quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

NOTAS SOBRE O CAIXÃO VAZIO



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Porque morremos, dominamos a vida, ameaçando-a, escravizando-a, matando-a. Qualquer forma de poder, entendida como relação entre forças que disputam o domínio de umas sobre as outras, funda-se antes de tudo, portanto, a partir de uma evidente ameaça à vida: se você não se submeter aos meus caprichos, eu te mato. Se não morrêssemos, é possível supor, em consequência, não existiria dominação econômica, patriarcal, étnica, etária, cultural, Porque morremos e antes de tudo porque temos medo de morrer, somos condenados a viver sem viver, pois entregamos nossas vidas – força de trabalho, inteligência, beleza, arte, engenho – a uma elite que nos ameaça permanentemente, ao se apropriar dos meios de produção ao mesmo tempo da vida e da morte, de forma indiscernível, uma vez que o que produz as condições de vida, o trabalho coletivamente potencializado pelos recursos tecnológicos de uma dada época, é, concentrado oligarquicamente, fatalmente usado contra as maiorias.

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Se o medo de morrer é a razão por que somos dominados, a consciência desafiadora de nossa comum condição de mortais detém, por outro lado, a seguinte potência insubmissa: porque morremos, somos absolutamente iguais, razão pela qual privilégio algum se justifica. O papa morre como eu. O rei morre como eu. O rico morre como eu. Somos inapelavelmente tomados e tramados por um destino comum, a morte. Logo só existe uma saída digna: a exigência de um destino humano a um tempo individual e coletivo fundado na igualdade tanto mais propensa a produzir diferenças expressivas entre os vivos quanto mais for infinita, numa relação diretamente proporcional: mais igualdade, poço sem fundo (inclusive entre humanos e não humanos), mais produziremos condições adequadas para sermos diferentes; mais seremos livres para inventar-nos, para além de toda domesticação, submissão, humilhação, ilusão, enganação.

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É nesse sentido que penso ser possível dialogar com Karl Marx quando, n’O capital contestou a concepção idealista da dialética de Hegel, ao argumentar que não são as ideias contrárias que movimentam a história, mas o mundo concreto, com suas reais relações de produção. Com o apoio de Marx, portanto, é possível deduzir que é a necessidade intrínseca (porque somos efetivamente iguais) de produção da igualdade entre os homens que movimenta a história, razão por que, fora da igualdade, de seu devir infinito, no mundo de ideias fora de lugar, produzimos inevitavelmente um mundo de cabeça para baixo, pela simples razão de que o trabalho e a inteligência coletivos constituem antes de tudo trabalho e inteligência igualmente sociais, de todos e de ninguém, motivo pelo qual a propriedade privada é um escandaloso roubo do comum e produz esta aberração insustentável: a desigualdade entre seres fundamentalmente iguais – os vivos.

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Tudo que tem valor vital, portanto, tem em si ao menos o desejo da igualdade, no mundo insuportavelmente desigual. A criação, quando não cria em conformidade com um mundo de cabeça para baixo, porque desigual, é criação, de uma forma ou de outra, de igualdades. A experimentação vanguardista, por mais ousada que seja, por mais singular, é, se tiver valor vital, experimentação impulsionada pela busca da igualdade entre os homens, constituindo-se, portanto, como intrinsecamente anti-hierárquica e assumidamente criadora de horizontes, ainda que utópicos, de porvires comuns. O que se experimenta, mais que a diferença pela diferença, no campo das vanguardas revolucionárias, é, pois, a invenção de igualdades. É nesse contexto que o argumento de que a vanguarda que realmente interessa é a da retaguarda, defendido por Boaventura de Souza Santos, faz plenamente sentido, porque é a experimentação vanguardista, a que vale a pena, é precisamente aquela que não abandona a retaguarda, entendida como o lugar da vida comum, mas, pelo contrário, é aquela que age, mais que em seu nome, através de seus impulsos de infinitas igualdades, devires.

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Cada época histórica se define, portanto, pelas retaguardas experimentações vanguardistas em busca do comum, da igualdade infinita entre os seres, razão pela qual, sob o ponto de vista inverso, invertido, o desafio das forças desiguais é precisamente o de colocar de cabeça para baixo as experimentações vanguardistas das retaguardas, fazendo-as agir contra si mesmas a fim de produzir, no lugar de infinitas igualdades, finitas desigualdades, porque literalmente fatais.

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São, marxistamente falando, as tecnologias de produção de uma época ou outra que constituem o cenário de luta entre a infinita igualdade e a finita desigualdade. No contemporâneo, marcado pelas tecnologias de comunicação, que aproximam e multiplicam geometricamente as forças produtivas comuns (as econômicas, as culturais, as epistemológicas), o movimento da igualdade é inseparável da infinita democracia, entendida como o inegociável poder de gestá-las no comum, em flagrante oposição a toda forma de apropriação privada de sua potência de arquivar e produzir no comum, entre comuns, tendo em vista o horizonte sem fim da igualdade entre os vivos, inventando-nos sem cessar, sempre tendo em vista mais e mais igualdade.

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Como vivemos na insustentável época em que, não obstante o comum informa-se, produz-se e forma-se em tempo real, mundialmente, através de tecnologias planetárias de comunicação, estas são literalmente usadas para usurpar a igualdade de forma tanto mais trágica e genocida tanto mais essa usurpação tem alcance mundial, para não dizer cosmológico. Para produzir essa desigualdade mundial, acumulando oligarquicamente as matérias-primas humanas e não humanas (animadas e inanimadas), do planeta todo, o principal recurso ideológico da produção sem fim de desigualdade da atual época em que vivemos se constitui pela produção fantasiosa, mistificadora, mítica mesma, de uma pseudo-igualdade planetária entre os humanos, especialmente no plano dos direitos civis, na suposição prévia de que só existe igualdade possível e efetiva no campo cultural, deixando de lado cinicamente o mundo das relações econômicas, mais desigual do que nunca.

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O principal papel das tecnologias midiáticas do mundo contemporâneo, dominadas por oligarquias, é o de produzir a ficção planetária de uma humanidade marcada e demarcada pela igualdade de ritmos musicais, todos gostando das mesmas músicas, dos mesmos cantores e cantoras; pelas igualdades cinematográficas, noveleiras, ficcionais, noticiosas, políticas, num contexto em que todos devem ver os mesmos filmes, as mesmas novelas, assim como gostar dos mesmos ritmos musicais, dos mesmos formatos de jornalismo, de entretenimento, de programa de auditório, adorando, numa palavra, os mesmos famosos, a infame fama pela fama, tecida e entretecida para produzir desigualdades verdadeiras, através da ficção mundial de uma igualdade baseada apenas no desejo de ser famoso, de comprar tal ou qual mercadoria, tal como tal ou qual famoso nos fez crer que é importante ter; pelo desejo e estilo, enfim, de ser desigual, privilegiado, mito desencarnado do comum, porque absolutamente desconectado das necessidades da multidão de retaguardas, eternamente condenada, embora o deseje, a não ter nem a fama e nem muito menos as mercadorias de marca dos famosos.

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E pasmem que ainda não paramos de produzir notícias sobre a violência da retaguarda, acusada de terrorista e de traficante, por, precisamente, agir no mesmo campo da estrutural guerra entre famosos e anônimos. Qualquer notícia sobre violência, portanto, que não coloque em destaque a insustentável agressão de um mundo de mitos desencarnados do comum é parte literalmente da mentira geral que nos desnorteia a tod@s, numa época não menos literalmente de cabeça para baixo, na qual e através da qual, como dizia Robert Kurz, todos somos burgueses porque todos estamos mergulhados no mar sem fundo das relações de compra e venda.

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Esta é, pois, a humanidade midiática: mundialmente de cabeça para baixo desejando, nessa perspectiva, tornar-se igual aos mitos desencarnados que esbanjam luxo, narcisismo, presunção, desigualdades. Para produzir o espetáculo mundial de uma humanidade invertida, ainda que divertida, a estratégia é literalmente esta: produção local, nacional e global de mitologias desencarnadas do comum, embora vivam de sanguessugá-lo. O escritor Roland Barthes, em Mitologias (2001), detectou sagazmente a fórmula das mitologias contemporâneas ao argumentar que o mito é um signo vazio infinitamente preenchido a partir das mudanças de contextos, o que é o mesmo que dizer que vivemos numa época de mitos desencarnados dos contextos comuns. Para exemplificar seu argumento, Roland Barthes apresentou o caso publicitário de um soldado argelino alistado nas forças armadas francesas. A imagem de um homem negro, de cidadania nigeriana, num cartaz produzido pelo exército francês, como um soldado francês, funciona como um signo vazio, deslocado de seu contexto, a Argélia colonizada brutalmente pela França, sendo, pois, preenchido pelo mito de uma França democrática, livre de preconceitos raciais e benevolente com os seus colonizados, tanto que os alista em suas forças armadas.

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O sistema de mitos das armadas forças midiáticas mundiais funciona tal como conceituou Roland Barthes em Mitologias: produz sem cessar signos vazios preenchidos (leia-se editados) infinitamente com o único objetivo: ratificar uma humanidade ela mesma um mitológico signo vazio preenchido para que o insustentável se sustente: a desigualdade naturalmente igual de todos os humanos, vivendo comumente de cabeça para baixo, sem nunca deixar de desejar o lugar desigual do céu dos famosos, num contexto invertidamente comum, através do qual o que realmente preenchemos, acumuladamente, é o caixão de nossas injustificáveis e desiguais mortes passadas, presentes e futuras, eliminando-nos como vanguardas de infinitos e benfazejos porvires encarnados no comum, nos quais e através dos quais, mais que ser para morte, finitos, para citar e contestar Heidegger, poderíamos e poderemos fazer-nos como seres infinitos, para a vida.

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As mitologias midiáticas do contemporâneo são, pois, um planetário caixão vazio onde depositamos nossas mortes passadas, presentes e futuras (desigualdades de desigualdades) editando-as como se fossem exuberantes famosas vidas, sem as quais não podemos viver (na verdade morrer) de cabeça para baixo.

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(Texto de Luís Eustáquio Soares)


 
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo.

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