Fabrício Costa, capixaba, natural de Ecoporanga, estuda Geografia na Universidade Federal do Espírito Santo e é poeta por vocação. Escreve desde menino, mas foi em 2010, aos 22 anos de idade, que publicou seu primeiro livro “O Riso que Contrasta”. Nesta obra, o autor nos presenteou com uma coletânea de poemas escritos desde os 12 anos de idade. Atualmente, Fabrício Costa trabalha em um novo projeto que deverá ser publicado em 2013. Confira, abaixo, o conto “O Nada”:
O NADA
Ele faz performances enquanto toma banho, canta até quatro a canção de Leslie Feist. Pensou em livrar-se da dor de escrever e rabiscar rascunhos de tristezas nas poças d'água do chão do banheiro. Queria gritar Hallelujah com Leonard Cohen. Queria esquecer das músicas, poesias, livros e apostilas. Queria morrer sem sentir dor, mas, antes, queria acabar com todas as dores. Ele era jovem e descobrira cedo que viver era breve, queria entender tudo, mas descobrira também que não existem respostas para dúvidas e que dúvidas existirão mesmo quando houver certeza de que algo é certo ou errado. Ele queria praticar a teoria, mas esqueceu de aprender que a prática deve ser sempre teorizada. Quando pensou no pensar, descobriu que pensar é impossível e que jamais alguém havia dito ao menos porque tal palavra foi concebida. Seus questionamentos esbarravam em paredes de azulejos que, também, não sabiam por que haviam sido feitos.
Queria ser diferente, mas viu que não haveria mudança. Em meio a destemperos e paranóias, descobriu que nunca haviam descoberto nada, descobriu que mentiram quando disseram que na vida é feliz quem vive, descobriu depois que na vida só vive quem tem a sorte de pensar que vive, de pensar que a palavra pensar existe. Pensou que um dia tudo seria diferente e quis fazê-lo naquele momento, antes que suas pernas congelassem nas águas frias que desciam de um chuveiro que também não sabia por que o banhava, quis perguntar-se sobre tudo e lembrou-se que um dia pensou que tudo não existia. Conformou-se. O pobre jovem choroso se recusava a derramar suas lágrimas, pois sabia que lágrimas não existem, lágrimas são devaneios de mentes que pensam, quando assim pensou, teve a impressão que a palavra dor deveria caracterizar o ato inexistente de pensar e que pensar deveria chamar-se dor. Pensava nas dores de quem amava e nas dores dos desconhecidos. Pensava! Por que um dia disseram que “amar se aprende amando”? Por quê? Queria emburrecer como muitos, queria massificar sua nudez e expandir sua falta de lucidez...
Daniel levantou-se do chão do banheiro e seguiu em direção à cozinha, enrolado em sua velha toalha de bichinhos, tomou quatro copos d’água, queria limpar-se por dentro. Dirigiu-se à janela e apreciou o nada por longo tempo. A realidade quase o fez acordar quando viu os ponteiros de seu relógio denunciando que as horas se passaram mais rápido que imaginava. Os dias de uma pessoa que trabalha numa metrópole são muito corridos e Daniel era metropolitano e moderno, era chefe do departamento de recursos humanos de uma média empresa de turismo. Vivia seus dias loucamente e era severo nas ordens que impunha a seus subordinados, enquanto trabalhava, raramente pensava na contradição que era sua vida. Ao dia, vivia tão intensamente para alcançar bons resultados no exercício de sua função que, durante a noite, se esquecia de viver. Suas noites eram repletas de perturbações sem fim, não havia descanso em seus absurdos pensamentos. O pequeno “caroço de arroz” (assim chamado por sua mãe, desde menino, por ser branco e pequeno), queria viver sem preocupar-se com aflições e sofrimentos, tarefa que julgava possível somente durante sua exaustiva jornada de trabalho.
Perguntava-se todas as noites o porquê de não livrar-se por completo das dores que sentia, dores não físicas, mas que por vezes, transcendiam para tal. O desconforto que sentia vinha de medos, aflições, remorsos e sentimentos de culpa. Ele era apenas um “caroço de arroz”, o que podia fazer se não se doer por tudo que julgava ruim? Pelas podridões do mundo? Pelo amor que há tempos não vinha vê-lo? Pela família distante? Pelos doentes do mundo todo? Pelos pobres? Por todos? Por tudo? Por si? O que faria? Apenas sentiria, não queria adoecer, queria estar sempre saudável, mas o medo da dor física era sempre grande e perturbador. Tinha medo, pois sabia que como os outros ele era frágil e por frágil ser, era humano e por assim ser, tinha medo. Daniel queria algo bom, algo que o fizesse parar de sofrer, algo que o fizesse parar de questionar tudo, queria demitir-se, pois era bom e estava cansado de ser tão desumano em seu trabalho, tão duro, inflexível, isso o atordoava, mas era assim por não haver escolha, era forçado a ser assim, pois também recebia ordens. O jovem homem queria algo inesperado, queria mais alegria, mais distração, queria amigos. Numa tarde de sexta-feira, sua cabeça doeu intensamente a ponto de fazê-lo pensar que o momento que tanto temia havia chegado.
Doença. Pensou em ir a um hospital, mas lhe aconselharam a descansar em casa, estava muito estressado, era evidente, aceitou que de fato seria melhor ir, e foi-se embora. Ao chegar a seu apartamento, a dor de cabeça era incontrolável, o trânsito esteve caótico naquela tarde e sua consciência pesava por não ter cumprido sua rotina. Ao abrir a porta avistou o sofá, deitou-se nele e se entregou a Morfeu. Dormiu como jamais havia dormido. Ao acordar não sentia a menor dor de cabeça, sentiu-se novo de corpo e alma. Neste momento Daniel não quis pensar em nada a não ser sobre o nada. Ele estava decidido a pensar uma mudança de rumo para sua vida, e pensou. No momento em que começou a pensar estava em transe pelas longas horas de sono que havia dormido, tinha a sensação de ter experimentado ácido lisérgico pela segunda vez.
Há muito tempo havia abandonado a normalidade da loucura, seu defeito era ser normal demais para um louco, um ex-louco. Um dia fora louco, ainda era, mas escondia, a decisão de esconder a loucura era fruto de seu conformismo. E Daniel pensou nisso, pensou o quanto era conformado com tudo e por nada, por tudo que era tão pouco, tudo que diziam muito, mas se resumia a um pequeno poema pós-moderno:
acordar
levantar
andar
comer
mijar
cagar
lavar
escovar
respirar
andar e comer
não satisfazer
ler
reler
dormir
sair
cumprimentar
despedir
chegar
pegar
pagar
despir
beijar
despedir
agarrar
esfregar
desamar e novamente dormir e acordar.
Decidiu-se, estava à beira da janela e ouviu o cuco bater pela décima segunda vez. Meia noite. Hora dos mortos, como insistia em dizer sua avó. “Boa hora” pensou. Quis conhecer o nada mais de perto e o encontrou ao chão da rua que, fazia frente a seu prédio, enquanto agonizava os últimos segundos de vida que ainda lhe restavam. Lembrou-se, antes de partir, que um dia pensou que o nada não existe para quem pensa, e deixou de pensar, perdeu-se no nada e encontrou a paz.
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