos e Microcontos, de Sarah Vervloet. Material, de Marcelo S. Netto. Corações de Barro e outros contos, de Marcelo S. Netto. O Psicodélico Pacto Surreal, de Tonyzax. Poesia de quintal (zine), de D'silva. Gemagem, de Marcos Tavares. 

***
Contato:

E-mail: revistadosbardos@gmail.com 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A ÚLTIMA ENTREVISTA DO ESCRITOR GUIMARÃES ROSA.


Uma preciosidade histórica da língua portuguesa: a entrevista realizada pelo escritor e jornalista português Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Guimarães Rosa morreria menos de um ano depois de tê-la concedido

Eis o homem. O homem que em menos de 20 anos, com sua prosa, seu estilo, sua literatura — sem os favores profissionais da medicina, que pode dar saúde mas ainda não deu gênio (cf. alguns prêmios Nobel), conquistou o Brasil, Portugal, a Alemanha, a Itália, os Estados Unidos, o mundo, não?

Repara no corpo: mau grado as ligeiras ameaças de obesidade, parece atleta, cavaleiro que foi, ou de bandeirante, que da língua é. Vê como está sobriamente elegante, distinto, sorridente, calmo, aristocrata, como convém a um embaixador (ou não estivéssemos num salão do Itamarati). Mas nada da pose ou dos gestos artificiais com que outros tentam iludir a mediocridade. Quem esperou quase quarenta anos para publicar o primeiro livro, ou quem avançou sozinho pelos grandes sertões da língua, não precisa ter pressa nem pedir emprestado um corpo, uma casaca, máscaras.

Lá está o lacinho (ou gravata-borboleta, meu chapa?) simetricamente impecável, fazendo pendant com os óculos claros, tão claros que ainda esclarecem mais os olhos sempre inquiridores, atentos. E é curioso como um mineiro de Cordisburgo, a dois passos (brasileiros) da Ita­­bira de Drum­mond, gosta, ao contrário deste (à primeira vista), de falar, de con­tar, de ser ouvido. Até nisso parece grande o seu amor à língua. Mal me sentei, já ele me começou a falar de Portugal e de escritores portugueses…

Estive em Portugal três vezes. Na primeira, em 1938, passei lá apenas um dia; ia a caminho da Alemanha. Na segunda, em 1941, passei lá quinze dias, em cumprimento de uma missão diplomática que me fora confiada em Ham­­burgo. Na terceira, em 1942, passei um mês, pois estava já de regresso ao Brasil, por causa da guerra.

Durante essas estadas, travou relações ou conhecimentos com alguns escritores?

Não. Até porque eu ainda não era “escritor” (“Sagarana”, com efeito, só foi publicado em 1946) e o que me interessava mais era contatar com a gente do povo, entre a quais fiz algumas amizades. Gosto mui­to do português, sobretudo da sua integridade afetiva. O brasileiro também é gente muito boa, mas é mais superficial, é mais areia, enquanto o português é mais pedra. Eu tenho ainda uma costela portuguesa. Minha família do lado Gui­marães é de Trás-os-Montes. Em Minas o que se vê mais é a casa minhota, mas na região em que eu nasci havia uma “ilha” transmontana.

Mas não chegou a conhecer Aquilino?
Conheci Aquilino (Aquilino Ribeiro), mas acidentalmente. Eu entrei numa livraria, não sei qual, do Chiado (presumo que a Bertrand) e, quando pedi al­guns livros dele, o empregado per­guntou-me se eu queria co­nhecê-lo, pois estava ali mesmo. Respondi que sim, e desse modo obtive dois ou três autógrafos de Aquilino, com quem conversei alguns instantes. Voltei a estar com ele, mais tarde, num jantar que lhe foi oferecido enquanto de sua vinda ao Brasil. Mas ele, naturalmente, não se recordava de mim (porque eu não me apresentara como escritor), e eu também não lhe falei do assunto.

Não sabe que, justamente numa crônica motivada pela sua ida ao Brasil, Aquilino colocou o seu nome, logo em 1952, ao lado dos de José Lins do Rego, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Jorge de Lima e Agripino Grieco, que, segundo ele, eram os “notáveis escritores e poetas” que estavam a “encostar a pena contra a lava” que ia no Brasil “sepultando prosódia e morfologia da língua-mater”? Eu creio mesmo que é essa uma das primeiras referências ao seu nome, em Portugal…

Não sabia dessa curiosa referência do Aquilino. Antes dessa, porém, há uma referência a mim numa publicação do Consulado do Porto, de 1947, feita por não sei quem. Sei de outra referência feita, anos depois, salvo erro, por um irmão de José Osório de Oliveira.

Voltando a Aquilino: acha que recebeu alguma influência dele? Já, pelo menos, um crítico, o mineiro Fábio Lucas, notou alguns “pontos de contato nada desprezáveis” entre a sua obra e a de Aquilino.

Eu gosto de Aquilino, sobretudo da “Aventura Maravilhosa”, mas não creio que dele tenha recebido alguma influência, a não ser na medida em que sou influenciado por tudo o que leio. A verdade é que antes de 1941 só conhecia de Aquilino um ou dois trechos, co­mo infelizmente ainda hoje sucede em relação à quase totalidade dos escritores portugueses vivos. E, como sabe, “Sagarana”, foi escrito em 1937.

Um garçom do Itamarati entra com um copo de água, e pergunta se precisa mais alguma coisa. Guimarães Rosa agradece e diz: Vá com Deus, como se fosse um beirão ou um transmontano. Mais uma razão, portanto, para eu prosseguir: Como encara ou explica o enorme prestígio de que goza nos meios intelectuais e universitários portugueses?

Em relação a mim, houve por aqui (no Brasil) muitos equívocos, que ainda hoje não desapareceram de todo e que, curiosamente, ao que parece, não houve em Por­tugal. Pensaram alguns que eu inventava palavras a meu bel-prazer ou que pretendia fazer simples erudição. Ora o que sucede é que eu me limitei a explorar as virtualidades da língua, tal como era falada e entendida em Minas, região que teve durante muitos anos ligação direta com Portugal, o que explica as suas tendências arcaizantes para lá do vocabulário muito concreto e reduzido. Talvez por isso que ainda hoje eu tenha verdadeira paixão pelos autores portugueses antigos. Uma das coisas que eu queria fazer era editar uma antologia de alguns deles (as antologias que existem não são feitas, como regra, segundo o gosto moderno), como Fernão Mendes Pinto, em quem ainda há tempos fui descobrir, com grande surpresa, uma palavra que uso no “Grande Sertão”: amouco. E vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém: o que mais me influenciou, talvez, o que me deu coragem para escrever foi a” História Trágico-Marítima” (coleção de relatos e notícias de naufrágios, acontecidos aos navegadores portugueses, reunidos por Ber­nardo Gomes de Brito e publicados em 1735). Já vê, por aqui, que as minhas “raízes” es­tão em Portugal e que, ao contrário do que possa parecer, não é grande a distância “linguística” que me se­para dos portugueses.

Eu penso até que na imediata e incondicional adesão portuguesa a Gui­marães Rosa há muito de transferência sublimada de uma frustração linguística nossa, coletiva, que vem pelo menos desde Eça. Mas não nos desviemos. Admira-me muito que não tenha citado ne­nhum livro de ca­valaria, nem ne­nhuma novela bu­cólica, pois pensava que deles e delas havia diversas ressonâncias na sua obra, sobretudo no “Gran­de Sertão: Veredas”…

Sim, li muitos livros de cavalaria quando era menino, e, por volta dos 14 anos, entusiasmei-me com Ber­nardim (Bernardim Ri­beiro), e depois até com Camilo. Ainda continuo a gostar de Ca­milo, mas quem releio permanentemente é Eça de Queiroz (quando tenho uma gripe, faz mesmo parte da convalescença ler “Os Maias”; este ano já reli quase todo “O Crime do Padre Amaro” e parte da “Ilustre Casa de Ramires”). Camilo, leio-o como quem vai visitar o avô; Eça, leio-o como quem vai visitar a amante. Quando fui a Portugal pela primeira vez, eu só queria comidas ecianas (que gostosura, aquele jantar da Quinta de Tormes). Aliás deixe-me que lhe diga que me torno muito materialista quando penso em Portugal; penso logo nos bons vinhos, nas excelentes comidas que há por lá. E talvez seja também por isso que se há um país a que eu gostaria de voltar é Portugal…

… que, naturalmente, o receberá de braços abertos, em festa. Mas permita-me ainda uma pergunta: como “enveredou” — e penso que a palavra se ajusta bem ao seu caso – pelo campo da “invenção linguística?

Quando escrevo, não pen­so na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Mo­çambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares como às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palavras belíssimas como “gramado”, “aloprar”, pertencem à gíria brasileira, ou como “malga”, “azinhaga”, “azenha” só correm em Por­tugal — será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sem­pre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um ato religioso. Tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boiadas, a cavalo, e levei sempre um ca­derninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido — até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim.
Guimarães Rosa vai buscar uma fotografia para me mostrar onde levava o caderninho de notas, nas boiadas: vai buscar uma pasta com a correspondência com um seu tradutor norte-americano, para me mostrar as dúvidas e dificuldades deste, e o trabalho, a seriedade e a minúcia com que as vai resolvendo uma por uma (escrevendo, ele próprio, preciosas autoanálises estilísticas ou considerações filológicas). E, entretanto, vai-me fazendo outras confissões interessantes. Por exemplo:  “gosto das traduções que filtram. Da tradução italiana do Cor­po de Baile gosto mais do que do original.” Ou: “Estou cheio de coisas para escrever, mas o tempo é pouco, o trabalho é lento, lambido, e a saúde também não é muita.” Ou: “Não faço vida literária: como regra, saio daqui e vou para casa, onde trabalho até tarde.” Ou: “No próximo ano, vou publicar um livro ainda sem título, com 40 estórias” (que têm aparecido quinzenalmente, no jornal dos médicos “O Pulso”, onde frequentemente aparecem também cartas ou a atacá-lo ou a defendê-lo ferozmente). Ou ainda: “eu não gosto de dar, nem dou entrevistas. Tenho sempre a sensação de que não disse o que queria dizer, ou que disse mal o que disse, ou que criei maior confusão; e não estou assim tão seguro do que procuro e do que quero. Com você abri uma exceção…”.

Nota: Entrevista realizada pelo escritor e jornalista Arnaldo Saraiva, em 24 de novembro de 1966. Publicada no livro “Conversas com Escritores Brasileiros”, editora ECL em parceria com o Congresso Portugal-Brasil.


sexta-feira, 12 de julho de 2013

ANÁLISE DA CANÇÃO "PAIS E FILHOS", DO GRUPO LEGIÃO URBANA.

  
Pais e Filhos.  Legião Urbana (Composição: Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá)

Estátuas e cofres

E paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender

Dorme agora 
É só o vento lá fora
Quero colo
Vou fugir de casa
Posso dormir aqui com vocês?
Estou com medo

Tive um pesadelo

Só vou voltar depois das três
Meu filho vai ter nome de santo
Quero o nome mais bonito

(Refrão)
É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Por que se você parar, pra pensar, na verdade não há

Me diz por que o céu é azul
Explica a grande fúria do mundo
São meus filhos que tomam conta de mim


Eu moro com a minha mãe mas meu pai vem me visitar

Eu moro na rua não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar
Já morei em tanta casa que nem me lembro mais
Eu moro com os meus pais 

(Refrão)
É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã
Por que se você parar, pra pensar, na verdade não há

Sou uma gota d'água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais não lhe entendem
Mas você não entende seus pais
Você culpa seus pais por tudo
E isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer?

(URBANA, 1989, Encarte p. 3)




A união de vários “eus” por excelência está em Pais e filhos. A canção reúne em sua letra várias vozes de pais e filhos em diversas situações do quotidiano familiar. Todos esses “eus” que aparecem na canção são fechados. E já no primeiro verso percebemos isso: “estátuas” figuras frias e imóveis “e cofres” fechados com chave e segredo “e paredes pintadas”, não se sabe o que tem por trás dessas paredes. No verso seguinte percebe-se a que fim leva essa falta de comunicação entre os “seres” existentes nos primeiros versos, “ninguém sabe o que aconteceu”, não se tem noção de nada do que ocorreu “ela se jogou da janela do quinto andar”. Nesse verso temos o relato de um suicídio. Agora fica fácil entender porque ninguém sabe o que aconteceu, são todos estátuas e cofre e paredes pintadas, não há calor, diálogo, confiança e compreensão. Mas outro “eu” sentencia: “nada é fácil de entender”. O que não é fácil não é entender por que alguém se matou ou por que ninguém sabe de nada, mas compreender o por quê que estão todos fechados. Esse é um tema que extrapola as leis do tempo. É constantemente contemporaneizado pelas relações sociais as quais que vivemos.

Nos próximos versos temos várias vozes, ora de pais ora de filhos. Nos versos “dorme agora / é só o vento lá fora” está tipicamente coincidindo com a fala de um pai ou uma mãe, que tranqüiliza o filho e pede-lhe que volte a dormir. Se ele está dizendo que é só o vento lá fora, fica pressuposto que não há mais nada além do vento, de forma que ele, o filho, não precisa ficar com medo, por isso que pode dormir agora. O que pode estar implícito é a qualidade de proteção que o “eu”, o qual supomos ser de um adulto (pais) e a relação com o “você” para quem ele fala.

Em seguida, nos próximos versos, uma seqüência de falas de “filhos”. O mesmo filho que um dia disse “quero colo” diz “vou fugir de casa”. Querer colo implica em infantilizar-se. Mesmo os adultos quando pedem colo se colocam na situação de alguém desprotegido, de criança. Uma pessoa só foge de onde está enclausurada, de um lugar não desejado para estar naquele momento. Todos essas pressuposições se repetem nos outros versos dessa mesma estrofe: “posso dormir aqui com vocês / estou com medo / tive um pesadelo” falas tipicamente de crianças que dormem em seus quartos sozinhas que ainda têm medo de escuro, “bicho papão” ou coisas assim. Mas quando essas crianças crescem, elas, quando não querem fugir para viver suas vidas sozinhas, começam, às vezes por si mesmas, a ditarem suas próprias normas: “só vou voltar depois das três”.

Em seguida temos a fala de alguém que nem é pai ainda, mas já deseja o melhor para o seu filho, é comum os pais quererem ver nos filhos o que eles, pais, admiram. O Renato tinha uma formação Católica, lia sempre a Bíblia e nesse trecho aparece uma informação que alude às preferências do autor, tanto que foi nessa época que os filhos dos três legionários nasceram, corroborando com a idéia das possíveis influências que se refletem na música. “Meu filho vai ter nome de santo / quero o nome mais bonito”, quem diz essa frase, diz que os nomes de santos são os mais bonitos, e também o sentimento de ver no filho aquilo que é mais bonito.

O refrão dessa canção é todo em defesa do amor. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse o amanhã”, uma espécie de carpem die do amor. Mas há uma justificativa para todo esse amor, a possibilidade de não haver futuro. Para aquele “eu” que cometeu suicídio, por exemplo, não houve amanhã. O amor não foi fecundo em sua vida e agora não poderá ser. O segundo verso do refrão é ainda mais sério: “porque se você parar para pensar, na verdade não há”. Não há continuidade, só cortes. Aqui identificamos claramente as marcas argumentativas. O primeiro verso é um enunciado que denota uma necessidade à todos aqueles “eus” e também aos possíveis ouvintes da canção, pressupondo uma falta de amor. Como se estivesse elíptico um “diante do exposto, temos a necessidade de amar ...”. E amar muito, como se hoje fosse o último dia. Em seguida utiliza um operador argumentativo para justificar o enunciado anterior porque. Então se dirige a um “você” chamando-o a dialogar consigo e com o mundo, para evitar os cortes e dá continuidade no amor, e decreta, com autoridade que existe uma verdade e essa é que não existe amanhã para quem não ama.

Mais polifonia nos próximos versos. Em “me diz por que é que o céu é azul / e explica a grande fúria do mundo” pode ser qualquer pessoa que tenha essas dúvidas sobre o mundo, ou mesmo, um “eu” que pergunta a si mesmo. Por que temos um mundo tão feroz e violento, será que não existem lugares nesse mundo que seja amor e não ódio? Mas esse mundo está mudando, as coisas não são mais como antigamente. “São meus filhos que tomam contam de mim”, onde um pai diz a inversão hierárquica, quando os filhos são responsáveis e pensam no bem estar da família e não só deles. “Eu moro com a minha mãe, mas meu pai vem me visitar” um “eu” de pais separados, e em seguida outro com nenhum pai ou mãe: “moro na rua não tenho ninguém / moro em qualquer lugar”, crianças de rua, abandonadas. E para os que têm família, “já morei em tanta casa que nem me lembro mais” sem moradia fixa, mudando sempre que vence um contrato de aluguel ou simplesmente “eu moro com meus pais”. Nesse verso temos uma alusão aos filhos que, mesmo depois de formados, ainda moram na casa dos pais.

Logo após a repetição do refrão têm dois versos que demonstram a proposta espiritual do disco o qual essa canção faz parte. Um verso extraído do alcorão “sou uma gota d’água” e outro da bíblia “sou um grão de areia”, exemplos da insignificância que somos sem o Amor. Sobre o disco Renato diz: “Nós não estamos falando de religião, estamos falando do lado espiritual do ser humano. Não estamos falando que Deus existe ou não existe. O disco não lida com a questão da existência de Deus, e sim com a idéia de Deus. O disco não é de catecismo religioso” (RUSSO, 2000, p. 209).

E encerra a música com um outro “eu” que dá conselhos a pessoas que são “filhos”, e diz isso como se ele, a pessoa que fala, tivesse descoberto isso a pouco. “Você me diz que seus pais não entendem / mas você não entende seus pais”, ninguém entende ninguém, pois todos são estátuas e cofres e paredes, não há comunicação. Nesses versos vemos claramente que pais e filhos não se conhecem, por isso não se entendem. Por esse motivo “você culpa seus pais por tudo / isso é um absurdo / são crianças como você”. Eles também precisam de carinho e proteção, de amor. O último verso é um resumo do sentimento de Renato naquele momento e que pode ser o sentimento de qualquer um em qualquer tempo que tiver passando pelo milagre da paternidade, quando descobre que não é somente filho, mas também pai: “o que você vai ser quando crescer”, qual será o seu futuro?

“Para mim, o mais importante com a chegada do meu filho foi a  mudança da minha relação com meus pais. Passei a ver toda a situação de uma maneira diferente. Pintou mais respeito, mais consideração. Os pais são sempre pais e, às vezes, a gente tem que se distanciar um pouco para perceber que eles são pessoas normais. É tão forte a relação da gente com eles que, quando criança, você acha que são seus heróis; na adolescência, nega tudo, acha que são horrorosos. Até o momento em que meu filho nasceu, eu nunca havia percebido meus pais como indivíduos. (...) talvez eu pensasse nisso antes também. Mas, para mim, eles sempre pai e mãe. Agora, não. Existem o Renato, a Carminha e eu”. (RUSSO, 1996, p. 85).

Pais e filhos, com escalas típicas do rock, tem uns efeitos e uma levada de Blues. Até mesmo na melodia, o avô (pai duas vezes) se relaciona com seu filho-neto, blues e rock, respectivamente, transformam essa canção de protesto e de lamento em algo romântico: a luta pelo amor fraternal.

 (Texto de Marxwel Alves Pantaleão)



Marxwel Alves Pantaleão, formado em Letras Português pela UFES, é professor de português e literatura. Além de poesia, escreve contos, crônica e letras de música. Não se considera um poeta, mas sim um fascinado pelas letras. Gosta de Legião Urbana e todas as vertentes do Rock. No romantismo e no Simbolismo se encontra, mas flerta com o modernismo. Mantém um Blog na rede (www.marxletras.worpress.com) onde publica as Letras dele mesmo e de seus heterônimos (sim, ele gosta de Fernando Pessoa e se acha!).


quarta-feira, 10 de julho de 2013

ANÁLISE DA CANÇÃO "A VIA LÁCTEA", DO GRUPO LEGIÃO URBANA.



A Via Láctea. Legião Urbana (Composição: Dado Villa-Lobos/ Renato Russo/ Marcelo Bonfá)

Quando tudo está perdido

Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Sempre existe uma luz
Mas não me diga isso
Hoje a tristeza não é passageira
Hoje fiquei com febre a tarde inteira
E quando chegar a noite
Cada estrela parecerá uma lágrima
Queria ser como os outros
E rir das desgraças da vida
Ou fingir estar sempre bem
Ver a leveza das coisas com humor
Mas não me diga isso
É só hoje e isso passa
Só me deixe aqui quieto
Isso passa
Amanhã é um outro dia não é?
Eu nem sei porque me sinto assim
Vem de repente um anjo triste perto de mim
E essa febre que não passa
E meu sorriso sem graça
Não me dê atenção
Mas obrigado por pensar em mim


Quando tudo está perdido

Sempre existe uma luz
Quando tudo está perdido
Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Eu me sinto tão sozinho
Quando tudo está perdido
Não quero mais ser quem eu sou
Mas não me diga isso
Não me dê atenção

E obrigado por pensar em mim

Mas não me diga isso
Não me dê atenção

E obrigado por pensar em mim



Essa canção foi tirada do CD A tempestade ou O livro dos dias, lançado no ano da morte de Renato. Esse e o Uma outra estação, lançado no ano seguinte, foram escritos e compostos entre 1994 e 1996. Russo “nunca havia deixado de se expor através de sua arte, mas, em letras com A via Láctea e Clarisse, ia ainda além. Tanto era assim que ele mesmo duvidava até onde devia ir” (DAPIEVE, 2000, p. 158). No enterro do filho, Maria do Carmo, emocionada, alivia-se no lamento da perda: “meu filho só foi feliz quando era criança. Tudo o angustiava, até uma guerra lá na Conchinchina. Nos últimos meses, estava deprimido, sabia que estava perto do fim” (REVISTA CARAS, 1996, p. 20), um retrato de como foi para Renato nesse período de composição e produção dos seus últimos trabalhos. Dapieve, biógrafo oficial de Renato, relatou, ainda, em seu livro as impressões que os músicos que o acompanhavam nas gravações tiveram naquela época: “(sic) Renato, na verdade, apareceu muito esporadicamente no estúdio. Quando Marcelo [Bonfá, baterista da Legião] o reencontrou no AR, depois de algum tempo sem vê-lo, ficou impressionado, mal impressionado. ‘Ele estava num sofá, muito magro’, contaria. ‘E é incrível porque aqueles discos têm a voz mais fraca nas linhas melódicas mais difíceis’. Trilha [Carlos Trilha, tecladista que trabalhou com Renato em seus discos solos e nos últimos trabalhos da Legião] também ficou mal: ‘Ele não estava mais dando conta de cantar. Fui chorar e tomar um banho’. Renato registrou quase tudo de primeira [esse registro de primeira é conhecido também como voz guia], e não voltou para regravar nada, exceto A via Láctea, que, contra a opinião da EMI-Odeon, queria transformar na música de trabalho do CD. Quando cantou ‘hoje a tristeza não é passageira / hoje fiquei com febre a tarde inteira / e quando chegar a noite / cada estrela parecerá uma lágrima’, Renato estava efetivamente com febre. ‘A música era muito triste, uma bandeira completa’, lembraria Rafael [Rafael Borges, produtor executivo da Legião]” (DAPIEVE, 2000, p. 158-159)

Essa canção faz menção a muitos lamentos, o mais evidente é o da morte. É ainda um retrato de um protesto politicamente romântico de uma lamentação. É o encontro da esperança com a realidade crua de não se poder fazer nada, é a contradição que tanto fez parte da vida e da obra de Renato. É uma canção que fala abertamente da doença, morte, de amor.  

A canção começa com uma espécie de mote: “quando tudo está perdido”. Quando algo está perdido, há a esperança de encontrá-lo, mesmo sendo muito difícil, há essa esperança. Mas quando tudo está perdido? O que resta? Nesse tudo entra a vida? A Via Láctea, em latim, significa “caminho de leite”. Já no título se percebe o caráter uma viagem para outro plano. Nesse caminho para luz, o qual sugerimos como interpretação, supomos que seja uma tentativa de auto-tranquilidade, de paz, de esperança, mas com um fundo melancólico de lamento. Segundo Dapieve, Renato teria dito à mãe que já havia conversado com Deus sobre tudo o que havia feito de certo e errado e que estava em paz (DAPIEVE, 2000, p. 166).

Para afirmar que não se pode nunca perder a esperança, o eu que fala nessa canção coloca uma situação difícil, mas de momento: “quando tudo está perdido / sempre existe um caminho / quando tudo está perdido / sempre existe uma luz”, quando quer dizer naqueles momentos em que seu interlocutor ou seu auditório está passando dificuldades, sempre há uma saída, ou seja, um caminho e uma luz são constantes, motivo para não perder a esperança. Nessa argumentação, o “eu” (chamaremos de “eu” a pessoa que fala na canção, equivalendo-se ao termo orador e “eus” das análises das outras canções) coloca uma situação difícil, mas a caracteriza como sendo um momento, devido à escolha do denotativo então e modifica esse estado com o advérbio de tempo sempre.

Porém, esse mesmo “eu”, logo em seguida, refuta querer conhecer esse subterfúgio psicológico de esperança. Utilizando-se do operador argumentativo mas, ameniza a situação e pede para que lhe diga aquelas coisas: “mas não me diga isso”, verso que acompanha todas as respostas ao mote, como se não quisesse aquela consciência.

Nesse disco, em cada canção, há um verso, uma estrofe que percebemos um sinal de despedida. Essa canção inteira transmite essa idéia. É indissociável a canção dos últimos dias de Renato. É como se depois de ler sua biografia e ouvir a música, percebe-se em cada contorno seu as crises sofridas pelo cantor. A febre é o problema, e a mesma representa todas as doenças que atemoriza esse “eu”. Nos versos “hoje a tristeza não é passageira / hoje fiquei com febre a tarde inteira / e quando chegar a noite / cada estrela parecerá uma lágrima”, percebemos algumas marcas argumentativas. Nesse primeiro verso, quando afirma que hoje é diferente, subentende-se que, ao frisar esse tempo, em outros momentos aquela tristeza fora passageira, pois nesse mesmo hoje sua doença durou toda a tarde.

Um detalhe muito significativo é a escolha pelos advérbios de tempo e os denotativos de situação que permeiam toda a canção. Nesses versos, o “eu” usa dois momentos do dia: tarde e noite para colocar duas situações de sua vida. Assim, somos inclinados a identificar como um lamento de proximidade da morte. A tarde inteira a febre o acompanhou, proporcionando-lhe uma tristeza que não é passageira. Mas, quando chegar sua morte, a noite, cada estrela, da Via Láctea ou mesmo de todo Universo, “cada estrela parecerá uma lágrima”, um lamento.

Esses próximos versos encontram eco nas palavras de Maria do Carmo, acima citadas, onde é testemunhado toda angústia que o filho tinha ao sentir o mundo. Em “queria ser como os outros / e rir das desgraças da vida / ou fingir estar sempre bem / ver a leveza das coisas com humor”, é não só uma referência a esse estado de doente terminal e deprimir-se com essa impotência, como também ver todos os desastres e não poder fazer nada. Em entrevista a Ricardo Alexandre, a 26 de setembro de 1996, Renato justifica a melancolia que o cerca: “Logo depois teve o acidente com os Mamonas. (...) Eu fiquei muito surpreso que ninguém tenha notado a importância deles como evento cultural brasileiro. (...) Foi horrível, de qualquer forma. Aí, vieram as enchentes, aí a chacina no Pará. E este disco novo, dizem, está tão melancólico, tão triste, tão não-sei-o-quê, que está perfeito para todos esses problemas que a gente está tendo de enfrentar” (RUSSO, 1996, p. 261).

Novamente o “eu” refuta a idéia posta, “mas não me diga isso” e dessa vez justifica, ainda na esfera do tempo, denotando uma falsa momentaneidade dos pensamentos: “é só hoje e isso passa / só me deixe aqui quieto / isso passa”. Para argumentar essa tranqüilidade o “eu” apela para uma informação de senso comum e faz uma pergunta ao seu interlocutor, deixando para a consciência dessa, a afirmação do argumento: “amanhã é um outro dia não é” (grifo nosso).

O tempo, co-protagonista dessa canção, é tão rápido e inconstante que o “eu” nem sabe por que se sente assim e quando diz: “vem de repente um anjo triste perto de mim / e essa febre que não passa / e meu sorriso sem graça” já indica não consegue mais esconder a sua situação e em um último argumento, desmonta seu interlocutor com uma ordem e um agradecimento: “não me dê atenção / mas obrigado por pensar em mim”. Não quer que ninguém o ouça, se importe com ele, uma tentativa, vã, de fortaleza, mas fica “feliz” por fazer parte dessa preocupação alheia.

No desfecho da canção o “eu” repete o que disse durante toda canção em versos casados que representam os autos e baixos que a doença lhe proporcionava, repetindo no fim a ordem e o agradecimento: “quando tudo está perdido / sempre existe uma luz / quando tudo está perdido / sempre existe um caminho / quando tudo está perdido”, acrescentando sua condição de solidão e de não mais querer aquele sofrimento, “eu me sinto tão sozinho / quando tudo está perdido / não quero mais ser quem eu sou / mas não me diga isso / não me dê atenção / e obrigado por pensar em mim / mas não me diga isso / não me dê atenção / e obrigado por pensar em mim”.

A teoria da literatura lírica tem como uma de suas regras não confundir o “eu lírico”, a voz que fala na poesia, com o autor. Mas, no caso de A Via Láctea, entendemos que o lamento é um dêitico e que remete, não ao autor ou cantor, Renato Russo, mas o outro habitante do seu corpo, Renato Manfredini Júnior.

(Texto de Marxwel Alves Pantaleão)




Marxwel Alves Pantaleão, formado em Letras Português pela UFES, é professor de português e literatura. Além de poesia, escreve contos, crônica e letras de música. Não se considera um poeta, mas sim um fascinado pelas letras. Gosta de Legião Urbana e todas as vertentes do Rock. No romantismo e no Simbolismo se encontra, mas flerta com o modernismo. Mantém um Blog na rede (www.marxletras.worpress.com) onde publica as Letras dele mesmo e de seus heterônimos (sim, ele gosta de Fernando Pessoa e se acha!).

segunda-feira, 8 de julho de 2013

CULTURA. REUNIÃO DA CNIC EM VITÓRIA.


A capital vai sediar a 211ª reunião da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic), que é um órgão colegiado composto por cerca de 40 representantes do Ministério da Cultura (MinC) e sociedade civil, nos próximos dias 9, 10 e 11 de julho.
A missão do órgão é analisar os pareceres e subsidiar o MinC na aprovação ou indeferimento dos projetos de incentivo fiscal apresentados à Lei Rouanet. A Cnic realiza reuniões ordinárias a cada mês, alternadamente, em Brasília e em um estado de cada região brasileira. O objetivo é conferir o caráter nacional da comissão e aproximá-la dos agentes culturais locais.

211ª Reunião da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura – CNIC em Vitória

Onde: Hotel Senac (avaliação de projetos), Palácio São Thiago (encontro entre empresários, contadores e técnicos do Minc) e Cine Metrópolis da Ufes (encontro de técnicos do Minc com agentes culturais).

Quando: de 9 a 11 de julho.


Inscrições: deverão ser feitas através do e-mail pronac.rj@cultura.gov.br até o dia 8 de julho, às 16 horas.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

ANÁLISE DA CANÇÃO "FÁBRICA", DO GRUPO LEGIÃO URBANA.



Fábrica - Legião Urbana (Composição: Renato Russo)

Nosso dia vai chegar

Teremos nossa vez

Não é pedir demais:
Quero justiça
Quero trabalhar em paz
Não é muito o que lhe peço –

Eu quero um trabalho honesto

Em vez de escravidão


Deve haver algum lugar
Onde o mais forte não
Consegue escravizar
Que não tem chance

De onde vem a indiferença
Temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fabrica?

O céu já foi azul, mas agora é cinza
O que era verde aqui já não existe mais
Quem me dera acreditar
Que não acontece nada de tanto brincar com fogo

Que venha o fogo então


Esse ar deixou minha vista cansada

Nada demais


O disco o qual essa música faz parte foi lançado em 1986. O público ainda estava explorando as músicas do primeiro trabalho, mas não demorou muito para esse segundo disco entrasse no gosto dos fãs (vendeu, na época, mais de 915 mil cópias em vinil). Esse trabalho estava submerso em metáforas e ironias. Há nesse disco o encontro de vários “eus” falando do universal, da experiência individual de cada um, “Então, a gente quer falar sobre isso: do ponto em comum que une todas as pessoas. (1986)” (RUSSO, 2000, p. 82). A coletânea “Música para Acampamentos” traz a gravação de Fábrica cantada do começo ao fim no Parque Antártica, estádio de futebol em São Paulo. Uma introdução alucinante, com guitarras e teclados, explodiu ao som da bateria dando a deixa para Renato iniciar a canção. Tipicamente uma canção de rock.

A princípio, a canção começa na primeira pessoa do plural, logo depois do terceiro verso já toma a palavra uma primeira pessoa do singular. Só que essa pessoa fala para alguém que não participa da primeira voz no plural. A julgar pelo título da música poderíamos dizer que um sindicalista fala aos seus pares que ainda há esperança e vai ao patrão exigir o mínimo para seu trabalho. Porém esse líder se perde no meio de seus questionamentos e todas as vozes desaparecem, restando apenas o olhar ao redor e, junto com o reconhecimento, o ímpeto e a morte.

Um ciclo comum, como o era nas canções de Renato, que tinha como fim o suplício de sua continuação. O que é demais nas lutas de classe de Marx no Brasil de 1986? O que a redemocratização brasileira estava planejando para continuar a industrialização promovida pela ditadura? Após os gritos de que país é esse, o que se esperar de um presidente não eleito pelo povo com uma “herança [de] uma dívida externa de 100 bilhões de dólares e uma inflação de 230%”? (CAVANA, 2000, p. 340). O que cada indivíduo poderia querer ou esperar?

Sob a metáfora de uma fábrica, os “eus” protestavam não só contra a situação do país, mas contra uma inércia pessoal que pairava no Brasil da Legião Urbana. Os dêiticos usados na canção deixam bem claro que os que se achavam alheios à música é quem fala por ela, assim o auditório e seu orador se fundiam e confundiam-se. “Nosso dia vai chegar / teremos nossa ver”, aqui é importante ressaltar que o orador se colocou de igual ao seu auditório, dando início à fundição. O primeiro poderia muito bem dizer: “o dia de vocês irá chegar, vocês terão a sua vez”, mas não, ele deu um valor a essa comunicação que proporcionou ao orador ser a voz de seu público.

Esse efeito comunicacional se deveu ao fator de o autor escolher esse ato de fala e não o outro. Pois a situação é a mesma para todo mundo, ninguém até então tinha direito a nada, tanto que a única coisa que os ligavam, além do problema, era a esperança de uma solução.  E com uma anáfora, mais precisamente uma catáfora, lastima um direito (e não um dever), “não é pedir demais:”, assim mesmo, com dois pontos no fim do verso. Em seguida suas reivindicações: “quero justiça /quero trabalhar em paz”. Retoma que seu desejo é simples, não é demasiado o que ele e seu auditório querem, “não é muito o que lhe peço – e após um travessão a continuação de sua solicitação: “eu quero um trabalho honesto / em vez de escravidão.”.

O verbo querer pressupõe o desejo de algo que não se tem. Se alguém quer uma laranja, já possuindo onze, quer ter uma dúzia, ou seja, quer ter mais. Se alguém, que não tem nenhuma laranja, quer uma, seu desejo é ter algo que não possuía, quer mais, pois não tinha nada. Justiça não é concreto como uma laranja, mas a falta dela é muito palpável e o sofrimento evidente. Esse “eu” que fala em nome do “nós” denuncia a falta de justiça e de paz para trabalhar. Em seguida o orador continua a denúncia: ele e seus pares são escravos de um trabalho desonesto. Qual trabalho seria esse? Onde ele fica? Para responder a essas perguntas, nos remeteremos ao título da canção, numa única resposta: Fábrica! Essa metáfora nos revela ser uma metonímia. Mas, ao invés da parte pelo todo, uma metonímia do todo pela parte: toda ação de construção social é a fábrica. São todos as espécies de trabalhos e empregos que podemos conceber, seja como músico, pedreiro, industrial, estudante, dona de casa. Em todos há uma fábrica de sonhos e pesadelos. Em todos podemos ser livres e honestos ou escravos no meio de injustiças. Essa relação fica mais clara nos versos seguintes: “deve haver algum lugar / onde o mais forte / não consegue escravizar / quem não tem chance.”.

Nessa parte do nosso texto, o leitor, provavelmente, deve ter notado a forma como pontuamos os versos da canção. Pois bem, fora proposital. Chamamos a atenção dos sinais de pontuação contidos na letra dessa canção, os dois pontos e o travessão, agora, enfatizamos o ponto final, tanto após a primeira estrofe, que termina em “em vez de escravidão.”, quanto nessa segunda, que termina em “quem não tem chance.”, marcam mudanças no acorde. A música tem uma base em duas notas, que desde a introdução até o momento onde o orador começa a pedir o que não é demais, são as mesmas duas notas. Quando do início de suas reivindicações, a canção passa a ter outros acordes lhe sustentando, uma ruptura e uma mudança visível (ou melhor, audível). Ao iniciarmos esses versos, que encerraram o parágrafo anterior a esse, as bases voltam, novamente as duas notas que soaram no início mais uma vez sustentam a canção.

A mesma esperança do início, que uniu orador e auditório, se transforma em questionamentos comuns a ambos: deve haver esse tão sonhado lugar onde aqueles que são fracos não serão escravizados pelos mais fortes. Uma alusão bíblica que nos remete a várias passagens da mesma. Dentre elas, selecionamos o sermão da montanha, o qual suas “bem-aventuranças são o anúncio da felicidade, porque proclamam a libertação, e não o conformismo ou a alienação” (STORNIOLO, 2001, P.1242). A bíblia, como sendo uma grande fábrica de esperança e fé, também entra na crítica e encorpa o coro por justiça e paz.

Na próxima estrofe, um outro acorde. Esse, na estrutura sonora, funciona com desfecho e prepara para recomeçar a seqüência de acordes até então tocadas. É justamente quando o orador questiona a violência, essa que é responsável por injustiças e pela ausência da paz. “De onde vem a indiferença / temperada a ferro e fogo? / quem guarda os portões da fábrica?”, com esse primeiro verso, temos a nítida impressão de que não se trata de um protesto comunista, de uma cobrança por igualdade. Não é a diferença que mais incomoda os interlocutores nessa canção, e sim a indiferença.

E esse é o sentimento chave da canção: a indiferença. É essa quem transforma a libertação em conformismo e alienação. Uma indiferença condicionada a ferro e fogo, metáforas de violência. Forçando um pouco mais a interpretação, pode-se julgá-las como armas da repressão que tomaram conta do país até aquele momento histórico. Ainda vemos, de forma subentendida, elíptica, o operador argumentativo mas. De onde vem toda essa injustiça condicionada e imposta? Mas quem é mesmo que controla toda a produção? Quem abre as portas das construções sociais? O orador é uma fábrica. Cada um de seu auditório é outra fábrica. Cada indivíduo pode produzir qualquer coisa. A indiferença é o ponto comum na relação entre a fábrica e o mundo onde está inserida.

Mais à frente, uma relação ambígua de sentido. Em evidência a consciência de preservação, o orador dos versos seguintes poderia estar protestando contra a poluição. Mas essa parte é a volta dos primeiros acordes, aqueles dois acordes da introdução que representam o discurso do orador e seus pares. Os operadores “” (somado ao verbo “foi”), “mas” e “agora”, usados nessa estrofe, reforçam uma posição discursiva onde o orador quer introduzir uma mudança de estado e pressupõe, com ajuda dos signos e significações das cores azul, cinza e verde, que o que havia antes era melhor do que há hoje. Indo, inclusive, além disso, na verdade, hoje não há mais. Após toda aquela indiferença temperada a ferro e fogo acabou com a alegria, o azul e com a esperança, o verde. Assim, “o céu já foi azul, mas agora é cinza / e o que era verde já não existe mais.”, podem ser versos de ambígua interpretação, pois os signos invocados têm essa características polissêmicas.

Em vários ditos populares, envolvendo o ato de brincar com o fogo, trás como moral uma conseqüência não agradável. Ainda mais quando se é criança, idade em que o fogo é um grande atrativo, nunca se acha que os ditos sejam verdades, que acontecem mesmo com quem se atreve a brincar e desafiá-los. O orador, ao aproximar-se do fim de sua oratória, joga com essas pueris lembranças, que no fim não são nostálgicas, mas o reconhecimento de uma certa maturidade. Mesmo sabendo que acontece algo quando se brinca com fogo, pois fica claro que o orador crê que a conseqüência existe, ele desafia e se propõe a lutar: “quem me dera acreditar / que não acontece nada de tanto brincar com fogo/ que venha o fogo então”. Esse último verso demonstra um desejo do orador. Essa afirmação está baseada na sua construção frasal, onde o uso do verbo no modo subjuntivo venha e o uso do denotador de situação (BECHARA, 2004, p. 291) então proporciona esse efeito argumentativo.

Os dois versos seguintes são os últimos. Os acordes dessa parte são os mesmos dos versos “de onde a indiferença/ temperada a ferro e fogo?”, e mais uma vez podemos apreender da metáfora utilizada uma violência sofrida pelo orador, e também por seus pares, já que aquele é o porta-voz de todos, “esse ar deixou minha vista cansada, / nada demais”. Aqui podemos enveredar por vários caminhos, vária possibilidades de sentido, uma especialidade da literatura que vagueia sem permissão nas canções mais elaboradas, com uma letra mais compromissada com a língua e cultura.

A vista se cansou por conta desse ar. O elemento anafórico refere-se a quê? O mais próximo de ar é o cinza do céu, que nos remete a poluição atmosférica. Mas o que é “vista cansada”? Musicalmente dividimos a canção em duas partes. Assim também se divide a letra. A voz inicial começou cheia de ímpeto e questionamentos. Mas no decorrer da canção percebemos que o ativismo vai enfraquecendo. E no fim um sinal de uma aparente derrota. Mas não é nada demais. O que parece ser apenas um lamento, pode ser lido como protesto, no sentido da efemeridade das coisas ou ainda se ousarmos em analisar a canção sob o ponto de vista de uma narrativa.

Podemos supor que o enredo dessa canção não esteja em sua ordem linear. Assim, a primeira parte seria o que acontece depois e o que deveria ser o desfecho é na verdade a complicação. A vista ficou cansada por causa desse ar que a deixou assim, nada demais. Ao lermos “vista cansada” como metáfora de morte, o que não é nada de mais acaba se tornando motivo de protesto, daí um orador, uma voz, se fundindo e confundindo com seu auditório. Uma morte não é demais como também não é demais pedir justiça e paz. Mas de onde vem, então, essa indiferença?

Vem de dentro de cada um. Vem das relações entre esses e desses com o mundo. Vem das fábricas e de seus trabalhadores, que poluem o ar e matam o verde, para sobreviverem, o que pode não acontecer de forma esperada, já que o próprio ar cansa as vistas de quem vê. Fábrica não é só uma canção de protesto contra a poluição da natureza ou a injustiça humana. Vai além de simples gritos e súplicas por um trabalho digno. Deve haver um lugar sem escravidão e esse lugar pode ser na fábrica de sonhos e esperanças reais de uma vida sadia para todos, mas quem guarda os portões dessa fábrica?

 (Texto de Marxwel Alves Pantaleão)



Marxwel Alves Pantaleão, formado em Letras Português pela UFES, é professor de português e literatura. Além de poesia, escreve contos, crônica e letras de música. Não se considera um poeta, mas sim um fascinado pelas letras. Gosta de Legião Urbana e todas as vertentes do Rock. No romantismo e no Simbolismo se encontra, mas flerta com o modernismo. Mantém um Blog na rede (www.marxletras.worpress.com) onde publica as Letras dele mesmo e de seus heterônimos (sim, ele gosta de Fernando Pessoa e se acha!).