domingo, 4 de novembro de 2012

ENTREVISTA JOSÉ SARAMAGO - PARTE 1




José Saramago é o escritor português contemporâneo mais conhecido no Brasil e no mundo. Além da literatura, ele é famoso, também, por sua incansável militância política. E é o autor do já clássico 'Ensaio Sobre a Cegueira' a entrevista desta semana (e da próxima) ao programa Roda Viva e visto escrito somente aqui no Outros 300. Confira é imperdível!

Rodolfo Konder: Boa Noite! Estamos começando, pela Rede Cultura de São Paulo, mais um Roda Viva. (...). O convidado desta noite é o escritor português José Saramago, que veio visitar o Brasil, onde abriu o Congresso Internacional promovido pela Universidade de São Paulo, a USP, sobre o tema “América 92: raízes e trajetórias”. Como este programa é, excepcionalmente, gravado, os telespectadores, infelizmente, não poderão fazer perguntas. Para entrevistar José Saramago, convidamos Luiz Antonio Giron, repórter do jornal Folha de S. Paulo; Hamilton dos Santos, editor do suplemento Cultura, do jornal O Estado de S. Paulo; Edla Van Steen, escritora; Gilberto Mansur, jornalista e escritor; Roberto Pompeu de Toledo, editor-especial da revista Veja; Fábio Lucas, crítico e professor da Universidade de Brasília; Ivan Ângelo, editor-executivo do Jornal da Tarde; e Jayme Martins, jornalista da TV Cultura. Boa noite, professor Saramago. É um prazer tê-lo aqui.

José Saramago: Não professor, apenas...

Rodolfo Konder: Para nós o senhor será sempre um professor.

José Saramago: Não ganho, nem perco com isso. [simpático]

Rodolfo Konder: Então está bem. Eu vou abrir falando um pouco das comemorações da independência do Brasil. O Brasil está vivendo um período de comemorações da independência. Mas, ao mesmo tempo, há uma preocupação muito grande com a reaproximação com Portugal, tanto no plano econômico, quanto no plano cultural. Estamos vivendo uma nova época. Os valores da independência estão sendo substituídos pelos valores da “interdependência”?

José Saramago: É assim? Aqui? É assim aqui e é assim, de uma certa maneira, em toda parte. A questão que penso, que se deve pôr, é se junto a essas questões, dependência e independência, se devemos juntar, digamos, essa outra, de valores, quer dizer, eu compreendo esse sentido do colega dizer valores da interdependência, mas começo a ter algumas dúvidas se isso fala de valores da dependência. Suponho que a dependência, qualquer que ela seja, embora é realmente verdade que neste mundo global em que nós vivemos já há uma interdependência mútua, mas o que acontece é que em casos como esse, mesmo que essa interdependência pareça, ou devesse ser, digamos, entre iguais, porque uma verdadeira e bem entendida interdependência deveria ser entre iguais, que dependessem um do outro, mas que dependessem igualmente, quando, enfim, quando nós sabemos que não é isso que se passa, quer dizer, nesse mundo de interdependências há uns que são mais dependentes do que outros. Então, estamos cá em saber em que grau que se coloca esse grau de dependência, quer o Brasil, que estamos aqui a falar, quer o meu próprio país, que em matéria de dependência, haveria muita coisa a que se dizer.  O que eu duvido é que se possa falar em valores de dependência. Valores de interdependência penso que sim, mas sob condição de que a relação seja entre iguais, tanto quanto possível.

Edla Van Steen: Eu vou fazer uma pergunta literária para você, que é a minha área. Eu sei que você é poeta...

José Saramago: Já fui, já fui...

Edla Van Steen: Já foi poeta. Você precisa me explicar como é que é isso de dizer que deixou de ser poeta?

José Saramago: Não, deixei de fazer versos... [risos]

Edla Van Steen: Ah, só nesse sentido?

José Saramago: Pode-se dizer que sim.


Edla Van Steen: Eu acho que o Brasil ainda não descobriu que você é um ótimo autor de teatro. Você tem três peças publicadas. O que eu queria saber é em que momento você escolhe o gênero, que você decide o gênero daquilo que você vai escrever?

José Saramago: Vamos ver. O teatro no meu trabalho foi, e continua sendo, de certo modo, algo que depende das solicitações exteriores. Eu creio, estou convencido disso, e olhando para trás posso comprovar, que nunca, de modo próprio, por um movimento meu, eu iria escrever uma peça de teatro. Sempre aconteceu que alguém me pediu. E a primeira vez que me pediram, eu disse: “isso é um disparate, eu nunca fiz teatro, não sei”. Mas esses pedidos, esses pequenos desafios, levam a pessoa a colocar-se, efetivamente a questão: serás capaz ou não serás capaz? E assim fiz a primeira peça de teatro...

Edla Van Steen: Eu acho que a maioria dos autores...

José Saramago: Eu penso que sim. Digamos, enfim, é realmente isso que se sucede, na verdade é que mesmo quando esses desafios não nos vêm de fora, temos que, digamos, temos que estabelecê-los dentro de nós próprios. Depois dessa primeira peça, veio uma outra...

Edla Van Steen: Foi A Noite, não?

José Saramago: Foi A Noite, que se passa na redação de um jornal, para isso eu aproveitei um pouco a minha própria experiência jornalística, que se passa na redação de um jornal na noite de 24 para 25 de abril. E depois fiz uma outra que, digamos, foi na mesma linha de continuidade, que o Camões é meu personagem e, mais tarde, anos depois, fiz uma outra peça que se chama A Segunda Vida de Francisco de Assis. Não de São Francisco de Assis, do Francisco de Assis, que mostra uma vez mais que, sendo eu, não crente, e mesmo – a palavra clara é ateu – não sei porque, mais ou menos, me acho envolvido em questões que têm sempre a ver com religião. E a prova é que agora mesmo, e já que se falou em teatro, estou a escrever uma peça sobre os anabatistas, do século XVI, dos grandes conflitos, das guerras religiosas dessa época, na cidade de Münster, qual peça servirá de base para um livreto de uma ópera que se representará, já está decidido que se representará...

Edla Van Steen: Aliás, foi um sucesso fantástico Blimunda no Scala, de Milão?

José Saramago: É, eu não fui muito tido nem muito achado, porque a adaptação foi feita pelo próprio Aziu Corghi, que é o músico, a tradução foi feita a partir do próprio livro, pela Rita Desti, aliás uma magnífica tradutora. E, portanto, tenho alguma experiência teatral e, agora, também prática...

Edla Van Steen: Mas, você não vai escrever um libreto, então?

José Saramago: Não... quer dizer, que não resulta de apetites meus, mas de coisas que me vem, digamos, um pouco de fora. A questão é saber se o faço de uma maneira aceitável ou não. Creio que sim, senão não tinha continuado.

Edla Van Steen: É sempre um desafio pegar um novo gênero?

José Saramago: É, de uma certa maneira. Eu acho que nós somos capazes de fazer tudo. O que acontece que há coisas que fazemos melhor. Portanto, a questão é essa.

Edla Van Steen: Você acha que no romance é melhor?

José Saramago: Assim, com verdadeira ou falsa modéstia, acho que sim.

Fábio Lucas: O que eu tenho notado na sua obra, em grande parte, é um grande diálogo com a literatura de modo geral. E muitas das suas personagens já nascem com a sua certidão de nascimento anteriormente passada por outros cartórios. Assim, o Ricardo Reis é uma personagem, é um heterônimo do Fernando Pessoa, Jesus Cristo é uma personagem de uma civilização, e assim como Camões é uma personagem da história literária. Essa escolha é, talvez, uma estratégia para dialogar com a cultura?

José Saramago: Não, eu não poria a questão em termos de estratégia. A estratégia implica numa reflexão anterior, numa decisão: vou fazer isso, por estas e aquelas razões. Eu creio que não, que não se trata disso. Trata-se, talvez, da consciência muito clara, enfim, muito viva, que no fundo no fundo, nós somos feitos de papel. Quer dizer, cada um de nós é muito mais feito de papel do que de carne e osso. E digo que somos feitos de papel porque somos feitos das leituras que fizemos. Então, parece-me um erro, de certa maneira, parece-me um erro dividir, digamos, a vida entre o que é realidade, o que chamamos de realidade – as pessoas que estão por aí, nós próprios aqui todos juntos – e esse outro universo feito de palavras, de personagens, de livros, de páginas. Tudo isso, no fundo, tem, às vezes tem, creio que tem, eu diria que tem sempre, ou pelo menos tem mais fortemente em muitos casos, tem mais influência em nós do que a própria realidade, isso que chamamos de realidade. Portanto, se nos meus livros de fato há o apelo constante a esses seres de papel, para encontrar outros seres de papel, outros, em primeiro lugar o autor, e depois outros seres de papel, que são os leitores, é por uma razão muito simples: é que eu não separo isso a que chamamos de realidade dessa outra realidade fictícia, que é da imaginação, que é da invenção, e a ambas eu vejo embrechadas uma na outra. Portanto, quando vem um Ricardo Reis, vem um Ricardo Reis por razões que também são, muito, da minha própria realidade. Quando eu encontro, eu descubro o Fernando Pessoa, não é o Fernando Pessoa que eu descubro quando tinha 18 anos, é o Ricardo Reis. E durante alguns meses, como eu não sabia da existência do Fernando Pessoa, o Ricardo Reis foi, para mim, um poeta real, de carne e osso. Foi mais tarde que eu soube que não era mais que um heterônimo. Então, toda esta, digamos, todo este imbricamento entre o que é fictício e o que é real, julgo eu, é o que passa pelos meus livros.


Fábio Lucas: Mas outra coisa que também me ocorre, talvez seja pelo princípio dialético, é que sendo a sua formação no materialismo histórico, a sua dedicação é muito grande a personagens, ou personalidades ou mitos que, justamente, se opõem a essa formação. Por exemplo, é muito instigante a presença de Fernando Pessoa em quase toda a sua obra, ele faz pontas várias vezes no seu texto narrativo. E, assim também o próprio Cristo. Esse romance que criou tanta celeuma, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, ele, na verdade, para grande parte dos leitores, ele oferece um corte, digamos, de um lado, Deus, que seria a representação da civilização judaico-cristã, e de outro lado o Cristo humanizado, portanto sacudido pelas paixões humanas, inclusive fortemente sacudido pela paixão amorosa. Mas, nessa sistemática – mesmo porque o Cristo tem, durante a permanência do seu romance, uma grande intimidade com o demônio, que seria a encarnação dessas paixões humanas, ele levava Cristo também a cometer os seus pecados – mas o que me admira e eu queria a sua explicação sobre isso, é essa sedução pelas personagens, digamos, que não estariam dentro da canônica do materialismo dialético.
 

Roberto Pompeu de Toledo: Posso acrescentar uma coisa? O Saramago é, notoriamente, um materialista histórico que tem visões [risos]. O Evangelho Segundo Jesus Cristo é produto de uma visão. Ele escreve sobre Jesus Cristo, e colocou fantasmas junto.

José Saramago: Vamos ser mais objetivos, O Evangelho Segundo Jesus Cristo é produto de uma ilusão de ótica. É produto de uma circunstância, infeliz claro, circunstância essa que é a miopia do autor. Se eu tivesse uns olhos sãos, eu teria visto aquilo que lá estava e nada mais. Então, quando muito, pode trazer, enfim, uma proposta da vantagem da miopia para a criação. Isso sim. Mas o que eu quero dizer em resposta à questão que foi posta por Fábio Lucas, é que eu realmente sou materialista. Mas, ainda que míope, não sou cego. E o ponto de vista em que eu me coloco, eu diria que parece um pouco com este lugar em que estamos, porque este lugar é circular. Isto aqui é um pouco claustrofóbico, digamos assim, mas eu imagino que estou numa sala como esta, num espaço como este, circular, mas com janelas a toda volta. Essa idéia de que o materialista canônico deveria estar focado numa janela só e ver apenas uma faixa da realidade circundante, seria de fato redutora. Digamos que eu, materialista, elegendo, eventualmente, uma das janelas, ou duas, ou três, não deixo de visitar, de freqüentar todas as outras janelas. Então, isso me permite tomar a figura de Cristo, que não é Cristo, Cristo naquele momento não é Cristo, é apenas Jesus, é apenas um homem, que tinha que viver todas as paixões dos homens, porque se não fosse para viver todas as paixões dos homens não valeria a pena que ele encarnasse, quer dizer, se não fosse para isso, ele mantinha-se como espírito, e como espírito teria que resolver aquilo que tinha que resolver. Mas, para sofrer, tinha que ser homem. E, para isso, encarna. Mas, tendo encarnado, não se limita a sofrer. Tem também o direito de chegar ao prazer, a sua própria imaginação. E é esse homem inteiro, tão inteiro quanto eu fui capaz de fazê-lo que está lá, e no fundo não tem nada a ver, ou tem a ver, que realmente é o fundador do cristianismo, mas eu tomo como homem que é, e penso que todos os fundadores, fossem o que fossem, sempre foram homens. Mesmo que depois estivessem divinizados ou idealizados, começam sendo, por ser aquilo que nós podemos ser, que é a única coisa que podemos ser: homens. A partir daí, é esse homem que me interessa e, sendo ele vítima – e se nós olharmos para os evangelhos, é esse sentimento que temos sempre – ele é conduzido, enfim, pela vontade política de Deus, que quer, como eu digo no meu evangelho, ou como tenho dito, quer ampliar a sua base social de apoio, quer deixar de ser um Deus de um pequeno povo, quer tornar-se universal, católico, e, portanto precisa, como sempre acontece em casos desses, de uma vítima. Escolhe a vítima que, ao que parece, é o seu próprio filho. E é este sentido do sacrifício humano – não é o sacrifício de um Deus, é o sacrifício do homem, mais uma vez, para servir interesses que, nesse caso, são de Deus, mas que poderiam ser, digamos, de outros homens, mais poderosos.

Fábio Lucas: Só mais uma coisa que me intriga. É em relação à política literária de um modo geral. É a situação do escritor português em frente ao escritor brasileiro. Ainda existe em nós, por herança cultural, muito interesse pelo que se faz em Portugal e a sua presença aqui é, não somente um retrato disso, como até um orgulho para nós termos, em língua portuguesa, um escritor do seu valor e da sua importância. Mas, os seus livros, as suas obras, estão permeadas dessas tensões Europa, América, Portugal, Brasil, essas tensões. O Jangada de Pedra é, talvez, o melhor símbolo disso. Ocorre agora um problema internacional. É que Portugal está sendo programado para aderir a um esquema de um mercado comum europeu, portanto está sendo programado para ser mais europeu do que americano, digamos assim. Como você considera esse estado permanente – eu tenho ouvido, de portugueses, queixas em relação à europeização de Portugal, ou a quebra ou a erosão de valores culturais tradicionais de Portugal. E, por outro lado, o que explica pouco também para mim é que há muito pouco interesse na camada de escritores portugueses pelo que se faz no Brasil, em termos de produção literária. Há referências, há remissões, mas dentro da geração moderna de escritores portugueses, eu acho que o único cuja obra, às vezes, dialoga com um ou outro escritor brasileiro é o Abelaira, e a sua obra que coloca, às vezes, o problema do Brasil, mais como instância cultural.

José Saramago: São muitas questões. Eu vou começar por isso da europeização de Portugal. Europeizar alguma coisa é torná-la parecida, semelhante à outra coisa. Europeizar significaria que Portugal se pareceria com a Europa, ou tornar-se-ia semelhante à Europa. Aqui, coloca-se a questão inevitável: que Europa? Qual Europa? Porque a Europa não existe, quer dizer, o europeu não tem sentido, quer dizer, é apenas o habitante de um espaço físico, é o habitante de uma geografia, seria a mesma coisa que dizer que, do ponto de vista de Marte, por exemplo, dizer fulano é terrestre, portanto, qualquer um de nós que vivemos aqui na Terra podemos ser designados assim, terrestres. Mas, isso não adianta nada, porque omite, esquece as diferenças que existem entre os terrestres. Dizer que Portugal se europeíza é esquecer a própria diversidade da Europa que está patente e cada vez mais patente, ao mesmo tempo em que por um lado se pretende unir a Europa, é óbvio, é evidente para toda a gente, que as pulsões das identidades locais, regionais, estão a ferver. E há casos gravíssimos, como é o caso, por exemplo, da Iugoslávia e outros casos, como o da antiga União Soviética, no interior de países que não tem nenhum dos problemas de identidade, parecem não ter, eu lembro, por exemplo, quando foram os Jogos Olímpicos, que apareciam cartazes em Barcelona que diziam “Liberdade para a Catalunha”, como se a Catalunha vivesse privada de liberdade, é um absurdo total e completo. Mas isso apenas significa que num momento em que a Terra se globaliza, que há essa tendência para unificar, para laminar, para esmagar, enfim, justamente, as diferenças, por uma espécie de instinto de sobrevivência, os grupos sociais, étnicos, religiosos, culturais de um modo geral, levantam-se isso. Isso em relação à questão da europeização. Com relação à outra questão, eu não sei de quem é a culpa. Nos anos 50, nos anos 60, os autores brasileiros não só eram conhecidos de grandes camadas de leitores, em Portugal, conhecidos, lidos, admirados, como exerciam influência, exerceram influência, em alguns casos, sobre os próprios escritores portugueses. A verdade é que não sei o que se passa entre nós que quando é possível encontrarmos, encontramos ao mesmo tempo todas as razões para continuarmos juntos, e depois nada disso, ou muito pouco disso, passa para o plano do trabalho em comum. E eu creio que aqui está justamente a grande questão. Enquanto Portugal e o Brasil, e agora também devíamos incluir aqui a África, digamos Angola, Moçambique, Cabo Verde, tudo isso, enquanto nós não encontrarmos maneiras de trabalhar em comum, qualquer tentativa de aproximação será sempre ou instrumentalizada, ou visando objetivos que não são exatamente, ou podem não ser, os da cultura, e esse caminho que nós ainda não encontramos, como trabalhar em comum. Porque no dia em que trabalharmos em comum o conhecimento vai mover-se num sentido e num outro sentido. 





Hamilton dos Santos: No O Evangelho Segundo Jesus Cristo o senhor vai construindo a família do carpinteiro José quase que à semelhança de Charles Dickens. Fiquei, mais ou menos, com essa impressão. Ele é incompetente, como trabalhador, como carpinteiro e, de repente, o senhor resolve justamente salvá-lo dessa incompetência. É por que vieram à tona os seus princípios marxistas? O senhor estava indo longe demais com esse personagem?

José Saramago: Não, não tem nada a ver.

Luiz Antônio Giron: Ele se conscientiza, no seu romance? Dá essa impressão de que ele se conscientiza.

José Saramago: Vamos a ver. Aquilo que o leva a essa consciência nova não é exatamente a relação que ele tenha com a sua atividade profissional. Isto é, digamos, o que dá o pão. Digamos, a consciência dele é de fato, digamos, entra em crise e aquilo que o leva a essa crise, a esse sentimento, é a consciência da sua própria culpa. Quer dizer, não tem nada a ver com o fato dele ser carpinteiro. Podia ser o melhor carpinteiro deste mundo e podia ser genial, tudo isso, mas o que acontece, de fato, não está já nessa área, quer dizer, é o puro e simples homem que comete, no meu entender, que comete um crime por omissão. E aí, se ele é bom profissional ou se ele é mau profissional, não significa grande coisa e de resto há que entender, sendo Nazaré o que era, uma pequena vila, uma aldeia, uma pequena cidade, como se quiser, podemos imaginar que o lugar dos grandes profissionais, dos grandes carpinteiros, dos grandes pedreiros, dos grandes escultores, não era, com certeza, em Nazaré. Seria em Jerusalém, seria em Séfolos, seria onde, efetivamente, eram chamados para construir palácios e tudo mais. Ele não construía palácios. Ele era, digamos, o homem a quem a porta se vai bater para dizer “faz me aí o cabo de uma enxada”. Portanto...

Hamilton dos Santos: Mas ele passa no vestibular do contramestre para fazer o templo?

José Saramago: Como?

Hamilton dos Santos: Ele passa no vestibular do contramestre para construir, para ser um dos carpinteiros para construir o templo. O que eu perguntei é se não seria uma forma de inserir uma interpretação marxista?

José Saramago: Não, ele é carpinteiro de obra grossa, digamos assim. E aí aquilo que eu precisei tem muito mais a ver com uma estratégia de narrativa. Eu precisava fixá-lo em Jerusalém, porque se eu não o fixasse em Jerusalém, voltaria imediatamente para Nazaré e eu não tinha história que pudesse contar. Então, ele vai lá, aliás, não sabemos bem o que ele faz lá e isso era completamente diferente, a única coisa que sabemos é que aquilo que ele sabia podia ter serventia no templo, mas no templo não havia apenas grandes obras, havia, quer dizer, aplainar, digamos, uma tábua, qualquer carpinteiro, mesmo sem ser muito competente, faz. A consciência dele é outra. Esse é o problema que vem depois, com a crise moral, com a crise de consciência, o sentimento da culpa, o remorso e a responsabilidade. Portanto, não tem nada a ver com o meu marxismo, como se eu quisesse engrandecê-lo pela via, digamos, da profissão, e eu acho que se começamos a engrandecer as pessoas pela via das profissões, acabamos mal.

Roberto Pompeu de Toledo: Eu queria voltar aqui à questão da Europa, que diz respeito também à questão da independência, interdependência, lançada aqui de início. Nós todos sabemos que o Saramago é um crítico, pelo menos alguém que faz restrições sérias, a esse processo de europeização, enfim, de interdependência européia. Agora, o que, fundamentalmente, há de errado a seu ver nesse processo?

José Saramago: O que há de errado, a meu ver, nesse processo, fundamentalmente, é que ele começa e decorre à margem da vontade dos povos. Quer dizer, toda essa formação, toda essa criação de uma Europa unida, que começa, digamos, pelo aço e o carvão, pouco a pouco isso vai alargando, o Tratado de Roma, tudo isso, pouco a pouco vai ampliando os seus objetivos, até agora o Tratado de Maastrich, que, aliás, pouca gente conhece, digamos, o seu conteúdo, tendem a isso mesmo, a união política, financeira, econômica, o mercado livre, quer dizer, fazer da Europa uma coisa só. Que eu compreendo que seja possível e, quem sabe, mesmo desejável se chegar aí. Mas, penso que se deve chegar aí pela vontade dos povos. E não porque os governos, que singularmente, e isto é curioso, que singularmente, são bastante diferentes, que sejam governos conservadores, socialistas, neoliberais ou democratas cristãos onde quer que estejam, e podem mesmo suceder-se, agora é socialista e amanhã é conservador, todos estão de acordo com essa Europa. Eu penso que devemos nos interrogar se faz algum sentido que os governos que se declaram diferentes nas suas afirmações, nos seus programas, digamos, nas suas propagandas eleitorais, para depois, na prática, fazerem todos, independentemente daquilo que dizem ser, fazerem todos exatamente a mesma coisa. Porque o plano europeu não admite controvérsia, quer dizer, não admite uma controvérsia, ou admite uma controvérsia interna, mas não admite que se oponham aos sistemas econômicos, porque ele é um só e quem quer que o siga, quem quer que lá esteja, seja socialista, conservador, liberal, o que quer que seja, tem que servir àquele projeto. Portanto, é uma questão super estrutural, é uma questão de governos que decidem e os povos assistem. São milhões e milhões e milhões de pessoas que não tem informação suficiente sobre as razões, os objetivos e as conseqüências finais, mesmo que não sejam finais, nunca sabemos quais são as finais, as conseqüências futuras, imediatas desse projeto, as pessoas, o comum das pessoas, não sabem. Então, esse primeiro pecado, essa espécie de pecado original, do meu ponto de vista, é suficiente para que eu diga: “sim, mas?” Pelo menos eu digo: “sim, mas?”

Roberto Pompeu de Toledo: Mas essas pessoas elegeram esses governos.


José Saramago: Mas eles elegeram esses governos... eu dou um exemplo: o Partido Socialista Operário Espanhol fez em sua campanha, quando veio a assumir o poder, fez a sua campanha com base no "não à NATO”. Quer dizer, os votos obtidos, ou pelo menos muitos deles, foram também por essa razão. E quando o PSOE se achou instalado no governo, levou a população, com uma campanha com aspectos de manipulação, não digo manipulação, mas de pressão de voto, a votar na adesão à entrada na NATO. Portanto, acontece muitas vezes e, provavelmente, no Brasil também acontece, que os eleitores votam em pessoas que lhes prometeram algumas coisas e que depois os eleitores verificam que essas coisas não foram cumpridas. Isso não é só aqui, não é só no Brasil, é em todo o mundo. Então, nesse sentido, qualquer coisa que é feita, não direi contra a vontade, porque a vontade não foi expressa, mas foi feita na ignorância da vontade real dos povos.

Roberto Pompeu de Toledo: Como, em geral, acontece com as medidas de governo.

José Saramago: Quase sempre, quase sempre.

Rodolfo Konder: Você cita o caso da Espanha. Será que depois dos resultados conseguidos com a integração, os espanhóis votariam contra essa integração hoje?

José Saramago: São duas coisas diferentes. Quando da campanha eleitoral, que levou o PSOE ao governo, a questão da integração européia vinha longe. Nesse momento, na Espanha, não se falava, era mais a questão da entrada da Espanha na NATO. Isso, enfim, isso sim. Agora, se me perguntar, vamos dizer, você tem todas essas dúvidas sobre a legitimidade dessa integração européia, se perguntar aos povos se eles a querem agora, é perfeitamente possível. E nós sabemos a força do fato consumado, que pode levar pessoas, que numa outra situação anterior, com informação suficiente, poderiam tomar uma decisão, agora, colocadas dentro da decisão já tomada, eventualmente não tem outro remédio senão estar de acordo com aquilo, para que não foram chamadas.

Jayme Martins: Voltando à literatura. Uma obra assim sumarenta de vivência humana, eu imagino que os seus livros tenham provocado a alma de muitos dos leitores. Agora, o autor tem conhecimento da vida de algum leitor que tenha sido profundamente alterada pela leitura de suas obras?

José Saramago: Bom, profundamente alterada, vamos ver, eu lembro de alguém...

Jayme Martins: Ou tocada.

José Saramago: Tocada, alterada, não diria, enfim, modificada profundamente, porque isso as pessoas também não confessam, não vão dizer, mas eu lembro de dois casos, enfim, eu sou, posso dizer que sou, um autor que tive a sorte de receber muitas cartas de seus leitores. Muitas, muitas, muitas, que levantam para mim sérios problemas, porque queria eu poder responder as cartas de toda a gente que me escreve, mas eu verifico que as cartas por responder crescem em progressão geométrica, enquanto que eu apenas vou reduzindo em progressão aritmética. Mas eu lembro do caso de uma pessoa que emigrou para o Brasil, justamente para aqui, depois da revolução de 1974, emigrou para aqui e aqui fez a sua vida, tinha perdido aquilo que tinha lá em Portugal, mas refez aqui a sua vida, organizou-se, tudo mais, estava perfeitamente disposto a não regressar. E, um dia, lendo um livro meu, salvo engano, foi Memorial do Convento, achou que o seu lugar era lá. Escreveu-me uma carta dizendo isso mesmo, uma carta que me emocionou muito, emociono-me facilmente quando as pessoas abrem, como é esse caso, seu coração, mas devo dizer que recebi a carta com emoção, lógica da situação, mas ao mesmo tempo com algum ceticismo, como é que é possível esse homem vai agora resolver todos os seus negócios para voltar a Portugal por causa de um livro? Bom, pode ser que sim, mas eu tenho algumas dúvidas. Passados seis meses, esse homem me escreve de Lisboa para dizer: “já cá estou, conforme eu disse, resolvi toda a minha vida e já cá estou em Portugal” [risos].

Gilberto Mansur: Parece que você tem umas 800 cartas de beatas portuguesas protestando contra o Evangelho.

José Saramago: Não sei se são 800.

Gilberto Mansur: São agressivas?

José Saramago: As cartas são muitas e não são cartas de pessoas que me quereriam muito mal se pudessem, há também muitas outras, mas, de fato, o Evangelho moveu, num sentido ou noutro, muitíssimas pessoas que provavelmente nunca escreveram cartas a autores e dessa vez acharam que deviam escrever mesmo. Tem as pessoas que dizem que eu devia ser condenado à morte na fogueira, sem direito a sepultura, é certo que depois acabava a carta dizendo rezo por ti, portanto, havia uma esperança. E há outras pessoas, enfim, católicos, que dizem que o livro, apesar de chocante, não os ofendeu e que compreendem e tudo isso. Mas o que há agora é uma espécie de carreira de cartas, é como se houvesse uma central que desse instruções, nas várias regiões do país, para me submergir com cartas, em que dizem que eu não podia ter feito aquilo, que eu sou uma pessoa sem-vergonha, como é possível atacar Deus nosso senhor, Jesus Cristo, a Virgem Maria, tudo isso, mas enfim, isso está na lógica das coisas. Mas, queria acrescentar só uma coisa mais. Há tempos escreveu-me uma senhora portuguesa, do Norte, que me dizia, e era a propósito não desse livro, mas da história do cerco de Lisboa. Ela dizia-me que quando soube, quando teve conhecimento que eu estava a escrever a história do cerco de Lisboa, ela encontrava-se muito doente, tão doente que os médicos não tinham dado grandes esperanças de vida. E quando ela leu essa notícia, isso são palavras dela, não minhas, teve a saudade do livro que não podia vir a ler, isso é, ipses literis: “eu sentia saudade de um livro que não podia vir a ler” e depois acrescentava, felizmente, os médicos se enganaram e eu continuo viva e vim escrever para lhe dizer isso e aquilo e etc. Ora bem. Essa comunicação, essa corrente, eu chamaria de corrente de afetividade, entre esses leitores e o autor que tem sorte de os ter é, de fato, para mim uma coisa que não tem preço. Não sei porque, se me perguntarem como é que isso acontece, talvez eu tenha muita dificuldade, ou então direi que a única resposta está nos livros, mas a verdade é que sou um autor a quem as pessoas amam. Mas, sou também um autor a quem as pessoas detestam [risos].

Hamilton dos Santos: Entre os que detestam, nesse último livro, o senhor também não recebeu muitas cartas, muitas queixas, porque parece que só os cristãos foram ofendidos, mas se você analisa a conversa de Deus com Jesus, os judeus também saem bastante ofendidos, já que o Reino é considerado medíocre por Deus?

José Saramago: Hoje, enfim, quer dizer, essa é uma responsabilidade histórica que não cabe a mim, nem a nenhum de nós. É certo que o que se diz é que Jeová, ou Javé, escolheu aquele povo. O povo judaico é o povo eleito. E, provavelmente, acontecia com Javé aquilo que acontecia com os habitantes de um mundo, digamos, o mundo naquela época desconhecia que existia mais mundo, provavelmente, podemos dizer, eu sei que é uma ironia fácil, mas podemos dizer que ao se criarem Javé desconheciam a maior parte do mundo que ele próprio tinha criado. É um pouco absurdo que um Deus que cria um mundo, escolha para si, de uma forma tão particular, apenas uma parte do mundo e as pessoas que viviam nessa parte do mundo. Portanto, quer dizer, se os judeus se sentiram ou não chocados, eu acredito que não. Onde eles podem se sentir chocados é em algumas coisas ditas no diálogo de Jesus, no templo, quando Jesus tem 12 anos de idade e vai saber do escriba e vai pôr as questões da culpa e da responsabilidade, aí é que os judeus, os judeus de hoje, não os judeus de então, podem sentir que algumas setas que estão ali estão apontadas para eles, diretamente para eles. Digamos, eu creio que isso possa, talvez, se explicar de outra maneira. Eu não recebi reclamações de judeus, mas de católicos sim.

Ivan Ângelo: Como não temos aqui, hoje, telespectadores telefonando, eu vou tentar fazer perguntas que, talvez, eles queiram saber de um escritor tão famoso, quais são seus processos e tal. Algum tempo atrás, numa entrevista, você disse que era um escritor muito rápido. É rápido no gatilho. Pensa bastante e depois, quando senta para escrever, escreve rapidamente. Eu queria saber se nesse tempo de pensar, nessa maturação, que anotações você faz, ou se não faz anotações, guarda tudo na memória e depois aquilo flui com essa maestria que você demonstra quando a obra já está pronta. Quais são os seus processos?

José Saramago: Vamos lá ver. Para resumir, o meu processo é, digamos que, isso varia de linha contínua. E digo isso para significar o seguinte, eu não sou do tipo de escritor, e isso não tem nada a ver com a qualidade final da obra, evidentemente, não sou do tipo de escritor que escreve 80 páginas para depois transformá-las em 200 ou em 250 ou em 400. Quer dizer, o processo de reescrita que pode levar, por um lado, à ampliação, mas também pode levar, por outro lado, à redução. Aquilo que acontece comigo é que eu começo a escrever, e vou escrevendo, vou escrevendo. E não há caso nenhum, em nenhum dos meus livros que, tendo chegado ao fim, eu tenha dito: este capítulo está a mais ou este capítulo precisa ser desenvolvido ou, ao contrário, preciso reduzi-lo. O livro que eu vou escrevendo é o livro que vai ficar.

Ivan Ângelo: Tem anotações, tem um plano...

José Saramago: Não há plano. Eu não diria que há plano. Eu costumo dizer que a única coisa que eu sei quando começo um livro, além das informações, dos dados concretos quando preciso deles, quando se trata de um romance que vai para os lados da História, é evidente que é necessário, enfim, é necessário que aquilo tenha sentido histórico, então eu preciso ler, estudar, recolher dados. Mas, o que eu costumo dizer que a única coisa que sei verdadeiramente é que vou de Lisboa para o Porto, mas isso não significa que vá pela auto-estrada, ou que vá em linha reta, de avião, pode significar que eu tendo que chegar ao Porto, que é meu ponto de destino, o da viagem e o do livro, eu passo por Castelo Branco antes, que fica quase na fronteira com a Espanha. O modo como chegar é que fica dependente do próprio processo da escrita, quer dizer, eu posso, em dada altura, fazer uma incursão lateral, posso parecer até que voltei atrás, porque é, digamos, vamos lá ver, vou ver se encontro uma maneira mais flagrante de dizer isso, uma palavra, cada palavra, nasce da anterior, e essa palavra não pode existir, sem que exista a anterior e todas as outras anteriores. Por isso eu sou, literalmente, não é que sou literalmente incapaz, mas não sou capaz mesmo, de modo nenhum, se estou a escrever o capítulo terceiro, de um livro, por exemplo, mas que sei que haverá uma história qualquer mais para adiante, e que seria o capítulo 24, por exemplo, eu não interrompo a leitura, não interrompo a escrita do capítulo terceiro para, por uma espécie de inspiração súbita, ir escrever o capítulo 24, porque, para mim, isso é completamente impossível, porque o capítulo 24 depende do 23 em tudo. Não apenas na sucessão, na ordem numérica, mas nos múltiplos fios – e nós que estamos aqui sabemos disso – de que se compõem uma narrativa. Se há alguma espécie de lei, é para além desse sentido de que tem que se chegar ao Porto, mas estou livre para decidir o caminho que eu quiser, eu diria, por exemplo, como quem vai atravessar a corrente de um rio e tem meia dúzia de pedras que lhe permitem ir para o outro lado, passando de pedra em pedra. O que eu sei é que ao longo da história que eu vou contar há meia dúzia de pedras fundamentais e tem que passar por lá, senão cai na água. E, por outro lado, à medida que escrevo, vou antecipando, em pequeníssimos resumos, o capítulo seguinte. Em pequeníssimos resumos, que não tem mais do que quatro, cinco, seis linhas. É a única coisa, digamos, que eu faça...

Ivan Ângelo: Do capítulo seguinte ou outros vários?

José Saramago: Um ou dois capítulos seguintes. Sou incapaz...

Edla Van Steen: O famoso gancho para o próximo capítulo. 

Aqui temos o famoso gancho, também, para a segunda parte da entrevista com José Saramago que saíra no próximo domingo.

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