Renan de Andrade é escritor e graduado em Letras-Português pela UFES. É professor da rede particular de Vila Velha - ES. Em 2008, lançou “Cenho”, seu primeiro livro. E-mail: poetaeprofessor@gmail.com. Confira, abaixo, o conto “Do acaso”:
Do acaso
Um silêncio barulhento o cala. Pensa, trepidante, no ramo de flores que lhe retornara ao domicílio por revelia. Talvez enterrasse para sempre a ideia fixa de lua, olhos, flores e tantos clichês outros. Com um short de náilon gasto, só, nem se importou com uma lufada que rasgava Camburí
Resolveu abandonar o cheiro de mofo e de homem ausente de casa e remastigar a vida. Talvez o jeans claro, a blusa verde e o passo largo esquentassem uma manhã esquecida. Lembrava do tempo em que o pai cuspia no chão, demarcando o tempo, e sempre dizia, O cabeludo não. Homens conhecem homens
Num dia de inverno glacial, empinou o peito rubro como nos tempos em que era o melhor do pelotão. Atravessou a rua e ao tocar com a sola do pé a areia molhada da praia, alongou os braços em evidência e recompôs na memória os dias em que catavam bolinhas de minério no calçadão e planejavam endereçá-las à casa do prefeito. Presumiu um gosto de café e pão
Por serem todos canalhas, decidiu que queria dar conta da própria felicidade sem precisar de ninguém. Sabia, porém, que a fina digital de seus dedos enjoara das madeixas negras longas de seus seios. Empinou o quadril e por hora lembrou do labrador que lhe ficara como recordação, mas que ingerira pedaços de livros e discos arranhados na semana passada e se fora. Cortar o caminho do trabalho e passar em frente à clínica veterinária em que seu amigo ficara internado reconfortava-lhe. Nem todos os homens que tivera entendiam sua paixão por cães
O cachorru não, o cachorru sim, mais num tem mais queroseni, mais a genti arruma, arruma nada, na cidadi tá em falta, mas u cachorru não homi, fomi eu aguentu muié, mas friu não, a Maria e o Zé da Carroça tavam tratandu dos carrapatu deli pur isso molharam o pêlu du coitadu cum queroseni, eli tá até gordim, ta mais até qui a genti muié um pêlu grossu dessi misturadu com aqueli restu de papelãu vai isquentar a genti pur um tempu, lá vai, cadê u fósfuru, faisso não homi vai fedê a marquisi toda, lá vai...
Em contraste com o acre gosto que lhe tomava a boca, jogou a bolinha de minério no mar e disse a si mesmo que pão com café e leite são todos iguais por onde vão. Rumou à padaria que ficava do outro lado, mas sentiu um grito fétido e um mau cheiro barulhento no ar e no rosto de uma mulher que tentava salvar um cachorro em chamas da mão de dois mendigos.
Exceto aquele que salvou um cão em chamas e se tornou o seu homem daquele dia até então.
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