No decorrer dessa semana, publicaremos, em cinco
partes, uma análise do livro “Zero” (Douglas Salomão), que está na lista dos
livros do VEST UFES 2014, feita por Rodrigo Moreira Almeida. Confira a 2ª parte
do artigo
Passando para os poemas mais longos, a situação melhora,
mas ainda encontramos vários exemplos de traição ao projeto proposto nas
epígrafes. Ao invés de uma escrita que cortasse o vínculo entre a palavra e o
eu, encontramos um eu lírico atormentado com seu “vazio interior”: “Há dias uma
escuta interna ruindo / uma voz sem nome de nada / um arranhão vivo me
incomoda” (p. 81); “e permaneço no desespero do encontro / garimpando as
palavras no silêncio do meu si” (p. 49). Um caso extremo dessa tendência ocorre
em “solidão” (p. 157), poema que é um amontoado de clichês do quilate de “mora
em mim / uma agonia / de esperar / passar o tempo” ou de “em mim / mora um
vazio / ele dorme / em meu deserto”.
Novamente, seria útil recorrer à comparação, lendo
alguns versos de “Psicologia da composição”, do já citado João Cabral: “Cultivar o deserto / como um pomar às
avessas: // então, nada mais / destila; evapora; / onde foi maçã / resta uma
fome; // onde foi palavra / (potros ou touros / contidos) resta a severa /
forma do vazio”. Importante notar que Cabral utiliza os mesmos substantivos que
Douglas, “vazio” e “deserto”, mas o resultado é bastante diferente: as palavras
não designam algo interior, subjetivo, mas exterior e manipulável. O
deserto é “cultivado” pelo sujeito lírico, e o “vazio” é aquele da página, no
qual a palavra deixa de ser (“onde foi palavra”),
após ser contida como “potros ou touros”. A distância entre o tratamento que um
e outro dão a esses termos é a distância que separa um poeta agoniado pelo
“vazio interior” que precisa expressar e um poeta agoniado
por sua redução ao silêncio (talvez por reconhecer sua absoluta irrelevância).
Em outros poemas, a falta de rigor aparece na
repetição acrítica de procedimentos já consagrados do modernismo, como é o caso
de [nervo se firma no osso] (p. 51), tentativa malsucedida de reproduzir o
esquema “palavra-puxa-palavra” do concretismo. Começando com uma sequência de
orações em voz passiva e substantivos concretos ("nervos se firma no osso
/ perna se solta no passo / abraço se aperta no braço"), o poema tem uma
clara queda de tom no quarto verso, que destoa do conjunto pelo uso da voz
ativa e do substantivo abstrato ("curiosidade estica o pescoço"). Apesar
disso, a presença das rimas internas em osso/pescoço e passo/abraço/braço
impedem que o poema perca inteiramente o valor. Outro caso de emulação da
poesia concreta é [a escrita estoura a escrita estou] (p. 47). Organizado a
partir de uma série de paronomásias nas três primeiras estrofes ("a
escrita estoura a escrita estou / a escrita estoura a escrita excreta / a
escrita estória a escrita histórica / a escrita cria a escrita estoura"),
o poema subitamente abandona esse esquema e introduz uma nova série de
paronomásias na quarta estrofe ("tudo que arranha o silêncio / arranca
fala dele / o que estala espeta algum ruído / o que o silêncio expande /
espreme o que estanca / tudo que arranca, tudo que arranha [...]"). Com
exceção da palavra "estala", usada também na terceira estrofe, nada
no contexto anterior do poema prepara esse desenvolvimento. Da mesma forma, após
a quarta estrofe, o esquema paronomástico não tem prosseguimento no decorrer do
poema. Temos aqui o mesmo problema observado em [nervo se firma no osso]: um
trecho (no caso, não mais um verso, mas uma estrofe inteira) que destoa
fortemente do conjunto. Já em [a terra é azul vista do espaço] (p. 59), o
poema-piada modernista, já transformado em clichê pela poesia “marginal” dos
anos 70, é requentado pela enésima vez: “será que marte tem mar? / será que
mercúrio tem cura? / é vermelho e não arde, / mas na verdade / o que queima
mesmo / é merthiolate”.
Porém, nem tudo é descartável, pois são nos poemas
mais longos em verso que estão as melhores realizações de Douglas Salomão em Zero.
Em [o mar mastiga a praia] (p. 57), por exemplo, encontramos
achados como “o mar mastiga a praia // com avidez de água viva / faz barulho
quando come”, um belo trecho que, infelizmente, tem sua força diminuída pela
personificação trivial posta pouco depois: “mar tem boca azul / e línguas de
ondas / a lamber a areia”. Da mesma forma, em [trazia na memória, o medo] (p.
21), uma bela metáfora acaba perdendo sua força em meio ao “queísmo” da
terceira estrofe: “dizia que ao seu
redor, / tudo o que via era vivo / e que as coisas eram feitas / de olhos que não piscam”. Aqui e ali no livro, encontramos exemplos de
alta voltagem poética, pela aproximação de palavras que, aparentemente, nada
tem a ver uma com a outra: “palavras engravidam nos olhos / e não cabem no
corpo das pessoas” (p. 35); “feito um nó na garganta / que só se desfaz no
caminho / inverso da conversa / através dos fios da fala na agulha” (p. 45). Note-se,
nesse último trecho, a rima interna em “inverso
da conversa” (que reitera
fonicamente, como rima “ao contrário”, já que lida do final para o meio do
verso, o próprio significado da palavra “inverso”) e o uso do coloquialismo (“nó
na garganta”, “bala na agulha”) junto com palavras pertencentes ao campo
conceitual da tecelagem (“desfaz”, “fios”), recursos que enriquecem em muito os
sentidos do poema. Em [dia inteiro] (p. 119), o trabalho com a linguagem
evidencia-se na aliteração das consoantes sibilantes ("amanhecendo / o dia cede, / cedo, / o sol.") e pelos versos finais
("pendura na noite, / e cai,"), nos quais destaca-se a bela imagem do
dia "pendurado" na noite e também o enjambement nada arbitrário, já que a passagem brusca do verso
heptassílabo para o dissílabo reproduz, na própria estrutura do texto, o cair
do dia e a passagem repentina para a noite. A mesma qualidade pode ser notada
em [salivo] (p. 69), poema que considero um dos melhores do livro, e que, por
isso, deve ser citado na íntegra:
salivo
ao ácido, sumo
entre o cítrico, espirro
ante a casca, absorvido
ao cheiro vivo
sumo,
que me alaga a língua
ficando o lábio
espremido,
sumo entre a azia, entre
a água azeda de um
limão traduz-
ido
O movimento da língua é sugerido pela repetição das
consoantes sibilantes (“salivo / ao
ácido, sumo / entre o cítrico,
espirro”) e constritivas laterais (“que
me alaga a língua / ficando o lábio”).
Ao mesmo tempo, a ambiguidade de “sumo” (que pode ser tanto o verbo “sumir”
como o suco da fruta) reforça a imagem apresentada no poema: um limão sendo
experimentado por um eu lírico que “se perde”, "sumindo" durante a degustação.
Em pelo menos duas ocasiões (“absorvido / ao cheiro vivo / sumo,” e “sumo entre
a azia, entre / a água azeda de um / limão traduz- / ido”), as duas leituras da
palavra são possíveis. O ato de experimentar o limão é literalmente “traduzido”
no poema, como afirmam os versos finais, que, aliás, são ricos em leituras
possíveis pela disposição da palavra em dois versos diferentes: o “z” final de
“traduz” reforça a aliteração das sibilantes já notada, e o “ido” retoma a
imagem do desaparecimento, agora associado à fruta. Assim como o eu lírico, a
fruta experimentada também some, chupada por quem a saboreia.
(Rodrigo Moreira de Almeida)
(Rodrigo Moreira de Almeida)
Confira a 1ª parte do artigo "Zero à esquerda": http://outros300.blogspot.com.br/2013/02/literatura-vest-ufes-2014-zero-esquerda.html
Rodrigo
Moreira de Almeida é formado em Letras -Português pela Universidade Federal do Espírito
Santo e professor da rede particular em Vila Velha. Atualmente,
tenta organizar melhor o tempo para poder estudar para o mestrado da UFES. Pratica
a crítica literária nas horas vagas.
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