sábado, 3 de novembro de 2012

LICENÇA PARA CONTAR: MARCOS TAVARES


Marcos Tavares (1957) é natural de Vitória-ES. Ficcionista, publicou “No Escuro, Armados” (contos, Ed. FCAA / Anima, 1987) e “Gemagem” (poemas, Ed. Florecultura, 2005). Participa de publicações outras. Eleito em 2011, ocupa a Cátedra n º 15 da Academia Espírito-santense de Letras (AEL). Confira, abaixo, o conto “No escuro, armados”:

NO ESCURO, ARMADOS

No escuro, armados a amoladas foices, dois surdos-mudos-cegos duelavam.

O brilho das lâminas cortava o negror que os continha.
Um era negro; outro, pardo; e, em sendo noite, portanto, iguais em, cor.
Em cada cabeça: a sentença de outro; em cada olho, uma centelha de ódio, cego ódio.
Motivo da contenda: desavença quando, em manhã de verão, disputavam um raio de sol. Um, erguendo o braço, levantou suspeita de que o outro o ludibriava quanto à obtenção de luz, e a esse motivo atribuía a sua nenhuma percepção de seres e de coisas; o outro, ensimesmado, pensou mesma ideia: viu igual causa, para consequência idem. Em verdade, nunca ouviram falar de raio de sol, ou viram sequer o sol, nem nunca alguém lhes falou de estrelas porque alguém nunca lhes falara; nunca viram sequer um alguém porque --- a eles --- ninguém existia; e só se constatavam um ao outro somente por através do tato, quando se sentindo incompletos.
           
Certos estavam --- intuitivamente --- de que habitavam um reduzido mundo, e de que iam morrer --- sim --- porque existiam. E certo era que possuíam um lugar à sombra: o de seus próprios corpos.
O ruído produzido pelo movimento de foices cortando     o ar confundia aos morcegos, já em alvoroço tão logo pressentida a iminência de sangue fresco; e, emitindo estridentes guinchos, os negros quirópteros eram decepados em pleno vôo, aterrissando seus muitos pedaços, tintos de vermelho, vítimas de furiosas lâminas. Outros da espécie, mordivorazes, atiravam-se a estes; e amontoavam-se, caóticos, a lamber o líquido esvaído.

A princípio, à falta de ao menos uma testemunha ocular, objetivaram, eles próprios, ocultos em lentes graduadas, observar a suposta fraude; e, em sendo nula a paisagem, fingiram vista grossa e imaginaram a espessura dos óculos. E tentaram o diálogo. Mudariam de posição; se necessário, postar-se-iam de nádegas, desnudariam os olhos. Porém, findava o dia. Inútil.
Agora erravam pelo terreno horizontal, obcecados em seus golpes de foice, desferindo-os em múltiplas direções, afoitos em decapitar um, ver o cadáver alheio.
Havia um débito, mútuo; e a dívida a ser saldada com a vida de um ou outro. Seguiam.

Antes do embate, passaram, por detrás de muros, a lançar, às cegas, olhares de incendiadas iras; depois, agrediram-se mutuamente com surdos insultos, melhor, grunhidos; então, posteriormente, fez-se entre eles mudo silêncio --- mortal ---, e compreendeu-se ser o mundo por demais pequeno para ambos, e que somente a extinção de outro resolveria a questão de um, e vice-versa.
Prosseguia o duelo.
Assim, perdidos em tais conjecturas, achavam-se absurdamente lesados em seus bens --- julgados de direito; afinal, um raio de sol é mais do que nenhum, pensaram.
Acreditavam cegamente na ceguidão da justiça a ser obrada por suas próprias mãos, habilíssimas; e, sob essa ó(p)tica, armaram-se de: escuros óculos e instrumentos já referidos (possivelmente abandonados por possíveis lavradores).
Habilidade de outro cego: consertar relógios (no escuro); por isso, com tamanha destreza e desempenho, à sua foice manipulava como se a ponteiro de marcar a fatídica hora.

Habilidade de um cego: estrangular morcegos --- que, mais ousados porque famintos, lhe sobrevinham sugar o sangue quando simulava sono profundo; portanto, qual duas tenazes, à arma do duelo agarravam-se firmes as suas mãos.
De só dois golpes simultâneos, capitais, o fim do enredo.
E as cabeças --- que lhes cabia no pescoço, agora pelo chão. Corpos e cabeças, como se imoladas oferendas a deuses pagãos. Em ambas as partes, à altura da incisão, das veias e artérias o sangue escorria; e untava-se este à composição do solo onde desfaleceram, desavencidos. Permanecia o escuro.
        

        




3 comentários:

  1. É um dos melhores contos que já li. Jackson

    ResponderExcluir
  2. Marcos, autografado o seu livro "no escuro armados", você escreveu: "acate, por obséquio,estes contos obscuros, armados de más aliciações". Reli-o várias vezes (o livro) e, agora, o conto (homônimo) postado neste blog. Parece-me que os personagens, ao digladiarem entre si,sendo eles cegos, surdos e mudos, representam, em sua ignorância, o avesso sombrio da justiça, personificando a cegueira, a surdez e a mudez interior - ou o mundo indiferente que os desumaniza. Os morcegos, criaturas da noite, em seu sono invertido, aparecem num conto e noutro, desaparecendo em, por exemplo, "num domingo, dia de feira", ou em "revisão", como uma marca de marginalidade, do que se teme à noite, num mundo de sombras e invisibilidade. Só ia dizer um "olá", mas acabei pensando essas coisas.

    ResponderExcluir
  3. Não creio que esta pessoa seja um ser humano. Deve ser um alienígena transmudado. Cuidado! Cuidem-se!

    ResponderExcluir