domingo, 30 de setembro de 2012

ENTREVISTA - MARCELO RUBENS PAIVA


Neste domingo o Outros 300 prepara uma nova surpresa para seus leitores. A partir de hoje e pelos próximos sete domingos estaremos apresentando algumas entrevistas com as maiores personalidades da cultura nacional dadas ao programa Roda Viva da TV Cultura.Começamos hoje com o sensacional Marcelo Rubens Paiva (primeira parte). Confira a entrevista abaixo:

Entrevista de 8/12/1997
O jornalista e escritor fala sobre suas experiências da adolescência, a influência do pai e como constrói seus livros


Heródoto Barbeiro: Boa noite! Ele está relançando um livro que o tornou conhecido e admirado por sua própria história e pela história de sua geração. No centro do Roda Viva esta noite, o escritor Marcelo Rubens Paiva.

[Comentarista]: Marcelo Rubens Paiva tem 38 anos e desde os 23 é conhecido em todo país. Foi com essa idade que ele lançou o livro Feliz ano velho, que em seis meses vendeu 45 mil exemplares. Virou peça de teatro encenada no país inteiro e abriu caminho para que ele fizesse uma série de outros trabalhos como a apresentação do programa Fanzine, da Rede Cultura, no começo dos anos 1990. Feliz ano velho conta a sua própria história com alguns vôos da imaginação, é claro. Marcelo lembra no livro o acidente que sofreu três anos antes, em 1979, quando ao mergulhar numa lagoa rasa em Campinas, interior de São Paulo, fraturou a quinta vértebra e a medula, ficando paralítico da cintura para baixo. Paralelamente, fala da juventude, seus anseios e questionamentos numa linguagem coloquial. Mas, se Feliz ano velho é ainda a principal referência de Marcelo Rubens Paiva, com certeza não é a única. Ele escreveu outros livros de sucesso, como Blecaute, em 1986, Ua:Brari, em 1990, Bala na agulha, em 1992, As fêmeas, em 1994 e Não é tu, Brasil, em 1996 sobre a guerrilha do Vale do Ribeira em São Paulo. Também já escreveu peças de teatro e trabalhou como colaborador nas revistas Veja, Brasil Extra e do jornal Folha de S. Paulo.

Heródoto Barbeiro: Bem, para entrevistar o escritor Marcelo Rubens Paiva, nós convidamos a editora de comportamento da revista Isto É, Marta Góes; o ator Paulo Betti; o diretor do diário esportivo Lance, Leão Serva; Soninha, VJ da MTV; a jornalista Neide Duarte; o diretor de jornalismo da CNT, Ricardo Kotscho; o deputado federal do Partido Verde, Fernando Gabeira; e o jornalista e apresentador do SBT Serginho Groisman. O Roda Viva é transmitido em rede nacional para todos os estados brasileiros. Marcelo, boa noite.

Marcelo Rubens Paiva: Boa noite.

Heródoto Barbeiro: Marcelo, inicialmente eu gostaria que você contasse para os nossos telespectadores qual é a diferença entre o Brasil de quinze anos atrás quando você lançou o seu livro, de tão grande sucesso, pela primeira vez, e o Brasil de hoje, quando você lança pela segunda vez, agora em caráter nacional, novamente o seu livro Feliz ano velho?

Marcelo Rubens Paiva: Bom, essa pergunta é difícil de responder porque o Brasil mudou muito, né? Algumas coisas mudaram e outras coisas não mudaram nada. Mas o que mudou muito é a rotina das pessoas, porque na minha época havia cinco canais de televisão, não havia videocassete, não havia TV a cabo, não havia internet, não havia fax, então, as pessoas tinham uma rotina dentro de casa bem diferente de hoje. Elas liam mais. A comunicação entre amigos era difícil, não havia pager, não havia telefone celular, as pessoas iam mais ao teatro e talvez fossem mais ao cinema e, basicamente, o Brasil vivia momentos de bastante euforia porque 1982 era uma época em que estava se fazendo a transição política entre o regime autoritário e o regime democrático. A censura tinha sido abolida há uns três, quatro anos antes, os exilados tinham retornado ao país, muitos livros começaram a sair para narrar um pouco os bastidores da época do regime militar. Primeiro foram os livros do pessoal que combateu o regime e depois foram livros de pessoas que viveram no país e que eram taxadas de uma... a geração AI-5, a geração Coca-Cola e que procuravam mostrar que, apesar da censura, apesar do regime autoritário, não tinha sido uma década perdida. As pessoas que estavam aqui, estavam pensando e repensando no Brasil e eu lembro que quando eu publiquei o livro era o primeiro livro, assim, de um jovem que falava de uma rotina de uma juventude e que não necessariamente foi a juventude de 1968, a juventude que optou entre a luta armada ou os chamados “desbundados”. Mas sim uma juventude que tinha feito parte de um processo de reconstrução do país, inclusive uma juventude que ajudou a reconstruir o PT, aliás, a construir o PT, o ano que eu lancei o livro, foi o ano que o PT foi fundado, e uma juventude que estava assim muito curiosa, porque já que se abriu, então, havia agora um leque de ideologias a serem escolhidas. Então, saiu livros como O que é anarquismo, O que é comunismo, O que é ideologia. O livro da Marilena Chauí [(1941-) filósofa. Refere-se ao livro O que é ideologia] foi o que mais vendia nessa coleção, e começaram as bienais de livros, uma multidão de pessoas. Hoje não, hoje eu acho que há uma descrença muito grande nos ideais, perdeu-se um pouco o rumo das utopias e as pessoas, elas não têm mais tanto tempo disponível, tanto lazer fora de casa do que dentro de casa. As pessoas estão se prendendo mais dentro de casa, com medo da violência e com a facilidade que tem de você estar dentro de casa e estar em conexão com o que está acontecendo no mundo todo.

Leão Serva: Marcelo, você ao mesmo tempo nesse período, digamos, um pedaço do mundo que você participava tomou poder no Brasil, quer dizer, o amigo do seu pai é presidente da República e provavelmente, enfim, boa parte do mundo de que você saiu, tomou o poder. O que significou isso, quer dizer, você se sente em casa hoje quando você projeta o poder no Brasil ou não?       

Marcelo Rubens Paiva: Não, eu sinto que os amigos do meu pai, esse grupo, eles não estão muito representando aquilo que eles representavam tempos atrás, quer dizer, eles estão procurando uma síntese. Eu sempre me pergunto o que meu pai estaria fazendo se estivesse vivo. Que partido, por exemplo, meu pai estaria. Ele esteve no PSB, depois no PTB, aí foi cassado em 1964, aí com os direitos cassados ele não exerceu nenhum tipo de atividade política concretamente. Em 1971 ele foi preso, assim como muito dos seus amigos, ou exilados. Na redemocratização eles estiveram no poder, eles foram ministros, eles foram presidentes, o Fernando Henrique era da roda de pôquer do meu pai, o Paulo Francis [1930-1997; jornalista], o Antonio Calado [1917-1997; jornalista e romancista], o Valdir Pires [1926; político. Filiado ao PDT. Foi ministro da Defesa no segundo mandato de Lula], umas pessoas muito diferentes. E eu fico me perguntando, será que meu pai estaria com um projeto nacionalista que ele tinha, que é um projeto até parecido com o MDB, mais parecido com o PMDB do que com o PSDB? Será que ele ainda defenderia, por exemplo, a indústria nacional? Ele lutou na juventude dele pela Petrobras, será que ele ainda seria contra? Eu procuro assim meio que transferir um pouco assim a figura do meu pai nos vários amigos que ele tinha e que estão aí até hoje. Estão alguns no poder e procuro ver assim o que provavelmente seria a cara dele de hoje. Mas cada amigo dele faz uma coisa completamente diferente, tem um ideal completamente diferente.

Neide Duarte: Marcelo, você sente que você tinha obrigação de escrever um livro como este Não és tu, Brasil por causa da história do seu pai e tudo isso?

Marcelo Rubens Paiva: Com certeza, porque é incrível, eu queria escrever um livro sobre a minha infância numa fazenda com uma família nos anos 1970, em que apesar do meu pai ser uma pessoa que se engajou nos anos 1970, o resto da minha família inteira não se engajou. O meu avô, por exemplo, ele era prefeito da Arena na região, eu tenho tios de direita. Tenho tios de esquerda e tenho tios de direita. Então, eu queria retratar um pouco o que era uma família alienada vivendo numa região, a fazenda de Eldorado Paulista, quando de repente passou um grupo guerrilheiro do Lamarca. E isso aconteceu com a minha família, apesar de meu  pai não estar nem um pouco envolvido, foi uma coincidência. E isso sempre esteve na mitologia da minha família e dessa fazenda, dessa cidade, a figura estranha do capitão Carlos Lamarca [1937-1971; militar (desertor) e guerrilheiro comunista. Foi integrante da Vanguarda Popular Revolucionária, juntamente com Carlos Marighella, um dos principais opositores armados à ditadura militar no país] que combateu com mais seis ou sete guerrilheiros as forças da região. Porque o exército tinha se retirado um dia antes, quer dizer, o acampamento foi descoberto nas montanhas da Serra do Tatá. Aí o exercito cercou, não achou ninguém. Quer dizer, acharam dois, mas não achou o resto, acharam que eles já estivessem fugidos. E os guerrilheiros ficaram mais um mês, um mês e meio dentro da mata. Aí eles perceberam que as tropas haviam se retirado e saíram da mata. E saíram da mata a quilômetros da minha fazenda, e aí começou uma epopéia de traições, de não-traições, com o pessoal da região, alguns ajudavam, outros traíam. Como o exército tinha se retirado quem ficou foi a força pública que eram pessoas da cidade, soldados da antiga PM da cidade.
 
Marta Góes: Marcelo, eu queria te perguntar um pouco sobre... voltar um pouquinho ao Feliz ano velho, eu queria saber que importância ele tem hoje para você, para você relançar.

Marcelo Rubens Paiva: Olha, eu fiz um relançamento muito engraçado no Ática Shopping. Tinha uma fila de duzentos e cinqüenta garotos e garotas de quinze anos de idade vestidos de hippies com o mesmo jeito que eu me vestia há quinze, vinte anos atrás. Eu acho que a leitura do livro hoje é outra, não é mais a leitura de se ver o que a geração naquela época estava vivendo, né? Sob o regime de censura, o regime autoritário. A leitura de hoje é que a geração faz a procura de alguma coisa, ou que um jovem faz a procura da explicação para a sua vida, da explicação para os seus dramas, de como superar eles, entendeu? De como se relacionar com outro jovem e isso está vivo até hoje, é um livro que é adotado até hoje em muitas escolas, faculdades, inclusive ele é um dos meus livros que mais vende até hoje nos balanços que a editora me manda.

Marta Góes: E foi isso que ele te proporcionou, esse livro? 

Marcelo Rubens Paiva: Eu acho que fundamental o que ele me proporcionou. E foi, acho, inclusive essa a intenção quando o escrevi. Foi uma carta de apresentação de um garoto deficiente. Eu lembro que eu saia na rua, e eu tinha vontade... as pessoas me olhavam, eu tinha vontade de explicar para essas pessoas qual era o meu problema e o que eu queria, o que eu esperava delas, das pessoas, entendeu? E quando eu estava me reabilitando, eu estava escrevendo muito para o Caio Graco [1931; jornalista], para um jornal que ele tinha, chamava-se Ler Livros, e escrevendo contos. E ele leu alguns contos e me sugeriu: escreve um livro sobre isso que está te acontecendo. Na hora eu fiquei em dúvida, porque achei que era um drama muito particular, muito pessoal. Nem todo mundo fica paraplégico, nem todo mundo vive as mesmas coisas que eu vivi. Mas, por outro lado, eu achei que eu precisava levantar esse tema, discutir esse tema no Brasil. Porque, até então, a imagem que se tinha era sempre aquela imagem do histérico que está numa cadeira de rodas que vê uma cobra e sai andando, que era o caso das novelas. E eu queria mostrar que havia um grupo enorme de pessoas, que foram as pessoas que eu conheci, em clínicas de reabilitação, em hospital.

Fernando Gabeira: Há ainda

Marcelo Rubens Paiva: Oi?

Fernando Gabeira: Há ainda.

Marcelo Rubens Paiva: Há ainda, aliás, está aumentando isso, devido à violência urbana, devido à imprudência no trânsito. E que essas pessoas tinham uma felicidade, um bom humor que precisava ser mostrado afora e que eu continuava com o meu bom humor. Os meus amigos que me conheceram de antes e depois, sabem que tudo bem, eu mudei, eu me frustrei muito, tem coisas que me deixaram bastante triste em toda trajetória da minha vida, que não foi uma vida muito fácil. Mas, por outro lado, eu também continuei com o mesmo vigor juvenil que eu estava antes, entendeu? E aí eu coloquei este livro para fora sem pensar que ele ia virar um best seller. Era mais para as pessoas ao redor perceberem, mais ou menos, o que estava acontecendo comigo.

Leão Serva: Você achou que ele podia ser um best seller em algum momento, quando você estava escrevendo? 

Marcelo Rubens Paiva: De jeito nenhum, de jeito nenhum. Eu lembro que quando eu escrevi o livro eu estava no primeiro ano da faculdade da Escola de Comunicações lá da USP. E no lançamento eu convidava meus amigos assim, eu ia panfletando na faculdade, entendeu? "Olha vai neste lançamento, por favor, dá uma força para mim, compra o livro se você puder para ajudar". E as pessoas foram, foram em massa lá, inclusive o livro demorou para pegar, ele não foi  um best seller logo de imediato, ele vendeu, por exemplo, os três primeiros mil exemplares da primeira edição levou uns seis meses para vender.

Paulo Betti: Para se desfolhar, é um livro que se desfolhava.

Marcelo Rubens Paiva: Era um truque né?

Paulo Betti: Você abria assim, as páginas saiam assim. [mostra]

Marcelo Rubens Paiva: O cara comprava um livro, o livro ia se auto-destruindo, então, o cara tinha que comprar um outro.

Paulo Betti: Era uma técnica da editora.

Heródoto Barbeiro: Marcelo, eu queira passar pra o Serginho Groisman, mas antes eu gostaria que você respondesse rapidamente a dois telespectadores que fazem perguntas semelhantes. Um deles é o senhor Guilherme Rodrigues, que é de Juiz de Fora; e o outro é o Paulo, de São Paulo. Os dois querem saber o seguinte: Marcelo, o que você acha da legalização da maconha?  São duas perguntas de dois telespectadores.

Marcelo Rubens Paiva: Olha, o nosso sistema, o nosso sistema está perigoso, tem que tomar muito cuidado, mas eu lembro que, em 1979... não, 1982, eu fiz parte de um grupo lá da PUC de São Paulo que defendia a descriminação da maconha. Até marcamos uma passeata na praça da Republica pra fazer um ato de desobediência civil, mas ninguém apareceu, tudo com medo. Eu acho o seguinte: eu tenho uma teoria diferente, eu não sei se a minha teoria é correta, eu acho que a gente deveria experimentar. E não sou só eu, eu acho que várias pessoas tem essa teoria de que deve-se tentar, deve-se buscar a legalização da maconha, não falo nem em descriminação, falo em legalização, porque já se combateu muito a maconha através dos anos e de todas as formas e os resultados que tem se visto não funcionaram. A repressão, a qualidade do produto mata algumas pessoas, o bandidismo que nasce por trás da droga. Quer dizer, você legalizar a maconha, você eliminaria uma série de organizações criminosas, você faria com que a sociedade tivesse, de uma certa maneira, um retrato na frente dela de quem é usuário,  quem não é usuário, quem precisa, quem é dependente. Quer dizer, encararia o fato de frente sem esse obscurantismo que na minha opinião não leva a nada. E a maconha já foi legalizada, a cocaína já foi legalizada, o LSD já foi legalizado, o ecstasy já foi legalizado, e a história da humanidade correu solta sem nenhum problema por causa disso. E particularmente a maconha, ela é uma droga bem diferente das outras drogas, ela não... ela é a droga da paz, eu não fumo mais maconha, faz muito tempo que eu não fumo. E eu percebo que ela tira a agressividade das pessoas. É evidente que, por outro lado, as pessoas vão dirigir mal, os adolescentes podem ir mal na escola, mas o adolescente se também encher a cara todos os dias, ele também vai mal na escola e se o cara encher a cara no bar ele também vai... pode atropelar, pode sofrer algum tipo de acidente. O que eu acho é que, por exemplo, devia ter um tipo de controle como há o controle da bebida, um controle do bom senso.

Soninha: Como deveria haver um controle maior com a bebida.

Marcelo Rubens Paiva: Com a bebida, não vender para menor de 21, ou de 18 anos, quer dizer, se o cara for pego no transito com.. ia ser engraçado um bafômetro de maconha. Mas se o cara for pego com três pegas, ou quatro pegas a mais de baseado ele iria preso. O que eu acho é que eliminando a proibição você começa a ter uma outra relação com o problema que não é só brasileiro, que é no mundo todo e que não adiantou proibir, não surtiu efeito.

Heródoto Barbeiro: Serginho, por favor.

Sergio Groisman: Você é um homem preocupado com várias questões, em todas essas questões você vai lá na frente, vai conversar com o governador, com o prefeito, seja a questão em relação à cadeira de rodas, seja em relação a posturas políticas, comportamentais, já que você teve uma coluna de muito sucesso no "Folhateen" [caderno dedicado aos adolescentes do jornal Folha de S. Paulo]. Quando você escreveu o livro, não sei se você já pensava que você teria pela frente uma militância em função, tendo como ponto de partida o próprio livro. E todas essas questões, quer dizer, você ser filho de um deputado assassinado, você estar numa cadeira de rodas, hoje ser filiado ao Partido Verde. Essa militância, quer dizer, que você faz tão bem, ela em algum momento te amolou? Você foi jogado a ela em algum momento ou tudo isso que você faz ao mesmo tempo agora você faz com prazer? 

Marcelo Rubens Paiva: Olha, é um saco, se você quer saber. É uma responsabilidade ser Marcelo Paiva, eu preferia ser Zé Simão [colunista de humor do jornal Folha de S. Paulo], que é uma anarquista, que é um humorista. Eu conversei com ele lá na MTV, no Barraco MTV [programa de debates da MTV] que a gente teve. E eu tentando fazer sério, tentando chegar a uma conclusão e ele só anarquizando. E eu virei para ele e falei “pô, eu queria ser que nem você porque é um saco, é uma responsabilidade você ter esta militância o tempo todo” [risos]. Mas eu não consigo não ser. Eu sofro de um defeito que é não admitir injustiça, não admitir incapacidade de democratização, de dar acesso a todos, de dar oportunidade a todos. Cara, eu tive uma experiência há um mês atrás que eu fiquei, que até hoje isso é uma coisa que está mudando a minha vida. Eu fui na inauguração da Escola Rubens Paiva, inauguração não, desculpe, foi na semana dos festejos da Escola Rubens Paiva, escola cujo nome foi dado pelo Paulo Maluf, prefeito Paulo Maluf. E é uma escola em Sapopemba, uma escola técnica de segundo grau, onde na região não existe outra escola e cheguei lá com a minha irmã, com os meus sobrinhos. E foi muito engraçado porque eles fizeram vários teatrinhos, teve um teatrinho sobre Rubens Paiva, então teve Teresa, a Goulart, como é o nome? 

Fernando Gabeira: Maria Teresa...

Marcelo Rubens Paiva: Maria Teresa Goulart [1943; esposa de João Goulart], teve João Goulart [1918-1976; eleito vice-presidente nas eleições de 1960. Assumiu o cargo de presidente do Brasil no mesmo ano devido a renúncia de Jânio Quadros, ficando no cargo até 1964, ano em que ocorreu o golpe militar]. Teve um golpe militar representado, cantaram todos "Caminhando e cantando" [refere-se à música "Pra não dizer que falei das flores", de Geraldo Vandré, considerado “hino” entre os estudantes contra o regime militar]. Aí depois teve um teatrinho sobre os Sem-Terra, teve um teatrinho sobre AIDS, teve um teatrinho sobre a consciência negra, e eu fiquei olhando aquilo e pensando: "meu Deus, na minha época as escolas ganhavam nomes de general, de coronel, a gente tinha teatrinho sobre o Brasil grande, a ponte Rio-Niterói, a Amazônia". E conversando com os professores eu percebi que havia uma ansiedade muito grande nos alunos, porque a concorrência para entrar naquela escola é de 22 candidatos para uma vaga e vários alunos têm medo de perder aquela oportunidade. E agora esta semana, em São Paulo, começaram as inscrições para matricular o filho numa escola pública e você vê filas na calçada. Aí, olhando aquilo eu falei: “meus Deus do céu, quer dizer que tem 22 pessoas para cada vaga querendo estudar, querendo fazer um curso técnico e o Brasil não dá esta oportunidade para as pessoas, isso não é democracia!”. A democracia é você, quer dizer, é o cara que fala “eu quero estudar”, e o cara que fala assim “eu não estou com o menor saco de estudar”, entendeu? Mas ali não, todo mundo quer estudar, todo mundo quer ter o diploma técnico. E porque que esta sociedade brasileira não consegue dar as mesmas oportunidades para as pessoas? Para o cara que mora em Sapopemba, para o cara que mora em Juiz de Fora? Por que que fica sempre uma elite eternamente no poder, que se garante no poder com mil artifícios, algumas vezes violentos com golpes militares, outras vezes com manipulações em eleições, agora com a manipulação da cota do congresso, né? Quer dizer, um estado de São Paulo que tem menos representantes do que estados nordestinos, e isso fica se mantendo e o Brasil nunca vai sair deste buraco? Então, quer dizer, eu preferia não olhar para essas coisas, eu preferia, entendeu, ir lá, achar graça de tudo e voltar para casa, mas eu olho aquilo e eu falo, “meu Deus eu tenho que fazer alguma coisa”.

Ricardo Kotscho: Marcelo, esse balanço breve que você fez de quinze anos, Feliz ano velho, você lembrou que 1982 era um tempo de lutas coletivas?

Marcelo Rubens Paiva: Foi um ano antes das Diretas Já.

Ricardo Kotscho: É, teve eleição de governador em 1982, né? E agora a coisa é mais individualista, o comportamento em geral, tem internet, ficam mais em casa e tudo. Neste final de semana aconteceram duas coisas em São Paulo, eu queria saber o que você acha disso. Na sexta-feira teve um protesto na Praça da Sé contra o desemprego, tinha 1500 pessoas. E no domingo teve um show da Marisa Monte no Ibirapuera que tinha 150 mil pessoas. Isso, como é que você vê, isso te dá mais ou menos esperança do que você tinha em 82, que o Brasil pode dar certo?

Marcelo Rubens Paiva: Não, eu não estou preocupado como isso não, sabia? Porque, inclusive eu fiquei muito feliz, na visita do Clinton, de ver a quantidade de manifestações contra que tinha. Eu acho que o brasileiro ele está aprendendo pouco a pouco a se mobilizar, ele esta aprendendo a exigir os seus direitos, está aprendendo a se manifestar. Agora, o Brasil nestes últimos anos vive um estágio de novo riquíssmo, parece que se desbundou, né? A classe média, a burguesia, as classes mais populares estão querendo os mesmos aparelhos da classe média e burguesia, né? Essa corrida atrás do consumo, atrás do eletrodoméstico... Eu  acho que o momento é uma fase, eu acho que é natural assim, que as coisas acontecem cíclicas, né? Por exemplo, as pessoas estão reclamando muito do preço do livro, do preço do teatro, reclamam muito de não poder ter acesso à cultura e tal. Mas está todo mundo comprando carro novo, carro zero, nunca se vendeu tanto carro zero como se vendeu, então eu acho que hoje em dia o brasileiro está assim voltado para mudar a marca do seu carro, para um carro mais novo mais do que está voltado, do que estava voltado há quinze anos atrás para ler um livro que explicasse para ele quais são as alternativas de futuro que ele tinha. E isso eu tenho certeza que vai e volta, porque inclusive essa militância não é mais uma militância partidária, como foi em 82. É uma militância mais enraizada nos seus próprios problemas: os deficientes, as mulheres, os negros.

Ricardo Kotscho: Uma cidade como a nossa que tem um milhão e meio de desempregados. O fato de só mil e quinhentos  pessoas irem à rua na sexta-feira, isso não é um...?   

Marcelo Rubens Paiva: Talvez as outras estivessem procurando emprego, na fila de emprego. Eu não sei, eu realmente não vejo assim que.. é aquilo que eu falei, eu não vejo a cidade mobilizada para os grandes problemas nacionais, eu vejo ela mobilizada para os seus pequenos problemas, para o seu pequeno cotidiano. E eu acho que isso é um intervalo, talvez no futuro volte a ter grandes mobilizações. Agora, Kotscho, você há de convir comigo que a cidade está meio sem liderança, né? Quer dizer, a chamada esquerda, ela tem um descrédito muito grande hoje na sociedade, especialmente nos movimentos sociais.

Ricardo Kotscho: Sem dúvida. Igreja, movimentos sociais.

Marcelo Rubens Paiva: PT, os partidos, sindicatos.

Ricardo Kotscho: Partidos políticos, sindicatos.

Heródoto Barbeiro: Marcelo, antes de você responder à Soninha, eu queria que você rapidamente respondesse aqui à nossa telespectadora, a professora Kitty, de Ribeirão Preto, ela quer saber o seguinte: se há alguma possibilidade de você ser candidato político, tipo deputado?

Marcelo Rubens Paiva: Eu acho que não, viu.

Heródoto Barbeiro: Não? Tá fora.

Marcelo Rubens Paiva: Eu acho que não, eu não sei, sempre me perguntam isso, mas eu acho que não, não sei se eu teria paciência. Eu teria, Gabeira, você acha que eu daria um bom deputado ou não?

Fernando Gabeira: Não sei, hein [risos]

Marcelo Rubens Paiva: O Gabeira é meu mentor, eu gosto do Gabeira.

Fernando Gabeira: Não sei, eu acho que nenhum ser humano tem paciência todo tempo lá, entende? Mas é uma vida, quer dizer, vivendo com quinhentas pessoas diferentes a gente acaba ganhando paciência e a gente sente que eles têm paciência com a gente também.

Heródoto Barbeiro: Soninha, por favor.

Soninha: Marcelo, outro dia, conversando lá na MTV, a gente estava comparando a tua história com a história da Valéria, que é aquela menina que é portadora de HIV que lançou um livro agora [Depois daquela viagem é o título do livre escrito por Valéria Polizzi], falando sobre a vida dela. Fazíamos um paralelo mesmo como uma tragédia pessoal de alguém acabou virando um livro. Eu não li ainda o livro da Valéria, mas ela é uma pessoa que transmite alto-astral. É um livro que vem num momento muito bem-vindo, para dizer para as pessoas: olha ela é uma menina bonita, ela é de boa família, e ela é portadora do HIV, aquela história toda. Então, para quem não está...

Marcelo Rubens Paiva: Ela não é promiscua, pegou do primeiro namorado.

Soninha: É para quem não está na sua pele, nem na dela. A gente chega quase a pensar assim: "ah, que bom que aconteceu isso com ela porque ela lançou um livro que vai ser muito útil". Ou: "que bom que aconteceu isso com você, porque você acabou lançando um livro que foi muito bem recebido". Engraçado, quando você estava falando "eu me pergunto o que o meu pai estaria fazendo agora se ele estivesse vivo". Você já fez essa pergunta para você mesmo, assim, o que você estaria fazendo agora se você não tivesse sofrido aquele acidente e não tivesse lançado Feliz ano velho. Você seria um escritor, você seria uma pessoa tão conhecida, você estaria engajado em tantas causas, você já viajou um pouco em cima disso?

Marcelo Rubens Paiva: Olha, eu não sei, eu acho que escritor talvez eu até fosse porque eu escrevia muito, eu escrevia coisas ruins e coisas boas. Eu gostava de escrever desde o meu colégio, Colégio Santa Cruz. Eu fazia jornais, fazia artigos nos murais, na Unicamp, primeira faculdade que eu fiz, eu fazia muitas performances, fazia letras de músicas, tocava, tal, eu gostava desta, gostava de provocar um pouco, gostava de aparecer.  

Soninha: Mas como será que teria sido seu primeiro livro, quando?

Marcelo Rubens Paiva: Eu não sei, não tenho idéia e nem sei sobre o que seria. Talvez até sobre o meu pai ou talvez até sobre meu pai e minha geração, eu não sei. Mas certamente esse acidente me mudou como pessoa. Mudou o meu circulo de amizade, mudou o meu jeito de olhar o mundo, mudaram os meus projetos, entendeu? E comecei a conhecer muita gente que eu não conheceria se eu não estivesse numa cadeira de rodas, pessoas que estão viajando pelo mundo, pessoas que estão fazendo coisas inacreditáveis. Tem paraplégico que é alpinista. Eu fui numa estação de esqui lá nos Estados Unidos, os caras queriam me colocar num esqui. Eu até me arrependo, deveria ter feito, sabe? Tem cara pulando de pára-quedas. O deficiente hoje é outro, ele está completamente engajado em tudo, ele joga tênis.

Leão Serva: Marcelo, não no Brasil. Quer dizer, o desnível entre o acesso que o deficiente tem nos Estados Unidos ou na Europa, talvez pela guerra ou pelo padrão do país... e no Brasil ainda é uma coisa absurda, né? 

Marcelo Rubens Paiva: É, mas está melhorando viu. 

Leão Serva: Essa, por exemplo, do carro em que você em alguns momentos debateu, o fato de você não ter acesso a um carro como existia nos Estados Unidos, isso já foi solucionado ou não?

Marcelo Rubens Paiva: Não. Por exemplo, eu vi, eu vi deficientes lá nos Estados Unidos, pessoas que não mexiam um dedinho e você via o cara fazendo supermercado. E aí você via o cara no estacionamento do supermercado, e de repente você vê o cara entrando no carro e saindo dirigindo. Tem um carro lá que se chama esforço zero. Eu não sei direito como é que é, mas o cara ia lá e dirigia sozinho e não tinha nenhum problema. E essa coisa não tem, é caro, um carro desse custa de 25 a 30 mil dólares. Eu trouxe um carro desse pra o Brasil, não o esforço zero, porque eu até tenho uma mobilidade melhor, e paguei o triplo de impostos, entendeu? Cheguei a mandar cartas para o [Pedro] Malan explicando a situação, porque não tem essa tecnologia no Brasil, ninguém vai fazer, nenhuma indústria automobilística vai se interessar por isso, entendeu? E, ao mesmo tempo, os deficientes brasileiros nem sabe que isso existe e jamais vão ter acesso a isso. Eu sou a única pessoa aqui de São Paulo que tem esse carro. Tem mais um em Campinas pagando os olhos da cara.

Heródoto Barbeiro: Ok, deputado Fernando Gabeira, por favor.

Fernando Gabeira: Você mandou uma carta para o Malan e entregou um documento para o Fernando Henrique. O que você acha da sensibilidade dessa gente a respeito da questão dos portadores de deficiência? Porque eu sinto uma certa pedreira no Brasil, nesse tema. Uma pedreira entre os políticos, uma pedreira na mídia, uma dificuldade muito grande. É claro que tem melhorado, tem melhorado e tal. Mas, na sua opinião, qual o nível de sensibilidade que o Fernando Henrique demonstrou, pelo menos facialmente ou naquele momento? O que você acha que ele poderia fazer nesse campo ou de que maneira nós podemos chamá-lo à luta?

Marcelo Rubens Paiva: Olha, o Fernando Henrique está meio irritado comigo por causa daquela história dos desaparecidos [refere-se à campanha promovida por Marcelo Rubens Paiva e outros familiares das vítimas desaparecidas durante o regime militar para estabelecer a procura nos arquivos militares de alguns nomes de desaparecidos. Em 1996, após projeto de lei dos Desaparecidos enviado ao Congresso pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, foi entregue à viúva e família um atestado de óbito reconhecendo a morte de Rubens Paiva, pai do entrevistado]. Eu peguei no pé dele no começo do governo dele, um projeto de reconhecimento dos desaparecidos, eu fui duro.

Fernando Gabeira: Pelo menos já reconheceu....

Marcelo Rubens Paiva: Reconheceu, atestado de óbito. Pois é, aí eu fui lá em Brasília, dei para ele o projeto, porque o Brasil precisa de uma lei federal. Todo mundo fala "pô, mas não adianta, precisa uma lei federal". Por exemplo, uma lei que determine, a partir de hoje, ou a partir de dois anos, que uma fábrica de ônibus brasileira só pode sair com a linha de ônibus com elevador para o deficiente físico, coisa que nos Estados Unidos acontece. E, aí o custo de uma adaptação num ônibus cairia 100% e isso faria com que todas as prefeituras do Brasil que ele tivesse acesso a esse equipamento. Aí eu dei um projeto de lei federal para o Fernando Henrique, ele olhou aquilo e entregou para um assessor. Perguntou da minha mãe, todo mundo pergunta da minha mãe, "como vai sua mãe?, dê um abraço a ela". "Presidente, mas isso é importante". "Então, vou dar uma olhada e tal". Eu não sei se ele olhou, eu acho que não. Mas o que me chama a atenção nesse governo, nessa administração, não é só a falta de sensibilidade com o portador de deficiência, mas é um pouco a falta de sensibilidade com o ser brasileiro, entendeu? Eu acho que é uma administração muito voltada as grandes questões da macro economia, mais do que aos pequenos problemas: dos jacarés, dos peixes, das queimadas, entendeu? Da coisa do índio, educação, deficiente, de tudo, enfim. Eu acho que é um governo totalmente ausente. Por exemplo, quando houve o massacre lá dos Carajás, porque que não foi o presidente da República lá imediatamente, quando houve...

Fernando Gabeira: Na Inglaterra, por muito menos o ministro ia...

Marcelo Rubens Paiva: É, o [Bill] Clinton [1946; presidente dos Estados Unidos entre 1993-2001] foi lá quando teve o bombardeamento de Oklahoma. Ele foi no dia seguinte, transferiu o governo para lá. Quando houve o massacre dos velhinhos da clínica Santa Genoveva, no Rio, porque o exército não cercou aquilo com o presidente descendo de helicóptero e prendendo imediatamente as pessoas responsáveis por aquilo? Quer dizer, é um governo ausente e eu faço uma comparação com uma pessoa que eu não tenho a menor simpatia, quer dizer, tenho muita simpatia, mas não concordo uma vírgula com o projeto político dela, que é o Paulo Maluf, aqui de São Paulo. Voltei de São Francisco, liguei para o assistente dele, o Adilson Laranjeiras. Falei: Adilson, esta cidade é a mais rica da América Latina, como é que não tem nada para o deficiente físico? O Adilson me ligou quinze minutos depois falando "o prefeito quer encontrá-lo". O prefeito é o Paulo Maluf! Eu falei tudo bem, e ele "traga os seus projetos". Eu não tinha projeto nenhum. Sentei no computador, fiz quinze parágrafos, chamei a minha ONG que, bem ou mal tinha quatro pessoas. "Vamos lá, porque eu não vou sozinho comprar esta briga". Sentamos com o doutor Paulo, entendeu? "Marcelo como vai sua mãe?", perguntou da minha mãe.

Fernando Gabeira: Sempre botam a mãe no meio.

Marcelo Rubens Paiva: E de item em item ele foi lendo e vendo o que era possível, o que não era possível. Marcou uma reunião na semana seguinte com todo o secretariado. Coitado dos caras, ter que agüentar o Marcelo e três caras de cadeira de rodas e o doutor Paulo comprando a briga. E todas as idéias que a gente deu foram cumpridas. Mal cumpridas, mas foram. Por exemplo: ônibus para deficiente físico, agora em São Paulo tem um ônibus para cada linha. Vans, isto é, peruas com elevador para levar o deficiente que não tem acesso ao ônibus, para ao cinema ao preço de uma passagem, entendeu? Ele fez licitação para guias rebaixadas. Aí acontece que a prefeitura faliu e todos projetos não foram adiantes, mas...

Neide Duarte: E aí ele fez aquela passarela imensa, bem alta que deficiente nenhum sobe. 

Marcelo Rubens Paiva: Aí, é um problema... Foi um conflito muito grande na minha vida estes três meses que eu passei me reunindo com o Paulo Maluf. Porque era o cara assim que era inimigo da minha adolescência, eu até sonhava com o Paulo Maluf. E eu tinha vergonha de falar. "Onde é que você está indo agora, Marcelo? Indo na prefeitura?" Entendeu? Agora você pergunta porque o Paulo Maluf tem tanto prestígio nesta cidade? O programa dele é medíocre, eu acho que o projeto de urbanismo dele não dá certo. Quer dizer, fazer viadutos e marginais, acabar com os rios, e tapar os rios de São Paulo fazendo grandes pontes, isso aí para mim não é o futuro. Mas, por outro lado, é um cara que está interagindo com a sociedade. Agora, o Fernando Henrique não está interagindo com o Brasil há muito tempo. Ele gosta de  viajar, de ir para Londres, a imprensa fica desbundada porque chamam ele de César e fazem, dão capas e capas de jornal para aquela palhaçada toda. No fundo o Brasil continua sendo um país que.. tanto a Inglaterra como o Estados Unidos, que convocaram o país, têm interesses comerciais de roubar um pouquinho da nossa riqueza. Ele [FHC] fica muito ausente com o projeto nacional.

Neide Duarte: Marcelo, a distância faz a gente mudar um pouco o nosso olhar em cima dos personagens da história. Você mesmo com o prefeito Paulo Maluf parece que mudou. Eu só queria saber o seguinte: é fácil para a gente ter esse olhar depois de muitos anos? Eu queria saber se é fácil você ter esse olhar quando a história envolve o pai da gente. Como é que você viu o abraço que a sua mãe - desculpe falar da sua mãe - que ela deu no general? Se dá para perder o rancor, se dá para ter outro olhar em cima disso .

Marcelo Rubens Paiva: Eu achei maravilhoso, eu daria este abraço também. Sabe por que dá? Eu falei isso para o Jarbas Passarinho [1920; político e militar], a gente teve um encontro aqui no dia seguinte. A gente teve um debate de umas quatro, cinco horas, eu e ele, só nós dois, um debate gravado. Eu falei para ele: "doutor Jarbas, posso falar uma coisa para o senhor?" Eu estou olhando para um derrotado, eu olho para o senhor, eu vejo seus colegas que estão todos assim cabisbaixo, estão todos escondidos. O Figueiredo [1918-1999; político e militar. Foi o último presidente do regime militar, que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Durante o seu governo, de 1979 a 1985, promoveu a lenta transição do poder político para os civis] está escondido, ele não é o herói nacional que sai na praia, o Médici [1905-1985; político e militar. Foi presidente do Brasil entre 1969-1974] morreu solitário, o Geisel [1908-1996; polítco e militar. Foi presidente do Brasil entre 1974-1979] agora morreu também quase solitário. E mesmo os golpistas eles estão meio, eles se democratizaram ali, eles estão um pouco envergonhados. Enquanto a minha geração, a geração do Gabeira, que é a geração revoltada, é a geração que está aí, quer dizer, o nosso projeto é um projeto que foi combatido violentamente, ele acabou vencendo, o Fernando Henrique é o poder...

Fernando Gabeira: Em termos, né? Porque o projeto que nós tínhamos na época, era um projeto que foi derrotado em todos os sentidos do mundo.

Marcelo Rubens Paiva: O projeto da resistência?

Fernando Gabeira: Quer dizer, o socialismo real foi impossível.

Marcelo Rubens Paiva: Sim, mas o projeto da resistência à ditadura.

Neide Duarte: Mas o seu pensamento mudou com relação à ditadura? O jeito com que você via naquela época, que era uma época que nós todos vivemos de muito rancor, uma coisa muito, um caminho só, um trilhar só.

Marcelo Rubens Paiva: Não, não mudou, mas eu entendo, eu compreendo. Quer dizer, o golpe de 64 foi um dos maiores erros da nossa história, foi uma bobagem, entendeu? Atrasou o Brasil não sei quantos anos. Não estou falando nem em termos econômicos, mas em termos de cidadania. Reorganizar nossa democracia é coisa muito custosa. Reorganizar essas manifestações, essas organizações, os partidos, a credibilidade dos políticos, a credibilidade das forças armadas, da polícia. Isso tudo vai levar anos e isso tudo foi demolido de um dia para o outro numa marcha maluca de um general de Belo Horizonte, entendeu? Que, inclusive, antecipando um pouco os planos de um golpe militar, pegaram a constituição, rasgaram, e deram o golpe. Eles admitem que foi um golpe cívico militar, porque havia apoio de civis no golpe.

Neide Duarte: Você perdoou as pessoas que mataram seu pai? 

Marcelo Rubens Paiva: Era uma conjuntura em que estava todo mundo maluco ali. Eu acho que, eu não vou perdoar, é claro que não, mas eu entendo o porque de aquilo ter acontecido. Estava uma histeria ali, estava uma agressividade gratuita. Inclusive, eu nunca tinha entendido porque minha mãe e minha irmã tinham sido presas um dia depois. E eu vi que elas tinham sido presas para serem torturadas. Eu acho, inclusive, que o meu pai provavelmente percebeu que elas estavam ao lado dele e deve ter de algum jeito se sacrificado para não ter a mulher e a filha de quatorze, quinze anos, torturadas na hora. Quer dizer, é duro entender isso tudo, e é duro você entender que brasileiros fizeram isso contra brasileiros. Eu lembro desses caras na minha casa, eu joguei botão com um deles, eu lembro de conversar com eles. E eram pessoas normais, mas que viravam selvagens dentro do cárceres. A estrutura chegou a um ponto de sadismo que é evidente que não tem perdão nenhum, mas eu compreendo, porque isso aconteceu aqui, aconteceu na Argentina, aconteceu em todos os lugares, entendeu?

Heródoto Barbeiro: A respeito do seu livro, eu gostaria de citar rapidamente aqui o e-mail mandado pelo Denílson Botelho, também pela Mariana, de Belo Horizonte, e tem aqui um outro e-mail que é da Lili e do Luiz Schwarcz que eu gostaria que você respondesse. Diz o seguinte: fale para os jovens escritores sobre como se dá o salto da literatura, de memória para a literatura pura que você tem feito em sua obra como escritor.

Marcelo Rubens Paiva: Bom, é difícil mas na verdade, assim, a minha obra autobiográfica é um pouco ficcional e a minha obra ficcional é bastante autobiográfica. Eu acho que tem ali um tempero de você inventar sobre coisas que aconteceram com você, que aconteceram com seus amigos, que você ouviu falar. Se for o caso, Não és tu, Brasil que é um relato histórico, saber inventar o que aconteceu na periferia dos fatos, que é o que eu fiz ali. Tem inclusive um encontro fictício de um personagem do meu no livro com Lamarca, mas procurei inventar esse encontro sem ferir muito os dados históricos. Mas o que acho fundamental é não ter regras. Eu tenho descoberto, nos meus poucos anos de escritor, que as regras foram inventadas por aqueles chatos que não sabiam escrever e que não ajudam a inventar nada. Você faz uma coisa seguindo padrões muito confiáveis, enquanto o interesse do leitor é no escritor estar arriscando.

Paulo Betti: Eu queria que você falasse sobre este livro seu, eu não conhecia esse livro, As fêmeas, e o que tem de autobiográfico nesse livro. E depois eu queria que você falasse sobre futebol, para quem que você vai torcer domingo. Eu sei que você é corintiano, mas eu gostaria de saber se você vai torcer para o Palmeiras ou para o Vasco, para ver se você é carioca ou paulista realmente. E também quem é o parceiro que você acha que deve ser o parceiro do Ronaldinho, se é que você acha. Isso aqui é uma mesa redonda, deixa eu baixar um pouco o nível.

Marcelo Rubens Paiva: Olha, o parceiro do Ronaldinho eu acho que tem que ser o Edmundo e, talvez o Romário, mas jamais o Bebeto.  [risos]

Paulo Betti: Por que não, por que o Edmundo?

Marcelo Rubens Paiva: Porque o Edmundo está arrebentando, né? Ele está jogando um bolão.
[risos]
[todos falam ao mesmo tempo]

Paulo Betti: Você não acha que ele vai aprontar mais?

Marcelo Rubens Paiva: Acho que não, ele está agora olhando para o céu quando ele comemora um gol, isso aí.

Soninha: Aprontar um pouco é necessário também, esse futebol muito protocolado assim...

Marcelo Rubens Paiva: Ele está jogando muita bola! É impressionante, e eu acho que se ele está jogando bem é porque ele deve ter dado uma virada na vida dele, uma virada, sei lá, religiosa, não sei. Eu vi uma entrevista dele ontem no Fantástico, se não me engano, parecia um coroinha. Falando em Jesus, uma casa toda organizada, falando na família, que o que ele mais gasta, o tempo que ele gasta hoje é com a filha dele, né?

Fernando Gabeira: Não pode é confundir a Copa do Mundo com uma cruzada. [risos]

Heródoto Barbeiro: Marcelo, já que o Paulo falou do seu coritianismo, Luiz Carlos Ribeiro, que é nosso telespectador de São Paulo, ele quer saber o seguinte: o que quê você acha dessa tentativa de, aliás até ocorreu, fechamento da Gaviões da Fiel? 

Marcelo Rubens Paiva: Pois é, eu sou, eu era filiado a Gaviões da Fiel. Eu acho que eles extrapolaram, eu não vou mais no estádio, você vai Serginho? É, está difícil a gente ir ao estádio. Eu ia muito, eu ia todo o domingo ao estádio. E isso - engraçado que no Rio era mais pacífico e parece que a violência também foi para o Rio - o negócio pegou pesado, é uma pena porque quem sai perdendo é o time, é o futebol brasileiro que não tem dinheiro para deixar os atletas aqui, entendeu?  Estão comprando todo mundo. E eu acho que se a Gaviões é, de fato, um catalisador de violência no campo - e é sim porque eu conheço, eu sei que eles vão lá para brigar - eu acho que tem que fechar sim, infelizmente. 

Heródoto Barbeiro: O Marcelo você não respondeu a primeira parte da pergunta do Betti, sobre a questão autobiográfica das fêmeas, é isso Paulo?

Paulo Betti: Não, não, é sobre o livro As fêmeas.

Sergio Groisman: E se o corintiano vai torcer pelo Palmeiras.

Marcelo Rubens Paiva: Eu tive algumas fêmeas na minha vida, tive duas avós, tive quatro irmãs, tive uma mãe que todo mundo admira e tive algumas namoradas. Fui casado. Então, eu acho que eu escrevi um livro de crônicas em que eu falo da relação homem mulher, e aí como é um livro em que eu falo muito particularmente da coisa da Aids, da nova sexualidade. Eu resolvi usar um título mais selvagem para contrapor um pouco com a rotina controlada que é o ato sexual de hoje. Você não pode mais pegar, agarrar o seu parceiro e sair rolando pela praia, entrar no mar e fazer amor. Você tem que parar, voltar para a areia e abrir a bolsa, tirar uma camisinha e colocar a camisinha, eu nem sei como é que se faz amor hoje em dia dentro d’água com camisinha. Eu não sei se funciona direito ou não. Mas aí eu usei este título exatamente com uma certa provocação do papel de uma mulher assim, selvagem, diante de um mundo em que o sexo é uma coisa bastante organizada.

Ricardo Kotscho: Marcelo, na entrevista tua de 1984, 13 anos atrás para o JB [Jornal do Brasil], eu queria levantar duas questões que você fala aqui, o que é que você pensa.

Marcelo Rubens Paiva: Foi para você a entrevista, ou não?

Ricardo Kotscho: Não, não foi para mim, não sei não está assinada. Estava todo mundo perguntando sobre o segundo livro, tinha saído o primeiro e aí você fala assim, "ele está pronto mas não vai ser lançado e o outro não vai pintar tão cedo, para escrever tem que dar tesão, não quero ser como Caetano [Veloso] que lança um disco por ano".  Eu queria saber um pouco do teu processo de criação, como é que é esse negócio. Tem que sentir tesão, tem que ter história na cabeça? Como é que surge um livro, como é que nasce um livro, como é que é o processo de criação? Essa é uma pergunta. E a outra que está ligada à mesma entrevista, você diz o seguinte: "não sou cristão, nem católico". Então, eu queria saber no que você acredita e o que te move?

Marcelo Rubens Paiva: Olha, o meu processo de criação, ele é lento, ele não é acelerado assim e eu não consigo fazer coisa sob encomenda, muitas pessoas me pedem, mas eu não consigo nem começar. Eu faço aquilo que.. é de uma certa arrogância até falar isso, mas já que eu tive meu primeiro livro sucesso, dinheiro para me estabelecer financeiramente, eu consigo fazer do resto aquilo que realmente eu estou com vontade de fazer e nunca procurei em nenhum outro trabalho meu  seguir o mesmo caminho do sucesso do Feliz ano velho. Eu sei que Feliz ano velho é uma coisa particular, teve o seu tempo. Eu poderia ter escrito, como muitas pessoas me pediram para escrever, o Feliz ano velho II, eu poderia ter continuado nessa onda, entendeu? Ter feito biografias sexuais juvenis. Mas preferi partir para coisas que realmente estavam me interessando.

Neide Duarte: Mas você considera Feliz ano velho seu melhor livro?

Marcelo Rubens Paiva: Não, não eu acho que eu não considero nenhum livro meu o meu melhor livro, eu acho que cada um tem qualidades e cada um tem defeitos.

Leão Serva: Mas, qual é o mais burilado, assim, literariamente?

Marcelo Rubens Paiva: Não és tu, Brasil. O que me deu mais trabalho, me deu seis anos de trabalho. 

Ricardo Kotscho: Eu só queria voltar aqui aquela segunda questão, Marcelo, você fala que não é cristão, não é católico e tal. Eu queria saber no que você acredita.

Marcelo Rubens Paiva: Agora, não, eu virei cristão.

Ricardo Kotscho: Virou?

Marcelo Rubens Paiva: Virei, nos Estados Unidos.

Ricardo Kotscho: Como é que foi isso? Como é que aconteceu?

Marcelo Rubens Paiva: Foi um professor que eu tive lá, um filósofo. Um etnólogo de 78 anos que foi comunista, que lutou na resistência francesa, maior autoridade em Shakspeare lá nos Estados Unidos. E que se converteu para o cristianismo há quatro anos atrás. Inclusive tinha um colega meu da faculdade, lá de Stanford, que era do Irã e se converteu para o cristianismo, ele era muçulmano e se converteu. Eu tive um curso sobre a Bíblia com ele e ele mostrava coisas da Bíblia, uma leitura da Bíblia que foi muito legal para a minha vida. Que é assim, uma leitura de comportamento do dia a dia.

Ricardo Kotscho: O que mudou na sua vida com essa leitura?

Marcelo Rubens Paiva: Eu fiquei mais solidário, eu encontrei uma ética, entendeu? Encontrei um, inclusive, um motivo para me reunir com o Maluf, para conversar com o Jarbas Passarinho; não para perdoar, mas para entender. Para ter... porque eu fui muito incendiário, eu fui até meio exagerado nos anos 1980, aqui na TV Cultura no Fanzine, na coluna do Folhateen. Eu era uma praga e agora fiquei mais calmo.

Marta Góes: Marcelo, eu li uma matéria sua na Folha que tinha um título engraçadíssimo que era assim: “Netinho [cantor de axé] chatinho grava mais um disquinho”. Era irresistível, era muito engraçado. Eu fico pensando se você tem o mesmo bom humor quando é tratado assim pela imprensa? Como é que a crítica te atinge? Você recebe assim, serenamente, ou você dá um...?

Marcelo Rubens Paiva: Não, os dois, né. Às vezes você fica com raiva porque às vezes você sabe que é pessoal. Teve algum, tiveram alguns críticos que pegaram no meu pé durante uns bons anos e gratuitamente. Era maldade assim: "já que ele é o queridinho...", acabei de ler uma dessas críticas, "já que ele é o ícone da mídia, então vou destratá-lo". Mas no caso do Netinho é porque ele realmente é ruizinho, sabe? Eu não tenho o menor preconceito, sou fã do Wando, converso com o Wando pelo telefone, vou em shows do Wando, fui em show do Fábio Junior, eu não tenho nada contra música baiana, adorei o último disco do Caetano. Esses dias estão falando tão mal, mas achei lindo, adorei aquela música: "Não enche". Eu ouvi ontem no restaurante e... comendo e ouvindo o disco... vou até comprar. Mas o Netinho?! Quer dizer, eu não gosto desse oportunismo que comercializa demais a música, eu acho que precisa ter uma coisa que fale de dentro. E não fazer letra... "vamos fazer uma letra para vender disco". Isso me incomoda muito.

Leão Serva: Essa coisa de música.. quer dizer, antes até o acidente, você vivia dividido, talvez, entre uma possibilidade de ser engenheiro, mas certamente um trabalho musical, quer dizer, tinha um trabalho de música de concerto e rock etc. E você sempre trabalhou muito próximo da música depois do acidente, mas você abandonou completamente a música, quer dizer, você não compõe  nada?

Marcelo Rubens Paiva: Tem gente muito melhor do que eu, descobri isso depois.

Confira, no próximo domingo a segunda parte desta bela entrevista.

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