Novo trabalho do ator paulistano Vinícius Piedade questiona algo muito difícil para os dias de hoje: a verdadeira noção de identidade.
Responda rápido, caro leitor: quem é você? Um médico, um advogado, um professor? Fulano, cicrano ou beltrano? A pergunta, aparentemente simples, suscita um sem-número de respostas, sobretudo nos dias de hoje, em que o ser anda cada vez mais comprimido pelo consumo. Tantos são os apelos que muitos de nós (senão todos) nos perdemos no frêmito de satisfazer nossos desejos. E é exatamente este o mote da peça “Identidade”, monólogo do jovem ator paulistano Vinícius Piedade, que esteve recentemente em cartaz em Vitória, cidade de estreia da turnê nacional do espetáculo.
A peça gira em torno de Rogério Marques do Oliveira, publicitário. Ele tem 38 anos, é casado com Raquel, tem uma filha de quatro anos chamada Michele. É paulistano, corintiano e sabe de cor o número de seu RG, CPF, senha do banco, do cartão, do e-mail... Tudo isso faria de Rogério um homem “normal”, a não ser por um simples motivo: lá pelas tantas, tentando recuperar a mala da esteira do aeroporto, ele é acometido por uma súbita amnésia, que o faz questionar a sua identidade; mas não aquela estampada na carteira. Trata-se da verdadeira identidade, aquela que vem da essência perdida de cada um de nós; O enredo é, simplesmente, isso: a busca de Rogério pelo seu verdadeiro eu.
Questão antiga essa do ser: permeia dos gregos ao cogito cartesiano, até Sartre, com sua filosofia existencialista; também está nas próprias referências teatrais, como Hamlet, de Shakespeare, que indaga “ser ou não ser”; E é aí que a dramaturgia de Vinícius Piedade foi muito feliz ao eleger, como personagem principal, um publicitário. Navegando pelo simbólico, a peça nos remete a um profissional que tem como objetivo criar desejo, a serviço do mercado; e, se Nietzsche vaticinou “a morte de Deus”, esse foi substituído pelo consumo. Tanto que Rogério Marques, do alto de sua “amnésia existencial” está bolando uma campanha para um sabão em pó, ironicamente chamada “Identidade”, em que os personagens estão sempre se unindo em função do produto, como se fossem comprar felicidade em gôndolas.
É então que, lá pelas tantas, Marques sai em busca de seu passado, como seria de se esperar, atrás de alguns amigos de infância; e, como se não houvesse saída, de decepção em decepção, ele descobre que um se torna um ocupado executivo, outro, um pastor de igreja, outro, um playboy viciado em orgias e o último, falecido. Apenas um amigo não é encontrado, perdido, talvez, na mesma teia que enredou o publicitário. E tudo remete, mais uma vez, a uma metáfora da contemporaneidade: o trabalho, a religião, o sexo, a morte e o vazio. Todas as instâncias que oprimem o homem de hoje à obrigação do sucesso, da felicidade, da família perfeita, tudo up for sale, podendo, aparentemente – e mais uma vez – se adquirido em supermercados.
Engana-se, no entanto, quem achar ser a peça difícil demais, cerebrina demais. Vinícius Piedade entrecorta o texto com falas em que o espectador é convidado a participar, opinando na campanha publicitária, por exemplo. O texto tem piadas aqui e ali e até um jogo de “certo ou errado” textual, numa prova de que nada é o que parece ser – e que faz todos rirmos juntos. A linguagem é simples, comum, sem rebuscamento; e não há cenário, mas um interessante jogo de luzes e apenas uma cândida cadeira, que roda com Vinícius para todos os lados, no afã de preencher os espaços vazios, tudo remetendo ao estilo ao ator, num vigoroso trabalho de corpo que vem desde a peça “Cárcere”, outro sucesso apresentado em terras capixabas.
O espetáculo acaba do mesmo jeito que começou: no aeroporto, como numa espécie de “ciclo de Oroborus”. Estaríamos nós condenados à busca da “Identidade”? Numa era de “modernidade líquida”, como diria Zygmunt Bauman, é impossível não se deixar de ver em Rogério Marques de Oliveira. Ele é a metáfora desse nosso tempo louco, em que todos trocamos os templos pelas academias, o conhecimento pelo consumo, o ser pelo ter. Ele é o espelho do homem desfragmentado, perdido, lutando em tentar colar seus próprios cacos, numa era em que perdemos todos os referenciais. Por fim, fica o pergunta: será que Rogério sonhou tudo aquilo ou sua amnésia nos tapeou? Não dá para saber... é tudo um emaranhado de questões sem respostas. Como as dele, em busca da essência perdida. Peça recomendável, certamente.
(Texto do escritor Anaximandro Amorim)
Anaximandro Amorim (1978) é escritor, advogado, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e pós-graduado em Direito pela Escola da Magistratura do Trabalho da 17ª Região (EMATRA - 17ª Região). Membro da Associação dos Professores de Francês do Estado do Espírito Santo (APFES), do Conselho Estadual de Cultura, da Academia Espírito-Santense de Letras e da Academia de Letras Humberto de Campos, de Vila Velha/ES.
Muito bom! Deu até tristeza por não ter assistido a peça.
ResponderExcluirA ideia da peça é excelente. A ideia, porque a peça não convenceu. O ator mantém do início ao fim o mesmo tom, de modo que, uníssono, não permite emoção ao personagem. Senti falta de verdade no texto e na performance do ator, que parece estar fora daquilo que fala; parece não sentir a angústia que texto - um pouco clichê - pretende. Ériton Berçaco
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