Marcos Tavares (1957) é natural de Vitória-ES. Ficcionista,
publicou “No Escuro, Armados” (contos, Ed. FCAA / Anima, 1987) e “Gemagem” (poemas, Ed. Florecultura, 2005).
Participa de publicações outras. Eleito em 2011, ocupa a Cátedra n º 15 da
Academia Espírito-santense de Letras (AEL). Confira, abaixo, o conto “No
escuro, armados”:
NO ESCURO, ARMADOS
No escuro,
armados a amoladas foices, dois surdos-mudos-cegos duelavam.
O brilho das lâminas cortava o negror que os continha.
Um era negro; outro, pardo; e, em sendo noite, portanto,
iguais em, cor.
Em cada cabeça: a sentença de outro; em cada olho, uma
centelha de ódio, cego ódio.
Motivo da contenda: desavença quando, em manhã de verão, disputavam
um raio de sol. Um, erguendo o braço, levantou suspeita de que o outro o
ludibriava quanto à obtenção de luz, e a esse motivo atribuía a sua nenhuma
percepção de seres e de coisas; o outro, ensimesmado, pensou mesma ideia: viu
igual causa, para consequência idem. Em verdade, nunca ouviram falar de raio de
sol, ou viram sequer o sol, nem nunca alguém lhes falou de estrelas porque
alguém nunca lhes falara; nunca viram sequer um alguém porque --- a eles ---
ninguém existia; e só se constatavam um ao outro somente por através do tato,
quando se sentindo incompletos.
Certos estavam --- intuitivamente --- de que habitavam um
reduzido mundo, e de que iam morrer --- sim --- porque existiam. E certo era
que possuíam um lugar à sombra: o de seus próprios corpos.
O ruído produzido pelo movimento de foices cortando o ar confundia aos morcegos, já em
alvoroço tão logo pressentida a iminência de sangue fresco; e, emitindo
estridentes guinchos, os negros quirópteros eram decepados em pleno vôo, aterrissando
seus muitos pedaços, tintos de vermelho, vítimas de furiosas lâminas. Outros da
espécie, mordivorazes, atiravam-se a estes; e amontoavam-se, caóticos, a lamber
o líquido esvaído.
A princípio, à falta de ao menos uma testemunha ocular,
objetivaram, eles próprios, ocultos em lentes graduadas, observar a suposta
fraude; e, em sendo nula a paisagem, fingiram vista grossa e imaginaram a
espessura dos óculos. E tentaram o diálogo. Mudariam de posição; se necessário,
postar-se-iam de nádegas, desnudariam os olhos. Porém, findava o dia. Inútil.
Agora erravam pelo terreno horizontal, obcecados em seus
golpes de foice, desferindo-os em múltiplas direções, afoitos em decapitar um,
ver o cadáver alheio.
Havia um débito, mútuo; e a dívida a ser saldada com a vida
de um ou outro. Seguiam.
Antes do embate, passaram, por detrás de muros, a lançar,
às cegas, olhares de incendiadas iras; depois, agrediram-se mutuamente com
surdos insultos, melhor, grunhidos; então, posteriormente, fez-se entre eles
mudo silêncio --- mortal ---, e compreendeu-se ser o mundo por demais pequeno
para ambos, e que somente a extinção de outro resolveria a questão de um, e
vice-versa.
Prosseguia o duelo.
Assim, perdidos em tais conjecturas, achavam-se
absurdamente lesados em seus bens --- julgados de direito; afinal, um raio de
sol é mais do que nenhum, pensaram.
Acreditavam cegamente na ceguidão da justiça a ser obrada
por suas próprias mãos, habilíssimas; e, sob essa ó(p)tica, armaram-se de:
escuros óculos e instrumentos já referidos (possivelmente abandonados por
possíveis lavradores).
Habilidade de outro cego: consertar relógios (no escuro);
por isso, com tamanha destreza e desempenho, à sua foice manipulava como se a
ponteiro de marcar a fatídica hora.
Habilidade de um cego: estrangular morcegos --- que, mais
ousados porque famintos, lhe sobrevinham sugar o sangue quando simulava sono
profundo; portanto, qual duas tenazes, à arma do duelo agarravam-se firmes as
suas mãos.
De só dois golpes simultâneos, capitais, o fim do enredo.
E as cabeças --- que lhes cabia no pescoço, agora pelo
chão. Corpos e cabeças, como se imoladas oferendas a deuses pagãos. Em ambas as
partes, à altura da incisão, das veias e artérias o sangue escorria; e
untava-se este à composição do solo onde desfaleceram, desavencidos. Permanecia
o escuro.
É um dos melhores contos que já li. Jackson
ResponderExcluirMarcos, autografado o seu livro "no escuro armados", você escreveu: "acate, por obséquio,estes contos obscuros, armados de más aliciações". Reli-o várias vezes (o livro) e, agora, o conto (homônimo) postado neste blog. Parece-me que os personagens, ao digladiarem entre si,sendo eles cegos, surdos e mudos, representam, em sua ignorância, o avesso sombrio da justiça, personificando a cegueira, a surdez e a mudez interior - ou o mundo indiferente que os desumaniza. Os morcegos, criaturas da noite, em seu sono invertido, aparecem num conto e noutro, desaparecendo em, por exemplo, "num domingo, dia de feira", ou em "revisão", como uma marca de marginalidade, do que se teme à noite, num mundo de sombras e invisibilidade. Só ia dizer um "olá", mas acabei pensando essas coisas.
ResponderExcluirNão creio que esta pessoa seja um ser humano. Deve ser um alienígena transmudado. Cuidado! Cuidem-se!
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