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Porque
morremos, dominamos a vida, ameaçando-a, escravizando-a, matando-a. Qualquer
forma de poder, entendida como relação entre forças que disputam o domínio de
umas sobre as outras, funda-se antes de tudo, portanto, a partir de uma
evidente ameaça à vida: se você não se submeter aos meus caprichos, eu te mato.
Se não morrêssemos, é possível supor, em consequência, não existiria dominação
econômica, patriarcal, étnica, etária, cultural, Porque morremos e antes de
tudo porque temos medo de morrer, somos condenados a viver sem viver, pois
entregamos nossas vidas – força de trabalho, inteligência, beleza, arte,
engenho – a uma elite que nos ameaça permanentemente, ao se apropriar dos meios
de produção ao mesmo tempo da vida e da morte, de forma indiscernível, uma vez
que o que produz as condições de vida, o trabalho coletivamente potencializado
pelos recursos tecnológicos de uma dada época, é, concentrado oligarquicamente,
fatalmente usado contra as maiorias.
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Se o medo de
morrer é a razão por que somos dominados, a consciência desafiadora de nossa
comum condição de mortais detém, por outro lado, a seguinte potência
insubmissa: porque morremos, somos absolutamente iguais, razão pela qual
privilégio algum se justifica. O papa morre como eu. O rei morre como eu. O
rico morre como eu. Somos inapelavelmente tomados e tramados por um destino
comum, a morte. Logo só existe uma saída digna: a exigência de um destino
humano a um tempo individual e coletivo fundado na igualdade tanto mais
propensa a produzir diferenças expressivas entre os vivos quanto mais for
infinita, numa relação diretamente proporcional: mais igualdade, poço sem fundo
(inclusive entre humanos e não humanos), mais produziremos condições adequadas
para sermos diferentes; mais seremos livres para inventar-nos, para além de
toda domesticação, submissão, humilhação, ilusão, enganação.
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É nesse sentido
que penso ser possível dialogar com Karl Marx quando, n’O capital contestou a concepção
idealista da dialética de Hegel, ao argumentar que não são as ideias contrárias
que movimentam a história, mas o mundo concreto, com suas reais relações de
produção. Com o apoio de Marx, portanto, é possível deduzir que é a necessidade
intrínseca (porque somos efetivamente iguais) de produção da igualdade entre os
homens que movimenta a história, razão por que, fora da igualdade, de seu devir
infinito, no mundo de ideias fora de lugar, produzimos inevitavelmente um mundo
de cabeça para baixo, pela simples razão de que o trabalho e a inteligência
coletivos constituem antes de tudo trabalho e inteligência igualmente sociais,
de todos e de ninguém, motivo pelo qual a propriedade privada é um escandaloso
roubo do comum e produz esta aberração insustentável: a desigualdade entre
seres fundamentalmente iguais – os vivos.
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Tudo que tem
valor vital, portanto, tem em si ao menos o desejo da igualdade, no mundo
insuportavelmente desigual. A criação, quando não cria em conformidade com um
mundo de cabeça para baixo, porque desigual, é criação, de uma forma ou de
outra, de igualdades. A experimentação vanguardista, por mais ousada que seja,
por mais singular, é, se tiver valor vital, experimentação impulsionada pela
busca da igualdade entre os homens, constituindo-se, portanto, como
intrinsecamente anti-hierárquica e assumidamente criadora de horizontes, ainda
que utópicos, de porvires comuns. O que se experimenta, mais que a diferença
pela diferença, no campo das vanguardas revolucionárias, é, pois, a invenção de
igualdades. É nesse contexto que o argumento de que a vanguarda que realmente
interessa é a da retaguarda, defendido por Boaventura de Souza Santos, faz
plenamente sentido, porque é a experimentação vanguardista, a que vale a pena,
é precisamente aquela que não abandona a retaguarda, entendida como o lugar da
vida comum, mas, pelo contrário, é aquela que age, mais que em seu nome,
através de seus impulsos de infinitas igualdades, devires.
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Cada época
histórica se define, portanto, pelas retaguardas experimentações vanguardistas
em busca do comum, da igualdade infinita entre os seres, razão pela qual, sob o
ponto de vista inverso, invertido, o desafio das forças desiguais é
precisamente o de colocar de cabeça para baixo as experimentações vanguardistas
das retaguardas, fazendo-as agir contra si mesmas a fim de produzir, no lugar
de infinitas igualdades, finitas desigualdades, porque literalmente fatais.
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São,
marxistamente falando, as tecnologias de produção de uma época ou outra que
constituem o cenário de luta entre a infinita igualdade e a finita
desigualdade. No contemporâneo, marcado pelas tecnologias de comunicação, que
aproximam e multiplicam geometricamente as forças produtivas comuns (as
econômicas, as culturais, as epistemológicas), o movimento da igualdade é
inseparável da infinita democracia, entendida como o inegociável poder de
gestá-las no comum, em flagrante oposição a toda forma de apropriação privada
de sua potência de arquivar e produzir no comum, entre comuns, tendo em vista o
horizonte sem fim da igualdade entre os vivos, inventando-nos sem cessar,
sempre tendo em vista mais e mais igualdade.
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Como vivemos na
insustentável época em que, não obstante o comum informa-se, produz-se e
forma-se em tempo real, mundialmente, através de tecnologias planetárias de
comunicação, estas são literalmente usadas para usurpar a igualdade de forma
tanto mais trágica e genocida tanto mais essa usurpação tem alcance mundial,
para não dizer cosmológico. Para produzir essa desigualdade mundial, acumulando
oligarquicamente as matérias-primas humanas e não humanas (animadas e
inanimadas), do planeta todo, o principal recurso ideológico da produção sem
fim de desigualdade da atual época em que vivemos se constitui pela produção
fantasiosa, mistificadora, mítica mesma, de uma pseudo-igualdade planetária
entre os humanos, especialmente no plano dos direitos civis, na suposição
prévia de que só existe igualdade possível e efetiva no campo cultural,
deixando de lado cinicamente o mundo das relações econômicas, mais desigual do
que nunca.
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O principal
papel das tecnologias midiáticas do mundo contemporâneo, dominadas por
oligarquias, é o de produzir a ficção planetária de uma humanidade marcada e
demarcada pela igualdade de ritmos musicais, todos gostando das mesmas músicas,
dos mesmos cantores e cantoras; pelas igualdades cinematográficas, noveleiras,
ficcionais, noticiosas, políticas, num contexto em que todos devem ver os mesmos
filmes, as mesmas novelas, assim como gostar dos mesmos ritmos musicais, dos
mesmos formatos de jornalismo, de entretenimento, de programa de auditório,
adorando, numa palavra, os mesmos famosos, a infame fama pela fama, tecida e
entretecida para produzir desigualdades verdadeiras, através da ficção mundial
de uma igualdade baseada apenas no desejo de ser famoso, de comprar tal ou qual
mercadoria, tal como tal ou qual famoso nos fez crer que é importante ter; pelo
desejo e estilo, enfim, de ser desigual, privilegiado, mito desencarnado do
comum, porque absolutamente desconectado das necessidades da multidão de
retaguardas, eternamente condenada, embora o deseje, a não ter nem a fama e nem
muito menos as mercadorias de marca dos famosos.
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E pasmem que ainda
não paramos de produzir notícias sobre a violência da retaguarda, acusada de
terrorista e de traficante, por, precisamente, agir no mesmo campo da
estrutural guerra entre famosos e anônimos. Qualquer notícia sobre violência,
portanto, que não coloque em destaque a insustentável agressão de um mundo de
mitos desencarnados do comum é parte literalmente da mentira geral que nos
desnorteia a tod@s, numa época não menos literalmente de cabeça para baixo, na
qual e através da qual, como dizia Robert Kurz, todos somos burgueses porque
todos estamos mergulhados no mar sem fundo das relações de compra e venda.
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Esta é, pois, a
humanidade midiática: mundialmente de cabeça para baixo desejando, nessa
perspectiva, tornar-se igual aos mitos desencarnados que esbanjam luxo,
narcisismo, presunção, desigualdades. Para produzir o espetáculo mundial de uma
humanidade invertida, ainda que divertida, a estratégia é literalmente esta:
produção local, nacional e global de mitologias desencarnadas do comum, embora
vivam de sanguessugá-lo. O escritor Roland Barthes, em Mitologias (2001),
detectou sagazmente a fórmula das mitologias contemporâneas ao argumentar que o
mito é um signo vazio infinitamente preenchido a partir das mudanças de
contextos, o que é o mesmo que dizer que vivemos numa época de mitos
desencarnados dos contextos comuns. Para exemplificar seu argumento, Roland
Barthes apresentou o caso publicitário de um soldado argelino alistado nas
forças armadas francesas. A imagem de um homem negro, de cidadania nigeriana,
num cartaz produzido pelo exército francês, como um soldado francês, funciona
como um signo vazio, deslocado de seu contexto, a Argélia colonizada
brutalmente pela França, sendo, pois, preenchido pelo mito de uma França
democrática, livre de preconceitos raciais e benevolente com os seus
colonizados, tanto que os alista em suas forças armadas.
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O sistema de
mitos das armadas forças midiáticas mundiais funciona tal como conceituou
Roland Barthes em Mitologias:
produz sem cessar signos vazios preenchidos (leia-se editados) infinitamente
com o único objetivo: ratificar uma humanidade ela mesma um mitológico signo
vazio preenchido para que o insustentável se sustente: a desigualdade
naturalmente igual de todos os humanos, vivendo comumente de cabeça para baixo,
sem nunca deixar de desejar o lugar desigual do céu dos famosos, num contexto
invertidamente comum, através do qual o que realmente preenchemos,
acumuladamente, é o caixão de nossas injustificáveis e desiguais mortes
passadas, presentes e futuras, eliminando-nos como vanguardas de infinitos e
benfazejos porvires encarnados no comum, nos quais e através dos quais, mais
que ser para morte, finitos, para citar e contestar Heidegger, poderíamos e
poderemos fazer-nos como seres infinitos, para a vida.
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As mitologias
midiáticas do contemporâneo são, pois, um planetário caixão vazio onde
depositamos nossas mortes passadas, presentes e futuras (desigualdades de
desigualdades) editando-as como se fossem exuberantes famosas vidas, sem as
quais não podemos viver (na verdade morrer) de cabeça para baixo.
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(Texto de
Luís Eustáquio Soares)
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de
Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo.
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