domingo, 11 de novembro de 2012

ENTREVISTA JOSÉ SARAMAGO - PARTE 2

José Saramago é o escritor português contemporâneo mais conhecido no Brasil e no mundo. Além da literatura, ele é famoso, também, por sua incansável militância política. E é o autor do já clássico 'Ensaio Sobre a Cegueira' a entrevista desta semana (e da próxima) ao programa Roda Viva e visto escrito somente aqui no Outros 300. Confira é imperdível! 
 
Continuação...
 
José Saramago: É, de uma certa maneira é isso. Eu sei que o capítulo seguinte daquele que eu estou a fazer, terei que dizer isso, assim e assim, mas de modo nenhum articular toda a história que vou contar num "x" número de capítulos, seguindo depois. Aquilo que eu não faço é uma espécie de “guião”, eu estou em cada momento livre para não escrever aquilo que pensava, num outro momento, que iria escrever. E é esse sentimento de liberdade, aquilo que um crítico português chamou – e muito bem, e eu não tinha pensado nisso, e os críticos servem justamente para isso, para dizer como é que nos devemos pensar – ele designou a minha escrita de escrita desprogramada. E é de fato uma definição exemplar. É de fato uma escrita que se comporta desprogramadamente.

Gilberto Mansur: Eu queria, também pensando um pouco no telespectador, que certamente conhece, como o senhor diz, conhece mais o Evangelho Segundo Jesus Cristo, eu queria fazer algumas perguntas voltadas para esse livro. Eu já ouvi dizer, algumas pessoas já me disseram, que o leram como se fosse uma longa oração, como se fosse uma demonstração de fé, até mesmo religiosa, apesar da sua posição que a gente conhece, de materialista. Mas, a pergunta que eu queria lhe fazer é a seguinte, a gente sabe e tem uma grande curiosidade com relação aos evangelhos apócrifos, que existiram até o Conselho de Trento, nos anos 200, que São Jerônimo recolheu, copidescou e o Vaticano, a partir daí, simplesmente, praticamente proibiu a existência e a circulação desses evangelhos, a que muito pouca gente teve acesso. Então, o que eu queria perguntar é se você teve acesso a isso em algum momento, conhece esses evangelhos e de que maneira? E, ao mesmo tempo, se você não consideraria um crime de lesa-humanidade o Vaticano praticamente proibir a circulação desses evangelhos aos quais a humanidade deveria ter acesso?

José Saramago: Vamos ver. Comecemos pela proibição. O que a Santa Sé fez foi declarar que certos evangelhos eram canônicos e outros eram apócrifos. Portanto, fez uma escolha entre os documentos que considera bases da igreja, enfim, portanto, que são os quatro evangelhos, e depois os quatro apóstolos e tudo que vem depois, mas do ponto de vista dos evangelhos os quatro evangelhos, e declarou os outros apócrifos. Não previu a situação, quer dizer, pode, num certo momento, ter, enfim, logo após essa decisão, é possível que se tenham criado dificuldades da difusão, mas neste momento os evangelhos apócrifos estão publicados em praticamente todas as línguas. Embora eu tivesse tido tanta dificuldade de encontrá-los em português, que tive de comprar uma edição espanhola, da Biblioteca dos Autores Cristãos, onde está tudo, Santo Agostinho, tudo isso, e também os evangelhos apócrifos. Tive, portanto, acesso a eles. Os evangelhos apócrifos são, na maior parte dos casos, fragmentos. Há alguns bastante completos, como é o caso do evangelho, dos evangelhos, que não é apenas um, são três ou quatro, são chamados Evangelhos da Infância, em que se narra a infância de Jesus, de uma maneira mágica, com coisas extraordinárias, e algumas nada recomendáveis, por exemplo acontece, em certa altura, que Jesus estando brincando num regato e depois, digamos, um funcionário de um moinho, os moinhos que as crianças fazem, a água passa e faz girar o moinho e houve um amigo dele, um colega, uma criança da mesma idade, que deu um pontapé naquilo, estragou aquilo e Jesus ficou tão zangado que o matou [risos]. E depois os pais da criança morta foram queixar-se aos pais de Jesus, Maria e José, como é que isso, essa criança que faz essas coisas, e, aliás, parece que aconteceram dois casos, num ele fez ressuscitar a criancinha morta e no outro não. Portanto, Jesus, segundo os apócrifos, não era assim tão bondoso e tão caridoso. O que acontece é...

Gilberto Mansur: Esses evangelhos, de alguma maneira, influenciaram o senhor?

José Saramago: Não, rigorosamente nada. Devo dizer que quando eu não conhecia os evangelhos apócrifos, quando estava para escrever esse livro. E tive que conhecê-los e fui conhecê-los e até tinha uma grande esperança que viessem a ser muito úteis, porque como eram apócrifos as pessoas não os conheciam tão bem e eu poderia tirar dali umas coisas que iriam, enfim, dar mais consistência à minha história. No final das contas, nada. O único episódio que eu tirei dos evangelhos apócrifos, mas deslocando totalmente no tempo é o episódio dos pássaros de barro que, nos evangelhos apócrifos, Jesus faz 12 passarinhos, ou 10 passarinhos de barro, e depois bate as palmas e eles voam. Eu passei isso para Jesus já homem, para a cena logo após a grande conversa no meio do lago, entre Deus, o diabo e Jesus, quando, por assim dizer, se anunciam as primeiras vocações. Jesus é ali que faz os tais passarinhos de barro e é esse episódio, digamos, de São Tomé, que quer ver para crer se os pássaros voam.

Rodolfo Konder: Saramago, nós vamos ter que fazer um pequeno intervalo e o Giron vai fazer uma pergunta já na próxima parte do programa, mas vamos interromper o programa por alguns minutos. Nós voltamos já, já.
 [intervalo]
Rodolfo Konder: Muito bem, voltamos ao estúdio do Roda Viva, que está entrevistando hoje o escritor português José Saramago. Eu lembro que este programa é transmitido em conjunto com (...) Nós vamos passar a palavra agora para o Giron, que estava para fazer a sua primeira pergunta.

Luiz Antônio Giron: Ligando com a pergunta do Gilberto, eu queria saber o seguinte: você pegou o maior best-seller da literatura mundial, que é a Bíblia, são os evangelhos, e você se baseou em algum evangelho dos quatro principais ou você criou livremente a partir deles? Isso é a primeira coisa. A segunda coisa é a seguinte: a que você atribui tanto ódio de alguns católicos, de alguns religiosos, quanto ao sucesso que o seu livro despertou no público?

José Saramago: Sobre a primeira questão, a verdade é que os alicerces do meu livro não são apenas os quatro evangelhos, chamados de evangelhos sinópticos, é também o Antigo Testamento. Porque não podemos esquecer isso. O Deus do meu livro não é o Deus de que hoje se fala. O Deus, digamos, da igreja, hoje, é o Deus do amor, o Deus da compaixão, um Deus de perdão. Aquele Deus não tem nada a ver com o Deus que foi sendo refeito ao longo destes dois mil anos. E que acabou por se assemelhar ao filho. É um caso extremamente curioso, porque ao longo desses vinte séculos a idéia de Deus vai sofrendo modificações e acaba, por fim, o pai por se assemelhar ao filho. A doçura de Cristo, a mansidão, a dignidade, tudo isso, que estão nos evangelhos, tem as suas exceções, porque Jesus também soube ser violento, foi violento muitas vezes. Mas este sentido de caridade que está em Jesus foi, ao longo desses vinte séculos, passado para o pai. Portanto, o meu Deus, ou melhor, dizendo, para não haver equívocos, o Deus do Evangelho segundo Jesus Cristo é o Deus bíblico, é o Deus dos judeus. Porque Cristo era isso mesmo, Jesus era isso mesmo, um judeu, nada mais do que isso. Não há, aqui, um cristianismo nascido antes, quer dizer, não há um cristianismo nascido antes de poder ter vivido. E aquilo que fez o cristianismo o que é, é a sua própria vivência. Portanto, além dele ser indiferente, que se tratasse do Evangelho segundo Marcos, ou Mateus, Lucas ou João, qualquer dos quatro, eu tomei diferenças e leitura, foi também a leitura, não de todos os livros do Antigo Testamento, evidentemente que não me interessariam, mas de alguns deles, além do O cântico dos cânticos, que é inevitável e que é aproveitado literalmente num diálogo entre Jesus e Maria Madalena. Há também as diferenças, ou Eclesiastes ou o Levítico, e há alguns outros livros. Quanto à segunda questão, enfim, eu penso que o choque produzido nos católicos e reparo que não há protesto dos protestantes. Aqueles que se sentiram atingidos foram, exclusivamente, eu diria, os católicos, eu penso que é natural, porque todo e qualquer livro, toda e qualquer idéia que ponha em causa o que está estabelecido, porque repare, eu, às vezes, digo que há uma coisa que me surpreende muito, é que depois de uma missa, não aparece uma, duas ou três pessoas mortas. E digo isto por uma razão muito simples: como é possível agüentar a presença de Deus e continuar vivo? E, contudo, digamos, a missa acaba e, independentemente do grau de fé e de participação que os fiéis tenham, mas é um ato pouco social. Eu acho que se Deus estivesse lá, se as pessoas sentissem a real presença de Deus, não agüentariam, quer dizer, não é possível. Então, o livro que aparece, como é este caso, que vai por em causa toda essa instabilidade, toda essa maneira normal de ter uma relação com a religião, em que tudo é subitamente desequilibrado, as pessoas que vivem dentro de um edifício, de uma casa que está toda bem distribuída, de repente vêem alguém mudar as paredes, abrir janelas onde não havia, digamos, algumas delas tapá-las, as pessoas sentem-se, fora do seu contexto e isso pode desencadear vários tipos de reação.

Luiz Antônio Giron: Tem alguma passagem do livro que você acha que chama mais a atenção por este aspecto do choque?

José Saramago: Enfim, há várias...

Luiz Antonio Giron: Eu, por exemplo, acho que quando você descreve a morte de Jesus Cristo, quando você descreve isso com crueza, com grande crueza mesmo, eu acredito que aí esteja um dos motivos da revolta. Você descreve Cristo como não tendo visto a tigela negra onde o sangue gotejava. Quer dizer, é uma coisa muito chocante para quem pode ter fé, eventualmente.

José Saramago: Há aí vários aspectos. Em primeiro lugar, é óbvio para toda gente, essa tigela negra, que é uma tigela vulgar, comum, de barro, é a representação do Graal. Quer dizer, aquilo que seria esse vaso magnífico onde o sangue de Cristo foi recolhido, transforma-se, no meu livro, numa simples tigela de barro...

Luiz Antônio Giron: Que Cristo não vê.

José Saramago: O não ver, a verdade é que ele está em trânsito da vida para a morte. Não creio que isso tenha chocado. O que choca, por exemplo, tendo em vista a importância do culto mariano, hoje, eu acho, de uma certa maneira, que a pirâmide, se é que pode se chamar assim, a pirâmide de relação religiosa, dentro do cristianismo está, de alguma maneira, invertida, quer dizer, deveria ser, logicamente, me parece que deveria ser logicamente, Deus, Cristo e Virgem. Mas, se nós olharmos bem, veremos que há um processo de inversão. A Virgem aparece em primeiro lugar, depois aparece Cristo e só depois é que aparece Deus. O culto mariano, de uma certa maneira, fez inverter toda essa relação, trocar os pés pela cabeça nessa relação. Portanto, há a circunstância dele ter feito de Maria, mãe de Jesus, uma mulher igual a todas as outras mulheres. Há a circunstância da presença do diabo. O diabo é o anjo da anunciação, o diabo é educador de Cristo e ele, em concordância com Deus, porque no fundo eles são um só. No fundo, são um só. E há uma frase, por exemplo, terrível, que nunca nenhum católico, digamos, não há perdão que chegue para isso, que é quando, na tal conversa dentro do barco, no meio do lago, cercado de nevoeiro, depois daquela descrição toda do que vai acontecer no futuro, o diabo diz: “é preciso ser Deus para gostar tanto de sangue”. E realmente, se o católico, se o crente, é colocado diante de um Deus, que fez do sangue, do sofrimento, da renúncia, da abdicação da vontade, do sacrifício, do martírio, fez o alicerce do seu poder, e se o diabo aparece a dizer realmente é preciso ser Deus. E, agora, é curioso, não apenas esse Deus, mas todos os deuses, todos os deuses pediram sangue. E essa relação de sacrifício dos homens, que continuamente se sacrificam, é uma transcendência que, enfim, não conheço. É de fato, absurdo. Para mim, tudo isso, é bastante absurdo, se é que pode se dizer bastante, porque ou é absurdo ou não é [risos], portanto não se pode dizer “bastante absurdo”. Então, eu diria que é absurdo mesmo.

Gilberto Mansur: Além dos evangelhos, você leu muito sobre Cristo? Existe um livro na literatura brasileira que você não deve ter lido...

José Saramago: Não, não...
 

Hamilton dos Santos: O senhor pensou nas feministas na construção da personagem de Maria?

José Saramago: Não pensei nas feministas, mas essa pergunta poderia ser posta de uma outra maneira: se eu pensei muito nas feministas quando construí a personagem Maria Madalena. Porque a Maria...

Hamilton dos Santos: Ela é loura, não é?

José Saramago: Dizem que sim, que era loura [risos]. Quer dizer, provavelmente vem daí a idéia que as loiras são mais perigosas que as morenas. Enfim, sobre isso eu não tenho nada a dizer, se são umas ou se são outras. Mas, as feministas... Essas duas mulheres, Maria Madalena e Maria, mãe de Jesus, são duas faces da mesma mulher e isso mostra-se quando, nas bodas de Canaã, quando Maria, mãe de Jesus, percebe que não tem mais o que fazer na vida do filho, entrega o filho, entrega-o de fato a Maria Madalena. Digamos que a Maria Madalena é mais uma personagem feminina das minhas que não tem a ver com o tempo em que, de fato, se viva, como não tem Blimunda, como não tem outras muitas, que são representações de uma mulher que está colocada num tempo, mas que no fundo não é produto dele, porque a mulher produto do tempo, mulher e judia daquele tempo, é a mulher que eu, cuidadosamente, tentei descrever no princípio do livro, como a mulher que não tem importância, que não tem um significado social, que entra na sinagoga pela porta lateral, que nem que todas as mulheres de Israel ou da Palestina estivessem dentro do templo, o serviço religioso não pode começar...

Hamilton dos Santos: Mas o senhor não está dizendo que Maria, no seu livro, não tenha esse componente feminista, porque, por exemplo, quando ela está grávida, ela pensa na possibilidade de desta vez, na Páscoa, não ter que servir os homens, não ter que preparar as comidas.

Edla Van Steen: Você acha que isso é problema de feminismo? [risos]

José Saramago: Não, eu não diria que seja, quer dizer, nenhum ser humano é totalmente passivo sempre, todos nós temos, mesmo que não concretizemos, movimentos de protesto interior, de revolta, tudo mais, ai de nós se fossemos passivos a 100%. E se é verdade que o sistema social e ideológico, religioso, de um tempo que condenava as mulheres, de fato, à passividade, também é certo que no seu foro íntimo, da sua consciência, da sua alma, essas coisas estavam lá. Quando uma mulher tem que viver num lugar em que os homens se permitem dizer “abençoado seja, Senhor, por ter me feito homem”, quer dizer, quando a mulher não tem outra coisa para dizer a Deus, senão “graças, Senhor, por ter me feito segundo na tua vontade”, quer dizer, quando a mulher está reduzida a isso, é preciso que Maria, na medida do possível, manifeste essa capacidade de indisciplina, mas que essa indisciplina se manifeste totalmente na Maria Madalena, que quer estar fora.

Jayme Martins: Essa inversão que o senhor se referiu a pouco, de Deus, Cristo, Virgem Maria, para o inverso, Maria, Cristo e Deus, há um exemplo muito concreto disso adotado pela própria igreja na China, por exemplo, quando o jesuíta Mateus disse: “vai pregar o cristianismo junto ao Imperador e aos eruditos da Corte” e, vendo a descrença dos chineses num Deus que, afinal de contas, acaba pregado na cruz, ele recorre então a imagem da Virgem Maria, tanto que a igreja matriz de Pequim acaba sendo a igreja de Nossa Senhora da Conceição. E aí então é que o cristianismo consegue uma grande popularização na China, a ponto de o taoísmo acabar introduzindo também uma mulher no seu panteão de divindades. Agora, já que estamos falando em China, vamos a minha pergunta: apesar dos fracassos sofridos pela experiência socialista pelo mundo afora, como é que as convicções políticas e ideológicas de Saramago se mantém intactas no essencial? Qual é a esperança, afinal de contas, nesse sentido?

Rodolfo Konder: Eu vou pegar uma carona nesta pergunta do Jayme, porque acho que temos aí um tema interessante sobre a sua reflexão. Talvez até um pouco do fascínio que você exerce, além da qualidade da sua literatura, esteja nessa tensão entre o escritor e o militante. É porque você, por exemplo, falou em corrente de afetividade, falou em diversas janelas, falou em múltiplos fios na condução do seu trabalho, falou até em alma, que era uma palavra banida do catecismo dos materialistas dialéticos.

José Saramago: Alma, espírito, aquilo que nós não sabemos identificar. É só. É por uma comodidade lingüística, nada mais.

Rodolfo Konder: Mas eu perguntaria, dentro da pergunta do Jayme, se essas tensões entre o militante político, que acredita num partido único, por exemplo, e o homem das múltiplas janelas, se elas não dificultam o trabalho de criação? Se o militante não patrulha o escritor?

José Saramago: Eu creio que se pode responder a isso facilmente pela leitura dos meus livros. Não creio que alguém, quem quer que seja, sinta, ou perceba, ou distinga, na leitura qualquer dos meus livros, vigilância eventual, suposta vigilância que o militante teria no ato da escrita em exercer sobre o escritor. Definitivamente, não creio que isso se encontre lá. Em segundo lugar e, portanto, voltando um pouco à pergunta, para complementar, como é que diante dessa derrocada toda alguém tem o atrevimento, ou o descaramento, de continuar a dizer: pois sim, caiu, mas eu continuo. A questão também pode ser posta ao contrário: por que, por uma coisa ter acabado, coisa esta que não é "a" coisa, mas é apenas uma delas, que foi apenas uma delas, que não se constitui, ao derrocar-se, como a morte da morte, o fim do fim. Poderíamos perguntar por que isso haveria de significar a renúncia a princípios meus. Que tem essa ligação profunda. Quero dizer, se meus princípios estivessem dependentes do maior ou menor êxito de sua aplicação, então eu seria tanto mais fiel a esses princípios quanto mais os resultados fossem favoráveis ao meu ponto de vista, o que se confundiria, perigosamente, com o oportunismo. Então, aquilo que se passa é completamente diferente. Os princípios, para mim, são intocáveis. Aquilo que, a partir deles, aquilo que representa a utilização ou a tentativa de se transportar para uma prática o que está contido nesses princípios, posso dizer que, em princípio, também, tenho a parte da responsabilidade que resulta da minha adesão a esses princípios, mas não posso assumir a responsabilidade que resulta da má aplicação desses mesmos princípios. Quer dizer, eu não sou obrigado, em primeiro lugar, eu não sou obrigado a renunciar aos meus princípios porque a União Soviética se desmantelou e também não era obrigado antes a crer, como, aliás, não cria, que aquilo que estava sendo feito na União Soviética fosse a efetiva concretização de princípios os quais eu era fiel então e continuo a ser fiel. De uma maneira mais clara, a União Soviética nunca foi para mim uma referência exclusiva e permito-me introduzir aí um matiz que é, quando foi dito que eu acredito no partido único. Eu não acredito num partido único, eu não defendo a existência de um partido único, qualquer que ele seja. O que eu defendo é legitimidade de um partido, que tenha como base a aplicação desses princípios, e que não lhe seja negada a possibilidade de difundi-los, de promovê-los, em igualdade com qualquer outra tendência política que siga caminhos diferentes. Porque, para mim, há uma coisa que está rigorosamente clara. É que, de fato, da noite para o dia, milhões e milhões de comunistas, que pareciam sê-lo, ou diziam sê-lo, deixaram de ser de repente. O que me permite duvidar da autenticidade dessa convicção, nas 24 horas antes. Em segundo lugar, a consciência da dissensão tremenda, que é conseqüência da evidência de um fracasso. Milhões de pessoas neste momento sofrem, sinceramente sofrem, essa dissensão. Mas tem também essa idéia, que para mim é fundamental: o socialismo dissentiu e provavelmente voltará a dissentir nas novas tentativas que se façam para estabelecê-lo. Por uma razão muito simples, porque promete e tendo prometido não cumpre, como foi este o caso, dissentirá. Já o capitalismo, louvado seja Deus, não vai dissentir nunca, por uma razão muito simples, porque não promete nada.

Fábio Lucas: Ainda sobre o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, a história dele oferece agora, recentemente, dois episódios. Um é que houve um embargo de um secretário de Estado para que ele entrasse na lista dos livros portugueses a serem apresentados ao Prêmio Europa de Literatura. Outro, contrariamente, não foi um embargo, foi uma consagração, quer dizer, o livro recebeu o grande prêmio da Associação Portuguesa de Escritores. Como você recebeu uma coisa e outra?

Hamilton dos Santos: Eu queria só emendar na sua pergunta dizendo o seguinte: me parece que não houve, pelo menos por parte da igreja, como houve, por exemplo, no caso do filme Je Vous Salue Marie, do Godard, uma preocupação tão intensa com o seu livro. Claro, houve algumas polêmicas, mas elas não foram tão fortes. Me parece até que, na verdade, os políticos fomentaram mais essas polêmicas do que a própria igreja. O senhor acha que a igreja está se tornando mais tolerante com isso ou criando uma estratégia para não produzir mais mártires culturais?

José Saramago: A igreja é uma coisa muito complicada e a igreja não tem uma estratégia, tem estratégias e pode se dar um exemplo: no norte de Portugal, onde as pessoas são muito conservadoras, os bispos que lá estão são tão ou mais conservadores ainda do que as pessoas que lá vivem. No sul, no caso, por exemplo, do bispo de Setúbal, que é um distrito operário, a linguagem desse bispo e o comportamento desse bispo é completamente diferente. Portanto, a igreja é suficientemente hábil para pôr, consoante à necessidade, os seus porta-vozes e os seus condutores, digamos, do povo de Deus, do seu rebanho, de acordo com as especificidades de cada lugar. E, nesse caso, a igreja terá pensado, ouve reações de eclesiásticos, o arcebispo de Braga fez uma homilia tremenda denunciando o livro, chamando nomes ao autor, essas coisas todas, mas a igreja como instituição, em Portugal, guardou silêncio. Mandou os seus porta-vozes dizer aquilo que convinha, para que os fiéis também não ficassem desamparados e sem a voz da igreja, eu imagino que nas igrejinhas das aldeias, quando se fala do Evangelho Segundo Jesus Cristo, dizem o pior de mim, quer dizer isso é o que eu imagino. Mas a igreja não se meteu muito nisto. Às vezes, qualquer tentativa para comparar isso com o caso Rushdie, eu digo, por favor, respeitemos...

Roberto Pompeu de Toledo: O senhor imaginou que alguma vez poderia acontecer algo parecido com isso?

José Saramago: Não, de modo nenhum. Eu saio à rua, ninguém me diz nada, quer dizer, a agressividade das pessoas, quando existe, manifesta-se epistolarmente, quer dizer, escrevem cartas ou devolvem, por exemplo, à editora – o que aconteceu em dois ou três casos – o livro todo rasgado, todo esfacelado. Ficam por aí. A questão posta sobre o prêmio. Por razões que não vem ao caso, porque de fato precisaríamos juntar aqui uma quantidade de dados que não interessam, a minha disposição estava em, se o prêmio da Associação Portuguesa de Escritores me fosse atribuído, recusá-lo. Os portugueses todos conhecem as razões, mas não vale a pena falar aqui. Simplesmente apresentou-se uma dificuldade, é que tinha havido toda essa história, digamos, da proibição, do veto, ao livro em relação a esse prêmio literário europeu. O que deu o escândalo que todos nós sabemos. Escândalo dentro das fronteiras e fora delas. Digamos, dizer eu que não queria o prêmio, seria acrescentar, como eu disse, ao escândalo de uma exclusão o choque de uma recusa. Pareceria que eu estava a arranjar maneiras de fazer falar de mim, com vista ao marketing e ao aumento das vendas. Estava nessa dúvida, quer dizer, nos dias anteriores à divulgação do prêmio, quando se tornou claro, porque sempre nós ficamos sabendo como as coisas se passam, que provavelmente o prêmio me ia ser dado, eu estava pensando no que eu vou fazer, no que eu vou dizer. E, conversando com a minha mulher sobre isso, ela de repente tem a idéia luminosa, de fato luminosa, que resolveu a questão. Eu aceito o prêmio como prêmio que é, digamos, a distinção honorífica, mas o dinheiro dele eu encaminho em outra direção e essa direção foi a compra de livros para enviar aos povos africanos de expressão oficial portuguesa, os chamados horrivelmente PALOPS. Eu acho que não se deve chamar a ninguém de semelhantes coisas, mas enfim, o mundo do jornalismo abrevia essas coisas e realmente dizer países de expressão oficial de língua portuguesa era grande demais. Então, PALOPS já está. Digamos, a razão foi essa, a razão da minha recusa e da decisão de aceitar o prêmio sim, mas renunciar ao seu valor tem essa causa.

Fábio Lucas: A sua mulher foi a boa conselheira nesse caso?

José Saramago: A minha mulher sempre é minha boa conselheira, e mais do que conselheira, é o outro lado de mim.

Edla Van Steen: Por falar em mulher, deixa eu perguntar uma coisa sobre mulher. Os escritores gostam de dedicar livros, em geral. Eu queria saber de você o que significa dedicar um livro seu, por impresso, e se alguma vez você se arrependeu de ter dedicado um livro?

José Saramago: Bom, se eu não tivesse me arrependido de nada em toda a minha vida, seria o caso de perguntar então por que se arrependeu de ter dedicado o livro? Eu arrependi-me e penso que é uma coisa de todos nós, que nos arrependemos de coisas que fizemos e podemos nos arrepender até de dedicatórias escritas com muita sinceridade e que passam a não ter nenhuma razão de ser. De uma certa maneira, pode-se dizer o seguinte: o homem que dedicou esses livros, sendo o mesmo, já não é o mesmo. É outro homem, tem que se entender isso, e não é que ele pretenda fazer desaparecer o homem que foi. O que existe é o direito de retirar, daquilo que esse homem fez, aquilo que o homem que ele é hoje, se tornou, supérfluo, enganoso, falso, tudo o que quiser, e então retira a dedicatória.

Edla Van Steen: Só quero perguntar uma outra coisinha. O Giovanni Pontinni me disse, há alguns dias, que ele tem uma enorme correspondência com você sobre o problema de tradução da sua obra. Em geral, você gosta das traduções feitas?

José Saramago: Eu gosto, em geral, das traduções feitas, gosto mais ou menos. Há traduções que posso ler, que eu posso tomar conhecimento, no caso da italiana, no caso da francesa, muito menos no caso da inglesa, mas em todo caso o suficiente na leitura. Há outras que me escapam completamente, a sueca, a dinamarquesa, ou finlandesa, ou holandesa, japonesa ou o hebreu, tudo isso me escapa. Vou, às vezes, denunciando informações que algumas pessoas podem dar, quanto à qualidade das traduções. Algumas das melhores, penso que existem excelentes tradutores, sobretudo existem excelentes tradutoras, o que não significa que não tenham também bons tradutores, como é o caso do Giovanni Pontianni, como a Rita Desti, (...?) e alguns mais.

Gilberto Mansur: E no Brasil, você acha que deveria se mexer em alguma coisa? Teve um livro seu que foi, não é?

José Saramago: Eu nunca autorizei que nenhum livro meu fosse mexido, como também não permitiria, se dependesse de mim, que um livro de um autor brasileiro fosse mexido em Portugal.

Ivan Ângelo: Às vezes é.

José Saramago: Eu sei que é, eu sei que é, mas aí recrimino o autor. O autor eu penso que deve dizer assim: “eu escrevo em português. As variantes, as mudanças, as especificidades do lugar e da cultura diretamente em que estou, a cultura brasileira, levam a que a minha escrita e a escrita comum sejam diferentes em alguma coisa”. Mas a questão também é essa, que nós temos que aprender justamente com as diferenças. Eu considero que ganho mais podendo ler um livro brasileiro, de um autor brasileiro, na forma que ele usou. Ganho mais porque sei mais. Fico, a saber mais, ao saber que a minha língua pode dar aquelas voltas. Isso é um enriquecimento.

Edla Van Steen: Você é contra a integração proposta?

José Saramago: Eu acho que não, o que há é esse projeto do acordo ortográfico.

Ivan Ângelo: Aqui se falou muito de um livro só aqui. Falou-se um pouco em Ricardo Reis, mas falou-se, principalmente, do Evangelho. Eu queria saber como você, que empregou, deu o melhor de si, para escrever cada um dos livros que você escreveu, em qual você acha que acertou mais a mão, que te satisfaz plenamente? E qual o outro que, hoje, de alguma forma, não te satisfaz tanto? Enfim, faça uma escolha.

José Saramago: Essa é terrível pergunta, quer dizer, no fundo é uma pergunta equivalente a alguém que tem quatro filhos, há um incêndio em casa e dizem que só pode salvar um, e ele vai lá e o que ele faz? Provavelmente, aquilo que ele seria obrigado a fazer por quem lhe pôs diante desse dilema é morrer com os quatro filhos. O melhor era isso. Mas, como não é esse o caso, eu começo pelo livro que eu considero o menos conseguido, para não chamar falhado, ou coisa assim. É, evidentemente, Jangada de Pedra. Por uma razão muito simples, óbvia: desde o primeiro momento, eu não precisei chegar ao fim do Jangada de Pedra para saber que aquele livro estava condenado a ser, irremediavelmente, falhado.

Ivan Ângelo: Você já tinha essa impressão enquanto escrevia?

José Saramago: Sim, sim, eu sabia isso. E, por uma razão claríssima: o clímax do livro, quer dizer, o ponto forte do livro está no princípio. O ponto forte da Jangada é a separação, o corte da península, dos Pirineus. Tudo o quanto vem depois, o autor tem que terminar de contar aquela história, mas ele sabe, e eu sabia, que não encontraria nada mais forte do que aquilo que já lá está. Portanto, esse livro é, desse ponto de vista, falhado. Não digo que seja na escrita, no concreto das situações, mas é um livro que está posto ao contrário. Se eu pudesse ter escrito o livro ao contrário, pondo a fratura no fim, mas aí era outra história que tinha que começar, pois se a fratura ponho no fim, precisava continuar, para explicar o que acontecia depois. Então, ali está. Esse livro é o tal. Os outros, é muito difícil. Há várias razões. Eu, às vezes, digo que eu ponho, talvez, O Ano da Morte de Ricardo Reis acima dos outros. Mas, ao mesmo tempo me pergunto por que eu iria colocar O Ano da Morte de Ricardo Reis acima do Memorial do Convento? Ou da História do Cerco de Lisboa? Ou do Evangelho? De modo que, como no ciclismo quando eles chegam no Pontão, quer dizer, aquilo que eu desejo é que meus livros cheguem todos em Pontão e que sejam creditados ao mesmo tempo. Eu admito que A Jangada de Pedra vem 2 minutos atrasados, e é bem feito [risos].

Gilberto Mansur: O sucesso do Evangelho, que é o seu livro que fez mais sucesso, que vende mais, balançou alguma coisa? Você tem uma predileção por ele com relação aos outros?

José Saramago: Não, não. O que eu considero é que a “carreira” do Evangelho, para pormos a questão assim, não vai poder ser julgada por questões quantitativas. Razões de ordem exclusivamente quantitativas. Não digo exclusivamente, mas, quantitativas. Quer dizer, tem 140 mil exemplares publicados em Portugal, vendidos em Portugal, vai vender com certeza mais, mas aquilo que eu espero que aconteça é que o livro tenha, produza e continue a produzir nos leitores, efeitos profundos. E por aí é que eu penso o Evangelho. É possível que o Evangelho seja, dos meus livros, aquele que vai ficar, não por razões meramente, exclusivamente literárias, mas porque, ao contrário dos outros livros, que também levantam questões que não são de ordem meramente literárias, este põe muito mais questões. E essas questões, suponho eu, vão levar as pessoas a ler o Evangelho, espero que dentro de 50 anos ainda leiam. Daí pra diante, enfim...

Gilberto Mansur: E ele te deu mais trabalho? Tem algum livro que te deu mais trabalho?

José Saramago: Não, não. O livro que eu penso que me deu mais trabalho, mais esforço e mais suor, foi A História do Cerco de Lisboa, por causa dessa diferença de planos, século XII, século XX, a articulação entre isso, digamos...

Luiz Antônio Giron: Você acredita nessa, você falou que Jangada de Pedra não funciona porque...

José Saramago: Não, ele funciona.

Luiz Antônio Giron: Funciona menos, porque no começo tem um ponto culminante. Você acredita nessa linearidade do romance, de narrativa que conduza a um ponto culminante, nesse momento do romance contemporâneo?

José Saramago: Não, não, eu não quero dizer que eu não sinta, que eu pense que o interesse tenha que vir crescendo, até chegar ao fim onde seria a apoteose. Agora, considero que é um livro desequilibrado porque o ponto fortíssimo está à entrada dele e faça o autor o que fizer, ao longo dele, já não pode equilibrar. Se eu tivesse um ponto forte a princípio, outro mais adiante, outro mais perto do final, o livro equilibrava-se. Mas, o livro não pode equilibrar-se, porque o clímax é na abertura do livro. A partir daí ele vai como pode.

Rodolfo Konder: Saramago, infelizmente o nosso tempo está chegando ao fim. Então, em nome da TV Cultura eu queria agradecer muito a sua presença aqui. A entrevista foi excelente, muito interessante, tenho certeza que os telespectadores também gostaram muito. Agradecer aos jornalistas e aos escritores que nos ajudaram aqui a fazer a entrevista...

José Saramago: Eu posso também? Só por um minuto? Agradecer o modo simpático como se comportaram comigo. Podiam ter me esfacelado e não me esfacelaram [risos]. A troca de idéias em que, de fato, resultou esse encontro, a oportunidade de conhecer gente nova, de rever amigos meus e, enfim, e se isso serviu para que os meus leitores conhecessem um pouco melhor, eu fiquei conhecendo um pouco melhor, através das vossas questões, o interesse que os brasileiros tem por aquilo que eu faço. Muito obrigado. 

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