O
romance “O Meu Nome É Legião”, de Antonio Lobo Antunes, versa sobre morte,
violência e solidão. É uma reflexão sobre a incomunicabilidade, o medo e a
angústia. A obra rompe com o silêncio e apresenta os pós-colonizados e
africanos em Portugal. O
cenário é o da periferia.
O
título é inspirado numa citação do Evangelho de São Paulo e amplifica a
diabolização do mal. “É a voz do mal, corporizado no homem interpelado por
Jesus, que orgulhosamente afirma: ‘Meu nome é legião’, referindo-se às inúmeras
formas e designações que o mal toma” (Agripina Vieira). A obra começa como um
relatório de polícia, descrevendo a vida de uma gangue numa zona a que se chama
Bairro 1º de Maio. É noite quando oito garotos, com idades entre 12 e 19 anos,
roubam dois carros. Ao alcançarem uma autoestrada, passam a praticar crimes
bárbaros madrugada adentro.
O
referido relatório fica a cargo de Gusmão, um desiludido policial já em fim de
carreira e que não é respeitado no serviço. Sua existência é caracterizada por
um enorme sentimento de solidão e abandono. Os oito jovens (um branco, um negro
e seis mestiços) se chamam Ruço, Cão, Gordo, Capitão, Miúdo, Galã, Hiena e
Guerrilheiro. São pessoas transparentes que vivem no Bairro 1º de Maio (o Dia
Mundial do Trabalhador) e têm as funções de operários e pedreiros.
Conflito
A
obra, além de apresentar muitos aspectos pós-coloniais, mostra uma séria luta
de classes: a periferia (negros do bairro) contra o centro (brancos de Lisboa).
Interessante notar que a periferia não ameaça o centro simbolicamente e, sim,
violentamente. O romance versa acerca do luar do outro migrante no Portugal
atual. Um “outro” à procura de uma razão existencial. Bairros problemáticos,
como o 1º de Maio, são o rosto de um Portugal que parece querer reprimir a
pós-colonialidade, como se as sobras do Império lhe fossem inteiramente
exteriores. Como aponta Ana M. Fonseca, os miúdos são “pessoas das margens de
um país que não soube se desembaraçar. Essa realidade interroga a identidade
portuguesa”.
Aqui,
cada personagem é um ser social atuante e revela as formas de injustiça. Os
miúdos respondem com violência física a arbitrariedade da falta de tudo. Eles
são uma legião, um bando, uma multidão do mal. Como afirma Suzana Cristina
Guimarães e Castro, os jovens “são deslocados da sociedade, cuja convivência
com as demais pessoas se salda por um convívio muito pouco harmonioso”. Como
aponta Hall, “as identidades modernas estão sendo ‘descentradas’, isto é,
deslocadas ou fragmentadas”.
Destarte,
suas vozes (do bando e do bairro) se misturam aos traços sentimentais de Gusmão
no hetedoroxo relatório policial que produz. A narrativa sustenta-se na figura
do inquérito, a qual permite a introdução dos vários discursos das personagens
que serão intimidadas a falar. Ou seja, há uma polifonia, vários discursos
compõem o inquérito.
Esse
recurso narrativo, a interprenetração das vozes enunciativas, faz com que não
saibamos quem diz o quê. Na verdade, há uma confusão de vozes. No que tange a
estrutura do livro, há um jogo peculiar de intensificação e diluição das vozes
narrativas, por meio da utilização ou da ausência de travessões a antecederem
as falas, alteração que se produz em cada três capítulos, à exceção dos últimos
seis. Não é usado o travessão como elemento introdutor de diálogos. Dos
capítulos um ao 14, apenas Gusmão fala (e fala de seus sentimentos), já dos
capítulos 15 ao 19, são os jovens quem falam, numa versão diferente da de
Gusmão. Eles expõem as dores sofridas, maus-tratos familiares, ausência da mãe,
falta de afeto e abusos sexuais. Assim, nota-se que se tratam de seres
dilacerados e estilhaçados, que vivem num conflito interior e exterior.
Entretanto, muitas vezes, é o próprio Gusmão quem profere as falas dos outros.
Racismo
Gusmão,
nesse relatório, se apresenta solitário. Intercala memórias tristes com cenas
dos crimes que está escrevendo e até chega a pedir desculpas por incluir traços
sentimentais ao inquérito. O policial emite inúmeros comentários racistas,
profere estereótipos negros, compara-os a bichos, a “macacos” e diz que são uma
“espécie zoológica distinta” e “acasalam como bichos”. Essa linguagem
desumaniza o colonizado e justifica sua subordinação aos brancos. Os
portugueses, apesar de não assumirem, têm desprezo pelos africanos. Sobre isso,
reflete Bhabha: “Os olhos do homem branco destroçam o corpo do homem negro e
nesse ato da violência epistemológica seu próprio quadro de referência é
transgredido, seu campo de visão perturbado”.
Assim,
não se percebe diferença entre as relações de poder no período colonial e a de
Portugal pós-colonial. Isso parece confirmar a tese de que “o negro não tem
alma”, como revelava a Companhia de Jesus.
A raça é onipresente nessa obra. Lobo Antunes insere na trama
estereótipos raciais difundidos na sociedade portuguesa. Os imigrantes
africanos pós-1925 e os estrangeiros é que têm voz nesse romance em que o
Império é exposto e dissecado sem heroísmo.
Os
próprios moradores do bairro têm preconceitos contra si mesmos. A irmã de
Hiena, mesmo sendo casada com um branco, chega a indagar-se: “Teremos alma, nós
pretos?”. Percebe-se nessa fala uma
alienação social e psicológica. A
prostituta Georgette se redime porque é branca, mesmo vivendo com um negro, o
“Gordo”, que a trata como “Senhora”. Aqui, ser negro é ser menor em humanidade.
É perder direitos.
Por
fim, o solitário Gusmão, que acaba morando no bairro, também fala de sua filha
e a compara com o “indefeso” Miúdo. Fala da fragilidade de ambos. Nota-se,
aqui, a problematização dos estereótipos, pois os brancos também são
desamparados. Apesar dos muros sociais, a dor une a todos, pois todos, no fim,
estão à margem. A raça desune, mas o desamparo liga todos os personagens. O
desamparo gera isolamento, incomunicabilidade, ausência de afeto e de calor
humano. A cor é marca de alteridade, pois todos sofrem independente da cor.
(Texto
de Ricardo Salvalaio publicado no Caderno Pensar, do Jornal A Gazeta, no dia
09/02/2013)
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