No livro Ao vencedor as batatas (1977), o
crítico literário Roberto Schwarz elaborou uma pertinente crítica sobre a
produção literária de Machado de Assis, tendo em vista o argumento de que, num país
escravocrata, como era o Brasil do final do século 19, com uma estrutura
produtiva pré-moderna, as ideias relacionadas ao mundo burguês europeu, como as
relativas ao trabalho livre, ao progresso, a humanidade, só poderiam estar fora
de lugar, razão por que, na boca dos brancos “homens livres” brasileiros,
fossem eles republicanos ou monarquistas, o ideário do mundo das Luzes se
tornava inevitavelmente uma comédia ideológica, sem vínculo ou compromisso
algum com a transformação liberadora de um cotidiano tramado pela violência
inominável da escravidão.
Investigando a
produção literária de Machado de Assis, Roberto Schwarz observa que a
singularidade das obras do autor de Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881) advém de sua potência irônica para
ficcionalizar as ideias fora de lugar da classe proprietária brasileira.
Machado de Assis teria, pois, montado um burlesco retrato ficcional da comédia
ideológica de nossa elite intelectual e econômica do final do século 19, razão
por que, leia-se, Brás Cubas, protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas, não passaria, assim como
tudo o mais na narrativa, de um quixotesco signo flutuante das ideias fora de
lugar presentes no Brasil escravista, seja sob o ponto de vista amoroso, seja
familiar, seja filosófico, estético, político, econômico ou qualquer outro.
Por outro lado,
a leitura de Roberto Schwarz, embora oportuna (porque até hoje ainda vivemos de
ideias fora de lugar) está ainda tomada por um viés colonizado, por aceitar a
premissa do progresso e, por consequência, acreditar que a Europa do mundo das
Luzes produzia ideias que correspondiam aos desafios de seu lugar histórico,
produtivo, técnico-científico e social. Isso não é e nunca foi verdade pela
singela razão de que todas as ideias estão fora do lugar, independente do
contexto em que foram cunhadas. Num mundo marcado pelo sequestro das riquezas
comumente produzidas, seja ele medieval, escravista, burguês, as ideias sempre
estão fora do lugar.
Deploráveis
ideias fixas
A grande sacada
de Machado de Assis, portanto, foi a de ter produzido ficções fora de lugar,
principalmente considerando os lugares naturalmente preestabelecidos para a
Europa e para a periferia, num contexto em que esta tende a ser concebida como
atrasada e bárbara e aquela como avançada e civilizada. Se se considera, como
exemplo, o romance Memórias Póstumas de
Brás Cubas, o que se lê, do começo ao fim da trama, é a
orquestração irônica de um narrador fora de lugar, o personagem Brás Cubas.
Este, mais que assinalar o não lugar das ideias da classe proprietária
brasileira, como um representante dela, evidencia em si mesmo ideias fora de
lugar tendo em vista a própria história da humanidade, ultrapassando de longe a
referência europeia. Sob esse ponto de vista, o capítulo VII da narrativa,
Delírio, é exemplar porque nele o que fica registrado, através do delírio de
Brás Cubas, é o delírio da própria humanidade, centro sísmico de uma avalanche
de ideias fora de lugar.
Não quero dizer
com isso que o conceito de ideias fora de lugar de Schwarz seja simplesmente
mais um artefato teórico fora do lugar, produzido para analisar a literatura
brasileira e mesmo o Brasil. Proponho não um rompimento crítico à proposta
interpretativa de Roberto Schwarz, mas uma ampliação, através do seguinte
argumento: Machado de Assis produziu uma literatura fora de lugar porque
incorporou em sua produção criativa uma perspectiva cosmopolita, entendida como
referência sem centro de gravitação. É assim que a proposta interpretativa de
outro crítico da literatura de Machado de Assis, Abel Barros Baptista, mais que
se contrapor aos argumentos teóricos de Roberto Schwarz, os complementa, pois,
ao defender que a produção criativa machadiana não é brasileira, mas
cosmopolita, Abel Barros junta a fome com a vontade de comer: Machado de Assis
é o escritor sem lugar das ideias fora do lugar, sem dono ou propriedade
autoral, linguística, estética, nacional, cosmológica.
O que está em
jogo, nesse sentido, na produção literária de Machado de Assis, é a premissa de
que a própria humanidade está ou é sem lugar, constituindo-se como uma
orquestração de ideias fora de lugar sobre si mesma e o mundo que a rodeia, no
seu perpétuo delírio possessivo ou territorializante. O pensamento estético da
ficção machadiana assenta-se, pois, no argumento de que humanidade se torna
tanto mais perniciosa e infernal precisamente quando procura fixar suas ideias
religiosas, econômicas, étnicas, de gênero e culturais num lugar específico,
igualmente religioso, econômico, étnico, de gênero, cultural, pois, assim
fazendo, produz inevitavelmente lugares hierárquicos do tipo superior,
inferior; avançado, atrasado; produtivo, improdutivo; civilizado, bárbaro,
democrático, autocrático; feio, bonito e um sem fim de outras deploráveis
ideias fixas.
Começo
dos pesadelos
A humanidade,
portanto, é uma única humanidade, sempre inacabada e por se fazer, em constante
arranjo e rearranjo de si mesma. Sua tragédia, como espécie, é, pois, o lugar,
a casa, o território, a fixação de identidades étnicas, de gênero, de classes,
epistemológicas, o sistema de parentesco. É em nome de lugares, inclusive os
religiosos, que a aventura humana tem sido esse delírio racista, belicista,
eugênico, hierárquico. Dizer, sob esse ponto de vista, que as ideias são sempre
fora de lugar não significa, por sua vez, que elas não tenham lugares, mas
simplesmente que elas são, ainda que precariamente, propriedades comuns, de
todos e de ninguém. A petulância de Machado de Assis, responsável por sua
ficção sem lugar sobre ideias sem lugar, tornou-o um legítimo representante das
melhores produções ficcionais, igualmente sem lugares, da Europa.
Evidentemente,
embora não pareça, tal ponto de vista não constitui uma leitura antimarxista,
por supostamente desconsiderar as relações efetivas de produção, base ou o
lugar de todos os demais lugares: culturais, ideológicos, estéticos,
filosóficos, jurídicos. Mas que a negação dessa perspectiva, cara aos
marxistas, defendo, também inspirado no pensamento estético de Machado de Assis,
a sua radicalização nos seguintes termos: tudo é infraestrutura porque tudo é
superestrutura, assim como tudo é superestrutura porque tudo é infraestrutura.
Tudo, as produções humanas, é um aglomerado comum, fora de mecânicas relações
de causalidades; uma profusão de sem lugares que pululam de todos os lugares,
em ininterrupta interação cosmológica.
Fundamentalmente,
por isso mesmo, para o bem ou para o mal, o destino de uma ideia é não ter
lugar, mesmo que acreditemos piamente na filiação geográfica, cultural, étnica,
de gênero, econômica de tal ou qual ideia, crença que engorda e sedimenta as
mais diversas formas de violência, constituindo-se como o combustível de todas
as guerras, razão por que o principal inimigo da humanidade é o lugar, no
sentido restrito e lato; e principalmente o lugar da humanidade dentro dela
mesma, seu lugar antropocêntrico, começo de todos os pesadelos.
Mortes
banais
Imbuído dessa
perspectiva, proponho uma análise da versão dos oligopólios midiáticos sobre a
tragédia que resultou na morte de mais de duas centenas de jovens na boate que
se incendiou em Santa Maria, interior de Rio Grande do Sul. Como sempre, a
versão geral e irrestrita dos meios de comunicação é precisamente a que se
funda tendo em vista a crença absoluta em alguns lugares: o lugar da juventude,
a maioria branca e ascendente, inclusive sob o ponto de vista escolar, pois a
maior parte dos jovens cursava uma universidade pública; o lugar da mais-valia,
o lugar do espetáculo, do show.
O primeiro
lugar da versão do oligopólio midiático se inscreve na crença hierárquica de
que a morte humana é mais trágica e, portanto sofrível, narrável, pessoal, se
for de jovens predominantemente brancos e, diz-se, plenos de futuro, por
cursarem prestigiosos cursos universitários. A propósito, a presidente Dilma
Rousseff mesmo fixou alguns lugares ao dizer mais ou menos esta pérola:
“Perdemos médicos, engenheiros, advogados, agrônomos”, omitindo uma infinidade
de outros, como o lugar do professor, por exemplo, na suposição prévia de que é
um lugar sem futuro digno.
Não ignoro e
muito menos desprezo o inominável escândalo dos jovens que morreram na boate de
Santa Maria: mortes estúpidas, banais, violentas, criminosas, imperdoáveis,
indeléveis. Minha argumentação tem, no entanto, outro foco, sem lugar fixo para
morte, porque fundado na evidência de que por todos os lados, no mundo, as
pessoas (inclusive milhões, podendo chegar a bilhões de jovens, mortos de
antemão porque condenados a não terem futuro) morrem de forma violenta,
principalmente de guerras induzidas e com participação direta do genocida lugar
por excelência do Ocidente: o imperialismo americano/europeu/sionista. Por que,
tal como reagimos com a tragédia de Santa Maria, não nos escandalizamos
igualmente com essa profusão sem fim de banais, violentas, estúpidas,
criminosas mortes? Por que o oligopólio midiático não convoca seus famosos
apresentadores e jornalistas para, de dia e de noite, discutir, chorar,
denunciar todas essas mortes estúpidas, banais, violentas, criminosas, inclusive
exigindo que algo seja feito para que elas nunca mais ocorram?
O beijo
da morte
Por sua vez, o
segundo delírio ou ideia fixa que não foi devidamente equacionado pelo
oligopólio midiático diz respeito ao lugar do lucro, da mais-valia, como o
assassino motivo da morte da maior parte dos jovens asfixiados pela fumaça
tóxica da ganância dos donos da boate Kiss, de vez que ficou constatado que o
porteiro demorou a abrir a porta de saída porque estava previamente orientado a
fazê-lo, sob o despótico argumento de que o pagamento da conta deve preceder a
tudo, inclusive a vida ou mesmo antes de tudo à vida. Por acaso, mais que
acusar os donos da boate se gananciosos (e ponto final) se deslocarmos nosso
olhar para o lugar de todos os lugares da civilização burguesa – o lucro – não
constataremos que é o próprio sistema capitalista que é inaceitavelmente
ganancioso? O sistema do lucro, o nosso, não mata direta e indiretamente
bilhões de pessoas (sem contar os seres não humanos) pelo mundo afora,
fechando-lhes insensivelmente a porta do direito à vida, posto que sempre se
coloca na posição de inegociável, imperdoável, inevitável, irrefreável, razão
pela qual julga-se no direito de espoliar, sequestrar, dizimar, guerrear,
caluniar, desprezar, matar e matar e matar?
O terceiro
lugar, por último, é certamente a ideia fixa mais onipresente no planeta como
um todo: o lugar da pirotecnia midiática, com seus jogos demagógicos,
espetaculares, de flashes e
mais flashes, ilusionismos e
mais ilusionismos, sexuais, corporais, estéticos, financeiros, usados e
abusados, de sol a sol, com o objetivo de enganar, manipular, dissimular,
iludir, agitar, seduzir, induzir a humanidade em seu conjunto ao confinamento
incendiário de sua morte, como espécie, no Coliseu Romano em que se transformou
o próprio planeta, na era da sociedade do espetáculo. Não foi esta a causa
direta do incêndio? As pirotecnias que a boate utilizava (e todas usam) para
seduzir, iludir, agitar, manipular a diversão de jovens? Que diferença tem esse
sistema de pirotecnia sexual, musical, alcoólico (tudo em nome do lugar dos
lugares, o lucro) relativamente às pirotecnias produzidas pelos aviões não
tripulados, com suas assassinas prestidigitações de mísseis a matar
indiscriminadamente crianças, jovens, mulheres, adultos, velhos no Afeganistão,
Paquistão, Somália, Congo, Mali? São menos importantes essas mortes
pirotecnadas?
A verdadeira
tirania que sequestrou toda a humanidade é esta: a espetacular pirotecnia da
demagogia midiática, pois ocupa a linha de frente de um sistema mundial de
ilusionismo, de prestidigitação, estrategicamente articulado, em todos os
quadrantes do planeta (eis o cúmulo da pirotecnia, chamamos isso de liberdade
de expressão), com objetivo de nos asfixiar de ignorância, de alienação, de
narcisismos, de preconceitos, de indiferenças, de maldades, enquanto, a serviço
dele, do lucro, matamos e somos mortos, aos montes, aos milhões, aos bilhões.
Deus nos livre,
leitor, desta ideia fixa: o poder astronômico do contorcionismo mundial das
tecnologias midiáticas nas mãos de oligarcas que colocam o lugar do lucro na
frente de tudo, pois, no momento em que o sistema mundial de ilusionismo do
capitalismo tardio esfumaçou todo o planeta, como o momento atual, a única
linha de fuga que temos está nas aberturas das portas que separam a Terra do
cosmos, portas devidamente monitoradas por seguranças travestidos em satélites
de última geração, a confeccionarem espetaculares imagens de uma humanidade
confinada na boate planetariamente midiática chamada Kiss, com seu beijo da
morte fantasiada de sorrisos molhados de Obama, lábios sérios de Merkel, boca
assustada de Hollande, famosos lábios em estilo X da família Marinho, batons da
Otan, austeridades de FMI, serpentinas da OMC, segredos inconfessáveis do
Conselho de Segurança da ONU, do sionismo, das ditaduras do petrodólares do
Golfo Pérsico, unidos língua a língua com al-Qaida, narcotraficantes,
terroristas e todo tipo de fanatismo religioso.
Eis aí os
meticulosos seguranças que nos fecham as portas do cosmos. Morreremos
asfixiados?
(Texto de Luís Eustáquio Soares)
[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de
Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo]
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