Bernadette Lyra nasceu em Conceição da Barra, Espírito Santo, em 1938. Formada em Letras, especializou-se em cinema e fez pós-doutorado na Sorbonne, em Paris. Teve contos incluídos em coletâneas holandesas e já foi indicada para o prêmio Jabuti. Confira, abaixo, a entrevista com a escritora:
1 – Olá, Bernadette. Você é escritora e formada em Letras, mas quando e como você sentiu que faria da palavra o seu sentido de vida?
Resposta: Aprendi a ler sozinha, aos cinco anos de idade. E, desde aí, sou uma fascinada pelas palavras escritas. Meu avô, Manoel Cunha, era um intelectual autodidata, um poeta natural, nascido no sertão de Itaúnas. Ele tinha uma vendinha de secos e molhados, em Conceição da Barra. Mas, na verdade, era um apaixonado pela literatura. Ainda menina, eu catava um livro na estante com portas de vidro que ficava em um reservado da vendinha de meu avô, sentava no chão, debaixo da mesa, e começava a ler. Então, me esquecia de tudo ao redor. Enquanto as demais crianças pulavam e brincavam, lá fora, eu ficava metida em um canto, lendo. É claro que a família me achava uma menina bem estranha...à exceção de meu avô... Muitas vezes, depois de ler, eu fechava os olhos e pensava que tinha de escrever histórias para que outros as lessem, como forma de perpetuar aquele universo mágico das palavras que estava descobrindo.
2 – Em 2011, você tomou posse na Academia Feminina Espírito-Santense de Letras. Nesta bela jornada literária, quem mais te influenciou? Quais são seus cicerones?
Resposta: Quando fui de Conceição da Barra para estudar em Vitória, no colégio do Carmo, tive a sorte de encontrar dois professores que me incentivaram a escrever, Irmã Rosa e Guilherme dos Santos Neves. Lembro um dia em que Dr. Guilherme me devolveu uma singela redação escolar e disse: “Menina, você é uma escritora”. Aquele momento foi uma iluminação. Fiquei repetindo isso baixinho, por horas e horas. Eu era uma escritora! Assim, Guilherme dos Santos Neves foi definitivo, em minha carreira profissional e em minha vida. Mas costumo dizer que sou uma querida dos deuses, pois, desde aquela época, muita gente passou a ler, a mencionar e a compartilhar o que escrevo. Um comentário que jamais esqueço e que deixou radiante foi o de Renato Pacheco, que se encantou com uma cronicazinha chamada “Minhas Mortas Amigas”. E como não lembrar José Arthur Bogea, que dedicou a meus livros grande parte de sua existência e de seus trabalhos acadêmicos na UFPA e na UFES? E os meus queridos Francisco Aurélio Ribeiro, Deneval Azevedo Filho, Maria Thereza Lindenberg Ceotto e tantos outros pesquisadores que tiveram a generosidade de se debruçar sobre meus contos e romances, em suas dissertações e teses? Enfim, é longa a lista de meus débitos. Em minha jornada literária, sou tributária do carinho de muita gente. E sou guiada pela retribuição que, constantemente, me dá cada um de meus leitores.
3 – Você teve contos incluídos em coletâneas holandesas, já participou de diversas antologias e foi indicada para o prêmio Jabuti. Contudo, fale-nos do começo de sua carreira. As dificuldades, as vivências, os prazeres.
Resposta: Ainda estudante passei a publicar alguns textos, poemas e crônicas, na extinta Revista Capixaba e no antigo Caderno Literário, do jornal A Gazeta, sempre levada pelas mãos de meu saudoso Mestre Guilherme. Depois, já aluna do curso de Letras da UFES, comecei a participar de recitais de poemas e de concursos literários. Ganhei alguns, perdi outros. E, em 1981, publiquei meu primeiro livro de contos, “As Contas no Canto”, que tinha sido vencedor do Prêmio Nacional Fernando Chinaglia. Naquele tempo, Vitória era uma cidade tranquila. Todos se conheciam. A vida cultural era reduzida, provinciana e convencional. Mas eu, quando já estava dando aulas na UFES, convivia e me correspondia com gente que gostava de literatura e escrevia ficção. Tinha amigos escritores, como José J. Veiga, Antonio Torres, João Antonio, Wally Salomão... No Espírito Santo, eu andava com Fernando Tatagiba, Sebastião Lyrio, Francisco Grijó, Reinaldo Santos Neves e outros queridos, A gente conversava nos bares, trocava livros emprestados, comentava publicações e autores prediletos, falava sobre nossos contos que começavam a aparecer em revistas literárias nacionais, como a “Ficção” e a “Escrita”. As idades variavam. Mas nós nos entendíamos e nos amávamos como criaturas de uma mesma tribo. E todos nós sonhávamos que algum dia seríamos lidos e reconhecidos como escritores profissionais.
4 – Como você enxerga a atual literatura brasileira e a literatura da América Latina?
Resposta: A literatura é uma Instituição Cultural. E, como tal, está sujeita aos rituais de confirmação, permanência e mudanças. Existe uma camada sedimentada pela tradição e, sobre ela, se apoiam novas e sucessivas camadas de escrituras, moldadas e modificadas por aquilo que os franceses chamam “l’air du temps”. Mas a literatura, na sua essência fundamental, é uma coisa fantasiosa, enganadora e livre. Assim, nesse circuito nervoso e repetitivo, é possível falar em “literaturas”, no plural. E as múltiplas as formas que essas literaturas tomam atualmente, no Brasil, na América Latina e no mundo, nada mais são que a constatação de que um escritor está sempre ligado a outros escritores. Não apenas àqueles que o precederam, como também aos contemporâneos, aos que o rodeiam. Um exemplo disso é ver como o chamado “realismo mágico” , que causou tanto furor à época dos romances de Gabriel Garcia Marques, Júlio Cortázar, Jorge Luis Borges, Arturo Uslar Pietri, Alejo Carpentier e outros escritores hispano-americanos, e que se desdobrou, no Brasil, nas obras personalíssimas de José J. Veiga e Murilo Rubião, continua a impregnar as páginas de nossos autores mais recentes. É certo que isso se faz de modo assimilativo, diluído e sem a intenção de citar ou copiar. Gosto de pensar que existem “linhagens” as que, queiram ou não, os escritores estão filiados.
5 – O livro “Tormentos ocasionais” (Companhia da Letras, 1998) conta uma história de amor incomum. Conte-nos sobre esta grande obra.
Resposta: “Tormentos ocasionais” é aquilo que nem sei se pode ser considerado um romance, no sentido clássico do termo. É um amontoado de formas escritas que tentam inutilmente dar corpo à memória da personagem que, afinal, se confunde com a memória da própria escritura. Por isso, a história que é contada no livro se faz como uma coisa em pedaços, toda em fragmentos, bem fugidia. Na verdade, é essa inconstância memorial que vai deixando marcas amorosas no texto. Reconheço que não é um livro fácil de ler. Porém, ele tem me dado muitas alegrias, pois os poucos leitores que se aventuram por suas páginas e conseguem entrar naquele labirinto perverso de linguagem têm me dado um retorno mais que comovido.
6 – Você escreveu contos, poesias, romances, novelas, e é autora de ensaios sobre o cinema de Pedro Almodóvar, Luiz Buñuel e Júlio Bressane. Você prefere um único gênero ou é aberta a várias possibilidades?
Resposta: Vou parodiar Milton Nascimento e Caetano Veloso: qualquer maneira de escrever vale a pena, desde que se escreva com profissionalismo e com imaginação.
7 – Você especializou-se em cinema e fez pós-doutorado na Sorbonne, em Paris. Como se deu o interesse de lecionar literatura e cinema?
Resposta: Essas duas esferas criativas, literatura e cinema, estão ligadas em meu pensamento. Embora cada uma delas seja autônoma e irredutível em sua condição artística. Tenho mesmo um livro sobre isso. Chama-se “A nave extraviada”. Nele, tento tratar paralelas (que nunca se encontram no horizonte) sobre a obra do cineasta Júlio Bressane e do escritor Machado de Assis. E penso que o cinema me atrai primordialmente pela fascinante possibilidade que ele tem de representar o movimento, ou seja, de registrar o sopro da vida, em oposição à imobilidade da morte. Mas é a literatura que é o sal de minha existência! Muito mais que ensinar e estudar literatura, eu não posso nem mesmo respirar e nem viver sem ela.
8 – Você já lecionou na Escola de Comunicações e Artes da USP e nos últimos anos, passou a se dedicar à pesquisa do cinema rejeitado pela academia e pela crítica. Como se deu essa pesquisa?
Resposta: Pois é. Não é que eu tenha aberto mão do cinema reconhecido pelos críticos e pela academia. Continuo a amar e a estudar Greenaway, Godard, Almodóvar, Fellini, Agnes Varda e todos esses realizadores geniais. Porém, tenho um espírito irrequieto e fiquei encantada quando descobri esse “outro cinema” que congrega filmes quase invisíveis aos olhos dos estudiosos, críticos e pesquisadores. Trata-se de um “paracinema” que nunca estava em jogo quando se tratava de reuniões e congressos de especialistas acadêmicos. Sou sócia fundadora e atualmente sou conselheira científica da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual - Socine. E, em nossos encontros anuais, comecei a observar que existia um esquecimento e, por vezes, um certo menosprezo por esse tipo de cinema que corre de modo subterrâneo por circuitos muito específicos de produção, realização e distribuição. Criei o termo, juntei-me a mais sete pesquisadores doutores que consegui entusiasmar com a ideia e fundamos um grupo de estudos sobre “Cinema de Bordas”. O grupo já publicou dois livros e capítulos de livros e artigos sobre o assunto. E vem organizando Mostras concorridíssimas de filmes de bordas, como a do Itaú Cultural e outras que fazemos em Universidades pelo país afora.
9 – Você chamou de “Cinema de Bordas” essa produção brasileira de ficção, que é feita independentemente, com baixo orçamento, que não chega ao circuito comercial e mantém uma relação muito forte com o cinema de gêneros, aproveitando-se de estética e situações para reproduzir em seu cinema e assim criar um novo produto. Fale-nos acerca do “Cinema de Bordas”.
Resposta: É um prazer falar sobre “Cinema de Bordas”. Além dos dados já constantes da pergunta acima, ele existe de norte a sul do país. Prova disso é o imenso número de filmes que temos em nosso acervo. E sei que ainda há muito o que buscar por esse interior brasileiro. A cinematografia das bordas está perpassada por três ondas. A primeira origina-se em realizadores autodidatas que vêm do uso das primeiras câmeras VHS e que fizeram filmes em torno de histórias e lendas de sua comunidade. A segunda localiza-se na geração que viveu a época dos fanzines e que trocava desenhos e filmes e atividades com temas e imagens comuns à cena underground, a terceira decorre de cinéfilos apaixonados por filmes de gênero antigos e que têm acesso às novíssimas câmeras e processos digitais que permitem que cada um faça seu próprio cinema.
10 – Você já foi secretária de cultura do nosso estado, mas, hoje, como entende o nosso cenário cultural?
Resposta: Sempre houve, mas agora parece estar havendo uma evidência melhor na conscientização da necessidade de valorizar os produtos culturais feitos por capixabas e pô-los em circulação no mercado, tanto interno quanto externo. Essa evolução faz parte da própria evolução sociocultural e econômica de nosso estado. Falta-nos ainda, talvez, um melhor discernimento quanto à qualificação e distinção de produtos, o que não chega a ser catastrófico no cenário da inevitável acomodação dos bens culturais. Sobretudo, porque todas as manifestações da nossa cultura são válidas. Ou seja, temos manifestações culturais para todos os gostos e gastos. O que é prova de maturidade e aceitação. Já quanto à distribuição de recursos públicos para auxiliar essas manifestações, o que não é válido, em nenhum estado do Brasil, é a constante apropriação e agraciamento por parte de alguns sempre presentes na distribuição de benesses, em detrimento de outros.
11 – Você tem trabalhos publicados em revistas e jornais de todo o país (escreve crônicas pro jornal A Gazeta), mas o que podemos esperar para o futuro? Quais são os planos de Bernadette Lyra para 2012?
Resposta: Em 2012, espero publicar meu romance “A Capitoa” em que trato de dona Luísa Grinalda (ou Grimaldi, ou Grinaldi), uma mulher do século XVI, que foi a terceira donatária da capitania do Espírito Santo. Aviso aos navegantes: não é um romance histórico. Não tenho o talento do querido escritor Luis Guilherme Santos Neves para isso! Na verdade, trata-se mais de uma brincadeira com a História. Mas, como não há nada mais sério de que uma brincadeira, o livro é uma narrativa sobre o universo feminino desde os mais longínquos tempos da história das mulheres em nosso Estado. Faz parte de uma trilogia que comecei com “A panelinha de breu”, sobre Maria Ortiz, que viveu no século XVII, e pretendo dar continuidade com a história de uma escrava que conhecia o ritual banto da cabula e viveu no século XVIII, lá no sapê do norte, em Conceição da Barra. Como sempre, mulheres, mulheres e mulheres. Quase nada se sabe sobre elas. E à falta de dados históricos, eu as trago envolvidas em muita fantasia e imaginação.
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