Nos idos de 1960, quando as pichações de Londres anunciavam "Clapton é Deus", o brilhante guitarrista inglês, na verdade, estava vivendo no inferno. Eric Clapton trocou o vício em heroína pelo álcool, passou por relacionamentos afetivos desastrosos e pensou em suicídio segurando uma garrafa de vodka em uma mão e um revólver na outra.
A divindade da guitarra há muito tempo se entregou a uma força superior. Aos 62 anos, Clapton está sóbrio há 20, é feliz no casamento e tem três filhas. Este é, sem dúvida, um ótimo momento para refletir sobre uma vida extraordinária, e é exatamente isso que faz o músico do hall da fama do rock em "Eric Clapton: Autobiografia", que foi lançada no Brasil pela editora Planeta.
Ao contrário de trabalhos desse tipo realizados por diversas estrelas do rock, este não inclui lendas Zeppelianas de tietes taradas ou textos encomendados de autores anônimos contando histórias musicais e pessoais. Clapton apresenta uma visão inexoravelmente sincera e crítica sobre sua vida, narrando a proximidade da morte e a recuperação, intercaladas com histórias de uma carreira musical inigualável.
Clapton, bebendo uma garrafa de água em uma sala da Rádio Pública Nacional antes de participar de um programa da rádio, contou que fugiu intencionalmente daquele tipo mais comum de autobiografia de celebridades.
"Para seguir aquele molde, nem saberia por onde começar", explica Clapton. "Nem sei o que aquilo significa, pra ser bem sincero. A palavra 'celebridade' perdeu qualquer que fosse seu real significado. Na verdade, tentei descobrir por mim mesmo como faria esse trabalho".
Em princípio, Clapton planejava conceder uma batelada de entrevistas sobre sua vida, deixando as tarefas de compilação e organização do livro a cargo de um colaborador. Mas uma leitura atenta da primeira versão fez com que o guitarrista sentisse vontade de se envolver mais a fundo no projeto.
"Percebi que não era o que eu queria fazer de forma nenhuma", diz Clapton. "Então reescrevi o texto e depois pensei, 'Eu mesmo vou escrever tudo'".
Robert Johnson
A inspiração de Clapton nas cordas, Robert Johnson, cantava sobre um cão monstruoso e demoníaco que surgiu em seu caminho ("Hellhound on my trail"). No caso de Clapton, havia uma matilha inteira o perseguindo, até que uma segunda passagem pela reabilitação mudou sua vida em 1987. Johnson morreu aos 27 anos, e houve um período em que Clapton teve certeza de que sua própria vida não duraria muito mais do que isso.
"Eu acreditava naquela idéia quando era jovem e tentava me identificar com esses caras", Clapton diz se referindo a Johnson e outras lendas do blues. "É o tipo de fantasia incorporada que se agrega ao vício, uma forma de justificar a necessidade que eu tinha de ficar chapado. Algo do tipo: 'É isso que os meus heróis faziam'".
Apesar de tudo, Clapton criou um legado musical indelével, passando por diversos gêneros e, ao mesmo tempo, inspirando gerações. Os títulos dos capítulos da autobiografia servem como um roteiro da vida do músico: "The Yardbirds", "Cream",
"Blind Faith", "Derek and the Dominos".
Clapton, desde o início da carreira com os Bluesbreakers, de John Mayall, rapidamente assumiu uma posição de total entrosamento no universo da música. Saía com os Beatles e os Rolling Stones, participava de jams com Muddy Waters e Duane Allman, influenciou Stevie Ray Vaughan, Derek Trucks e milhares de outros guitarristas.
Ele confessa, sem constrangimento, que não consegue se lembrar de tudo o que aconteceu.
"Minha memória dos acontecimentos do final da década de 60 até o início da década de 80 é bastante fragmentada", conta Clapton. "Escrevi aquilo que consegui me lembrar e precisei de colaborações também".
Mick Jagger
O livro de Clapton não é totalmente desprovido daquelas histórias adoradas pelos tablóides. Ele se recorda de como Mick Jagger roubou sua namorada, uma modelo italiana, provocando delírios homicidas em Clapton ao final dos anos 80.
"Eu fiquei mentalmente perturbado", recorda-se Clapton. "Queria matá-lo. Passei um bom tempo tramando maneiras de destruí-lo ou simplesmente fazê-lo desaparecer. Foi aquele tipo de fantasia insana, típica de um alcoólatra em recuperação".
Ele também mergulhou no relacionamento com Pattie Boyd, que se uniu a Clapton depois de sua separação do beatle George Harrison. O relacionamento entre os dois, que viria a ter um triste fim, fez de Pattie a musa inspiradora de algumas das canções mais famosas de Clapton, como "Layla" e "Wonderful Tonight", antes de o romantismo se transformar em amargura.
Clapton contou sobre uma ida recente, em um domingo de manhã, ao mercado perto de sua casa. Na banca, viu que os jornais ingleses haviam publicado trechos da recém lançada autobiografia de Pattie, "Wonderful Tonight". Ao pegar o jornal, foi impossível ignorar a manchete da primeira página: "O ALCOOLISMO DE ERIC CLAPTON DESTRUIU MEU CASAMENTO".
"O editor da manchete optou por me castigar com tudo", diz Clapton com uma polidez tipicamente britânica. "Estou no mercadinho do bairro e fico pensando, 'Será que os vizinhos estão me vendo ler isto?'".
Clapton recebeu seu convidado sozinho, sem aquela tropa de secretárias ou assessores de imprensa. Usa óculos e sua audição começa a ficar prejudicada. Os cabelos estão cortados bem curtos e a barba é rala. Vestindo camiseta e calça jeans, Clapton é despretensioso e acessível. Ora pensando, contemplativo, ora dando risada.
Para escrever o livro, ele consultou os diários que escrevia durante os anos 80. Os pensamentos, encaixotados no sótão durante anos, reavivaram memórias dolorosas. Clapton se lembrou que escrevia os diários com a caneta em uma mão e a bebida na outra.
"Eu tinha delírios de grandeza", diz ele com uma risada de autocensura. "Eu pensava que tinha algo de importante a dizer. É disso que a bebida era capaz: ela me dava uma idéia distorcida e iludida de que eu era super importante".
"Depois que eu me calibrava com a minha dose diária de álcool, ficava fácil dedicar algumas horas para escrever pensamentos ruins. Hoje em dia, acho que não ocuparia meu tempo com isso".
Tempo ocupado
Hoje em dia, na verdade, o tempo dele já está ocupado. Além da dedicação à família, Clapton continua trabalhando ativamente em prol do centro de tratamento de dependentes Crossroads, que fundou há quase uma década em Antigua. Há alguns meses, um enorme show foi organizado para arrecadação de fundos para o centro. E, embora pense em parar de se apresentar, Clapton não planeja se aposentar.
"Não posso parar com as turnês. E não vou", diz ele enfaticamente. "Acredito que eu tenho uma responsabilidade de tocar para as pessoas".
Com o passar dos anos, Clapton viu diversos amigos e colegas morrerem, de Jimi Hendrix a George Harrison, de Duane Allman a Bob Marley, de Stevie Ray Vaughan a Muddy Waters. Perguntado sobre como conseguiu sobreviver, Clapton já tinha uma resposta na manga.
"Sempre supus que, na verdade, foi porque até hoje não consegui alcançar a organização e a eficiência ideais", responde ele, gargalhando. "Talvez seja melhor não aperfeiçoar demais, porque daí sim será o momento de parar".
"Fico feliz que tenha acontecido assim. Ainda não acho que cheguei ao máximo. Ainda estou aprimorando minha música".
O que? Eric Clapton ainda está acertando os acordes?
"É", responde ele, cuja risada tomava conta da sala. "Ainda estou em busca do som perfeito".
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