No decorrer dessa semana, publicaremos, em cinco
partes, uma análise do livro “Zero” (Douglas Salomão), que está na lista dos
livros do VEST UFES 2014, feita por Rodrigo Moreira Almeida. Confira a 1ª parte
do artigo
Lemos na orelha de Zero (Vitória: Secult, 2006, 160 páginas), livro de poemas de
Douglas Salomão, o seguinte sobre o autor:
“Douglas
Salomão é capixaba, artista plástico, formado em Letras-português e mestrando em Estudos Literários
da UFES. No campo das artes visuais, realizou intervenções artísticas e
poéticas com o grupo performático Scem real e participa, desde 1996, de
exposições coletivas de arte, apresentando objetos que transitam entre as
linguagens plástica e literária. Após
desenvolver alguns trabalhos ligados à música experimental (em parceria com
Cons) e participar de grupos de estudos – envolvendo arte, psicanálise,
filosofia e literatura – sua produção ganhou um caráter ainda mais literário.
Como escritor, participou do livro Corpo de barro de Luciene Hibner (2003) e da
Coletânea Instantâneo (2005).”
Como se pode ver, estamos diante de um livro cujo
autor, além de poeta, é também artista plástico e músico. Presumivelmente
trata-se de uma pessoa relevante no cenário cultural do Espírito Santo, por
essa atuação tão diversificada, importância que é confirmada quando notamos que
Zero é uma das obras sugeridas para
leitura do VEST–UFES 2014. Isso não é pouca coisa: afinal, o fato de um autor
capixaba ser leitura sugerida para o vestibular da única universidade pública
deste estado significa que tal autor é “representativo” da literatura produzida
no Espírito Santo. Entretanto, como nem o reconhecimento institucional nem a
atuação do autor no cenário cultural são garantias de qualidade literária, Zero deve ser analisado e julgado por
seus próprios méritos. Aliás, por se tratar de um livro “representativo” da
produção literária no Espírito Santo, que deverá ser lido por centenas de
estudantes que prestarão o vestibular da UFES, a análise requerida deve ser
tanto mais rigorosa.
Começo, então, pelas epígrafes do livro. A primeira
é uma frase de Maurice Blanchot, “Escrever é quebrar o vínculo que une a
palavra ao eu”, que já permite descobrir algo da proposta literária de Douglas
Salomão. Para ele, a escrita (o que inclui, obviamente, a escrita de um poema)
não é um meio para expressar sentimentos ou estados de alma da pessoa que
escreve. O poema possui uma vida independente de seu autor, com um valor também
independente de seu criador. Para usar uma metáfora de João Cabral de Melo
Neto, o poema é “um organismo acabado, capaz de vida própria. É um filho, com
vida independente, e não um membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver
por si mesmo”.
O próprio João Cabral, como se sabe, demonstrou
esse anti-expressionismo tanto em suas produções poéticas como em suas
declarações sobre sua poesia, constituindo-se num marco importante do que
podemos chamar de vertente construtivista
da poesia brasileira moderna, preocupada em enfatizar a construção ou
composição do poema em detrimento da expressão da subjetividade do poeta. Um outro
marco importante dessa corrente é o grupo Noigandres, encabeçado por Augusto e Haroldo
de Campos e Décio Pignatari, responsável pela produção teórica e artística da
poesia concreta. De fato, num de seus manifestos mais importantes (que não por
acaso cita Cabral como precursor, pela “linguagem direta, economia e arquitetura
funcional do verso”), o grupo define o poema concreto como “um objeto em e por
si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas”. Não por acaso, a segunda
epígrafe de Zero é um trecho de
“Ovonovelo”, poema escrito por Augusto de Campos, o que vem confirmar o
propósito de Douglas Salomão em filiar-se a uma tradição construtivista:
Embora não seja um poema concreto, mas um caligrama,
“Ovonovelo” foi escrito em 1956, época das primeiras teorizações a respeito da
poesia concreta. Por conta disso, o poema já mostra algo da proposta estética do
grupo Noigandres, que seria desenvolvida em mais detalhes nos anos seguintes. Assim,
a figura do círculo, além de estar presente no aspecto visual do poema, também se
encontra representada no circuito de aliterações e paronomásias do texto: “nu / des do nada
/ ate o hum / ano mero nu / mero
do zero / crua criança incru /
stada”. Aqui, a forma não é simplesmente imposta ao texto de fora, como na
maioria dos caligramas: ela impregna o ritmo do poema, pela interação entre
palavras sonoramente semelhantes. O rigor construtivo, alheio a “sensações mais
ou menos subjetivas”, aparece claramente, de tal maneira que há uma interação
entre fundo e forma, entre o que o
poema diz e como ele diz. Esse
simbolismo fonético, observado em "Ovonovelo", obviamente não é
privilégio de poetas construtivistas: é uma das características mais marcantes
do discurso lírico em todas as épocas.
Porém, nesse caso, o rigor construtivo associa-se à
anulação dos sentimentos subjetivos do poeta, conforme observado na epígrafe de
Maurice Blanchot. Podemos,
assim, discernir o que parece ser o projeto literário de Douglas Salomão,
definido em Zero: escrever uma poesia
que seja independente daquele que a escreve, algo que não precise referir-se à
pessoa do poeta para funcionar corretamente. Ao mesmo tempo, busca-se o
trabalho exaustivo em cada parte do poema, de modo a fazer com que haja uma
identificação ideal entre fundo e forma, entre o que se diz e como se diz.
Anti-expresionismo e rigor formal são, portanto, as duas balizas que supostamente
delimitam a produção reunida no livro. Cabe, agora, ver se o autor efetivamente
conseguiu cumprir à risca sua proposta.
Nesse sentido, a primeira observação relevante que
se pode fazer é a seguinte: para um livro que toma como diretriz de escrita a
preocupação com a construção, Zero impressiona
pela sua absoluta falta de unidade e coerência. Encontramos nele, misturados,
poemas em verso, poemas espacializados, poemas (supostamente) tipológicos, sem
que houvesse sequer o trabalho de separá-los em seções, o que certamente
facilitaria a leitura (e, com ela, a crítica). À desorganização soma-se a falta
de rigor na composição dos poemas, a despeito do que pretende seu autor.
Os poemas menores, de apenas um ou dois
versos, dão o melhor exemplo disso: de trivialidades como “avenca só dá em casa
de gente feliz” (p. 127) até versos que se pretendem “pílulas” de sabedoria,
como “escrever é colocar a vida em risco” (p. 83), estão todos mais preocupados
com a simples veiculação de “ideias”, sem que haja preocupação com o modo como essas “ideias” serão
transpostas para o papel. Exemplos dessa frouxidão podem ser facilmente encontrados
nos dísticos e monósticos do livro: “meus olhos olham para as coisas / sem
minha permissão” (p. 61); “inveja tem os olhos como casa” (p. 73); “a memória é
o tempero do tempo” (p. 91); “cacos de garrafa em pedaços / são quebra-cabeças
de vidro” (p. 103); “sorriso é como um rio que deságua no rosto” (p. 129);
“espinho é um arrepio de galho” (p. 131), e por aí vai. Querendo apenas ser um
instrumento para o anúncio de ideias simpáticas ou solenes, esses poemas
possuem um trabalho apenas superficial com a linguagem, pois apesar de
pontuados aqui e ali com algumas metáforas e aliterações, a forma não altera a
estrutura profunda do texto. Isso pode ser comprovado por um fato muito simples:
ao invés de privilegiar uma sintaxe elíptica, mais adequada à forma curta,
Douglas Salomão mantém intacta toda estrutura da sintaxe discursiva,
tradicional, em seus poemas curtos. Compara-se, por exemplo, qualquer dos
poemas citados com a “montagem” de takes e
a rapidez comunicativa de “Numa estação de metrô”, de Ezra Pound: “A aparição
destes rostos entre tantos / Pétalas num úmido, negro ramo".
Rodrigo
Moreira de Almeida é formado em Letras -Português pela Universidade Federal do Espírito
Santo e professor da rede particular em Vila Velha. Atualmente,
tenta organizar melhor o tempo para poder estudar para o mestrado da UFES.
Pratica a crítica literária nas horas vagas.
Onde compra esse livro?
ResponderExcluirEu também queria saber onde encontrar este livro. Tennho bastante interesse.
ResponderExcluirVocê explica muito bem!
ResponderExcluirQuero comprar esse livro....sabe onde encontrá lo???? Sou de Santa Catarina e por aqui não encontrei.... avise me pelo facebook: ritinhasilveira
ResponderExcluirquero comprar o livro.... sabes onde encontrar??
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