sábado, 16 de junho de 2012

LICENÇA PARA CONTAR: SANDRO BAHIENSE


Sandro Bahiense é professor, bibliotecário e amante das coisas que envolvam escrita. Lançou em 2008, em parceria de Ricardo Salvalaio e de mais 7 colegas poetas, a coletânia de poesias "8 Vezes Poeta", trabalho em que pôde expor um pouco de seus sentimentos e arte. Ficou conhecido entre os colegas da UFES por fazer uma crônica para cada um deles. Além de crônica e poesia, Sandro também escreve artigos de opinião, contos e máximas. Tais trabalhos podem ser vistos em seu próprio blog cujo endereço é http://sandrobahiense.blogspot.com/. Sandro trabalha também, claro, neste blog como um dos colunistas. Confira, abaixo, o conto intitulado "A rosa de Nina":

A ROSA DE NINA

Nina tem 12 anos e trabalha numa carvoaria junto a seu pai Valdomir, seus irmãos, Tito, Ciço, Lico e Téia e sua mãe Vicentina. Enquanto seu pai trabalha na extração – ilegal – da madeira matéria-prima do carvão, Nina e seus irmãos ficam nos “albergues” espécies de iglus feitas de pau a pique cortando, à mão, os grandes pedaços de carvão em pedaços menores. Sua mãe, por sua vez, trabalha no transporte interno da madeira já queimada. As mulheres, em um estranho trabalho de mão-de-obra, amaram as grandes madeiras junto ao corpo amarrados por uma forte costura em seus vestidos que dão suporte ao transporte do material. As mais velhas, por sua vez, carregam enormes bacias em cima de suas cabeças com os pedaços já cortados de carvão, pronto para serem colocados em sacos de plástico trançado para irem para as grandes siderúrgicas.

A carvoaria se localiza no interior do Pará em um pequeno povoado próximo a Carajás e vende o carvão vegetal a uma siderúrgica na Amazônia Ocidental. As condições sub-humanas a qual ela existe são “esquecidas” por um corrupto governo municipal que faz vista grossa às más condições de trabalho em troca de uma porcentagem do polpudo lucro que a carvoaria recebe. Nina, seu pai, sua mãe e seus irmãos trabalham cerca de doze horas por dia, desde o nascimento do sol até o seu por, no escaldante calor paraense.

Nina não sabe ler e nem escrever e por vezes acredita que tenha nascido e se criado unicamente na carvoaria e seus arredores (os pais dela chegaram à carvoaria quando ela tinha quatro anos). A garota pegou malária duas vezes e viu seu irmão Josué morrer vítima da doença. Ela se lembra, vagamente, do velório de Josué, coisa rápida, uma reza, antes de levarem o corpo do menino, numa carroça, para local desconhecido. Agora, tempos depois (Nina não tem precisão e nem contagem de tempo) parece que Josué sequer existiu. Nesses anos a menina perdeu as contas do quanto de pessoas viu morrer, e de quantos ela viu partir e chegar. Suas mãos, calejadas pela lida, tentavam afagar sua mãe, vitimada pelo excesso de trabalho e dar abrigo a seus irmãos que não sabe se estão mais alienados ou absortos pela tristeza. Seu pai, toda a noite, geme uma dor nas costas que parece incurável apesar de todas as doses de cachaça que toma a fim de curá-la. A bebida só serve para o sertanejo agredir sua mãe, a seus irmãos e principalmente a ela que, ela não sabe por que, tem sido sua principal vítima nos últimos tempos. Nina não sabe explicar como, mas sente que a cada dia que passa, a cada agressão cometida, quem mais sofre é o próprio pai, incapaz de mudar um panorama em que está terrivelmente enquadrado (as dívidas na quitanda da própria carvoaria sempre são maiores do que o dinheiro retirado na lida).

Todos ficam presos ao local e não vão à cidade sob hipótese nenhuma. Contudo, em uma única ocasião, Nina foi a Brejetuba, um bairro próximo à carvoaria, escondida numa caçamba numa das poucas traquinagens que fez em toda sua vida. Foi acompanhada do amigo Mano Lúcio um menino que desde muito jovem já trabalhava junto aos adultos na extração da madeira. Foi dele a dica do dia que a caçamba iria à cidade e o melhor local para Nina se esconder. A menina, tomada pelo medo, pouco viu, pois passou praticamente todo o tempo debaixo da grossa lona. Numa das poucas vezes que pôs a pequenina cabeça para fora viu uma espécie de revisteiro e, neste, um livro cuja capa tinha uma linda rosa vermelha desenhada. Nunca mais se esqueceu daquela capa e daquela rosa. A cada pedaço de carvão cortado, a cada cintada tomada pelo pai, a cada male da vida, Nina “pagava” lembrando-se daquela rosa, da visão mais linda que já tinha visto até hoje. Por vezes inventava estórias sempre tendo a rosa como tema central e fugia da realidade através daquela imagem.

Certo dia aproveitando da bebedeira dos homens por causa do dia de São Roque, Mano Lúcio conseguiu uma brecha para conversar com Nina. O rapaz, que tinha cerca de dezessete anos, fez uma proposta à garota. Propô-la casamento. Disse que já havia conversado com seu pai sobre o assunto, mas que o homem tinha negado veementemente (Nina logo suspeitou que este talvez fosse o motivo das constantes surras) e, que não havendo solução, a única chance era fugindo da carvoaria. A menina percebeu o bafo de bebida que o jovem bebera para tomar coragem e achou que era tonteria de menino “bebido” e fez pouco caso. Sorriu e lhe disse para parar de bobagens e que o máximo que iria conseguir com aquilo tudo era tomar uma senhora surra de cinta. Decidido Mano Lúcio disse que daria o que Nina quisesse e perguntou o que ela mais queria na vida. A imagem da rosa lhe veio imediatamente à cabeça e a garota não hesitou em responder que seria a tal flor tentando explicar como ela era. Sem também saber o que era uma rosa, Mano Lúcio, jurou que ela teria uma, uma não, um montão assim (espalmou as mãos em sinal que seriam muitas – Mano também não sabia Matemática) se fugisse com ele. Nina se imaginou em um lugar cheio de rosas por toda a parte e, comovida, disse a ele que iria pensar.

Ela não tirou a proposta da cabeça, mas pela distância que ambos ficavam, sequer teve a oportunidade de lhe responder. Até que um dia uma grande tempestade veio, pondo em alerta a todos na região da carvoaria (as casas, ordinárias, corriam risco de desabar por causa do temporal). No meio do corre-corre uma mão tapou os lábios de Nina e a puxou com toda a força. De costas para quem a estava segurando a menina foi arrastada para fora de casa, rumo a um matagal à margem da carvoaria. Num solavanco a pessoa que a segurava virou-a, em tamanha velocidade, que não houve nem oportunidade da menina gritar. Quando virou, Nina percebeu que era Mano Lúcio. O menino olhou-a com olhos arregalados de medo, tensão e adrenalina e soltou as mãos de sua boca. Ele disse que se ela quisesse a hora de fugir era aquela e a fez a última proposta. Nina não respondeu. Contudo com o aumento dos trovões Mano Lúcio a segurou pelas mãos e começou a correr desesperadamente em caminho contrário a carvoaria. Andaram muito mata adentro, por horas. Não trocaram uma palavra no caminho. Pararam para descansar em baixo de uma grande folha que parecia ser de uma bananeira e tomaram a água que escorria dela. Viram o céu abrir e sentiram o frescor pós-tempestade. Com frio por causa da roupa molhada Nina foi abraçada e aquecida por Mano Lúcio e sentiu pela primeira vez o que era amor e carinho. Mano e Nina chegaram a Brejetuba e a menina novamente viu o livro, o mesmo livro, com a rosa na capa. Tomou-o em suas mãos, tocou-o. O desenho, em auto relevo, fascinava Nina e a fez sentir algo que nunca sentira na vida, um misto de amor, ternura, coragem e consolo. Todos os sentimentos juntos, num mesmo momento, num mesmo toque. Eis que de repente foi agarrada com força. Era seu pai e vários homens que foram à caça deles. Viu de relance Mano sendo agredido a socos e pontapés, enquanto era “escoltada” de volta a picape puxada pelos cabelos. Ao voltar à carvoaria tomou uma grande surra. Perdeu seis dentes, teve afundamento dos ossos da bochecha e quebrou a perna esquerda e um dedo. Quase morreu por causa dos ferimentos, mas viveu, pois queria sentir aquela rosa, aquela coisa, aquele momento impar de novo.

Ficou na carvoaria por cerca de mais dois anos até que o governo, em uma campanha de combate ao trabalho infantil, prendeu as pessoas que mantinham aquela barbárie funcionando. Soube que seu pai morreu com um tiro no peito tentando defender as terras, mas não se importou. Levada junto com seus irmãos para Belém passou por cirurgias e salvo uma pequena cicatriz no rosto e um leve, quase imperceptível, mancar, não teve graves sequelas físicas.

Estudou e formou-se em direito, tendo como meta o combate ao trabalho infantil. Maria Angelina da Silva candidatou-se e foi à senadora mais votada do Pará chegando a Brasília de forma meteórica. Criou a Lei Josué da Silva contra o trabalho infantil no país. Dizem que por causa de sua atuação é cotada para concorrer à presidência, mas ela nem liga. Após tal lei aprovada sua maior alegria é ir pra casa, entrar biblioteca adentro, sentar-se em seu sofá e tomar em mãos o A Rosa Vermelha, sentir seu desenho em auto relevo e sonhar, sonhar, sonhar... Apesar de já ter lido mais de cem livros, alguns dos mais complexos, nunca tinha aberto aquele, mas nem precisava, pois tudo o que precisava estava ao alcance de seus dedos e criatividade de sua mente. Passaria horas ali se não fosse pelo seu marido Emanoel, aliás, Emanoel é muito formal, o Mano, e pela Rosa, sua filha, que sempre entravam porta adentro na maior bagunça. O local onde era a carvoaria agora é, a mando de Mano, um grande jardim, recheados de flores, principalmente de... Quem disse que os sonhos não podem se tornar realidade? Procure a sua rosa!

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