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Em diálogo com
Gilles Deleuze e Félix Guattari, especialmente com o volume três de Mil Platôs (1996), este artigo assume de
antemão o argumento de que o capitalismo pode e deve ser analisado como uma
empresa mundial de produção, distribuição e consumo de rostos, de modo que,
nele e através dele, tudo se torna rostidade, rosto de rosto: o dinheiro, as
mercadorias, a propriedade privada, o amor, as subjetividades, as ideias, o
desejo, o ódio, o medo, as artes, a violência, a paz, a alegria, a justiça, a
cultura, as guerras, o saber, a verdade, as notícias.
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A empresa mundial
de confecção, distribuição e consumo de rostos, o capitalismo, possui uma
fórmula responsável pela rostificação infinita da vida: a do muro branco no
qual e através do qual se espalham buracos negros das imagináveis e
inimagináveis possibilidades de perfis humanos mensuráveis e imensuráveis,
tendo em vista um processo de significação dominante comprometido até o miolo
com o rosto branco, heterossexual, masculino ou simplesmente com o rosto branco
adulto e macho do europeu mediano.
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No decorrer da
primeira modernidade, iniciada com a expansão colonizadora européia no século
16, durando até a Segunda Guerra Mundial, a fórmula do rosto, muro
branco/buraco negro, fez-se e refez-se como máquina binária que punha em polos
opostos: 1) o cristão e o não cristão; 2) o civilizado branco macho ocidental e
o bárbaro não ocidental e não branco; 3) o homem e a mulher; 4) o heterossexual
e as outras sexualidades; 5) o alfabetizado e o analfabeto; 6) o Ocidente e o
Oriente;7) o centro ou o norte e a periferia ou o sul; 8) o rico e pobre; 9) o
burguês e o operário; 10) a cidade e o campo; 11) a oligarquia e a plebe.
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Essa primeira
modernidade, por se constituir como máquina binária de produção de rostos
opostos e irreconciliáveis, é também hierárquica, patriarcal e, por
conseqüência, marcada por subjetividades tomadas pela culpa, pelo
ressentimento, pelo ódio, a moral de escravo, independente se o rosto em
questão ocupe o lugar do opressor ou do oprimido, uma vez que a fórmula muro
branco/buraco negro foi usada, durante a primeira modernidade, com o propósito
de produzir sujeição social generalizada.
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A posição do
filósofo alemão Nietzsche contra a moral do escravo foi, em sua época,
extemporânea porque não é nem burguesa nem operária, nem opressora nem
oprimida, constituindo-se, bem entendido, como uma linha de fuga em relação à
máquina binária opositiva do sistema de rosto da primeira modernidade.
6
O poeta Carlos
Drummond de Andrade, talvez no mundo todo, foi a voz lírica, em dissonância,
desse sistema de rosto maniqueísta, pois, em sua poética, expressou a falência
desse modelo, elevando ao quadrado o ressentimento e a culpa, ao produzir
singulares poemas de ressentimentos sobre ressentimentos e de culpas sobre
culpas, antecipando, assim, o fim do sistema de rosto binário e maniqueísta da
primeira modernidade.
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A segunda fase da
modernidade, esboçando-se após a Segunda Guerra Mundial, embora já viesse sendo
gestada desde muito antes, foi e é marcada pela multiplicação do buraco negro
ou das subjetividades, de tal sorte que o muro branco, da fórmula de rosto,
muro branco/buraco negro, passa a ser totalmente tomado, razão pela qual
acreditamos viver num período histórico de diferenças e diversidades.
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A consequência
mais evidente da tomada do muro branco pelos buracos negros das subjetividades
é a sensação de que vivemos num mundo sem hierarquias, sem maniqueísmos, sem
opressor e sem oprimido, sem, portanto, binarismos opositivos entre branco e
não branco, rico e não rico; heterossexual e não heterossexual; homem e mulher
e assim por diante.
9
No atual período
histórico, o muro branco se transforma em buraco negro sem deixar de ser muro
branco, de modo que qualquer rosto pode ser mais branco que o branco rosto
europeu ou mais patriarcal que o patriarcado; ou mais heterossexual que o
heterossexual; mais rico que o rico, mais opressor que o opressor; ou mais
hierárquico que a hierarquia, independente se é de fato branco, patriarcal,
heterossexual, hierárquico, opressor, razão por que o sistema de rosto do mundo
contemporâneo é o que utiliza ou coopta o rosto alheio, não branco, não
patriarcal, não ocidental, a fim de que cumpra, tal rosto de outrem, o
subserviente papel, ainda que alegre e orgulhoso de si, de estar a serviço do
sistema de rosto branco, macho, ocidental, capitalista.
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Diferentemente da
primeira modernidade, na atual fase histórica, por alguns chamada de pós-modernidade,
a máquina binária muro branco/buraco negro tomou de assalto a divisão opositiva
entre realidade e ficção, de modo que esta se apresenta como a própria
realidade, sem ser, pois não apenas está a serviço desta, mas antes de tudo é
subserviente à realidade dominante ou tornada dominante no decorrer da primeira
modernidade, ainda que, de modo igualmente alegre e orgulhoso de si, professe,
em seus bufões e teatrais rostos, o fim da dominância do rosto branco,
heterossexual e proprietário do capital.
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Os Estados Unidos
da América se tornaram o epicentro da atual fase histórica. Hollywood, nesse
contexto, não é a capital do cinema americano, mas a verdadeira capital do
planeta, num contexto em que, no mundo todo, a ficção ocupa o lugar da
realidade, sem que esta deixe de existir ou perca espaço social, pois, muito
pelo contrário, é precisamente porque o princípio de realidade do sistema de
rosto do capitalismo é mais branco, heterossexual e ocidental que nunca que
todo e qualquer rosto pode agir como se fosse livre para expressar, sem
ressentimento ou culpa, e afirmando a si mesmo, o sistema de rosto dominante.
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Considerando a
segunda fase da modernidade, chamada de pós-moderna, nela e através dela os
Estados Unidos da América foram e ainda são a matriz da empresa mundial de
produção, distribuição e consumo de rosto do capitalismo porque souberam (não
sem o uso da força bruta patriarcal, haja vista o seu poder bélico)
pragmaticamente jogar com os rostos, transformando a ideia de democracia em
ficção ou publicidade democrática de rostos livres afinal de contas para
expressar o sistema de rosto dominante do capital, de modo que o limite da
liberdade, em nossa atual época, é precisamente o muro branco do capital.
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Mais que o
cinema, a televisão constituiu-se como o principal suporte tecnológico do
sistema muro branco/buraco negro da pós-modernidade, pois ela mesma é o próprio
buraco negro das subjetividades ocupando todo o muro branco, transformado em
jogo de luzes eletromagnéticas.
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Os Estados Unidos
da América são, pois, mais que o cinema, a televisão do mundo ou o grande
espalhafatoso buraco negro geográfico a ocupar ou suturar todo muro branco do
planeta Terra, sob a forma de imperialismo, através da ficção de um mundo
democrático no qual e através do qual o branco, o macho, o rico, o ocidental
supostamente se transformam em rosto dentre rostos, num contexto histórico no
qual e através do qual, fora da ficção, logo fora do cinema e da televisão, a
realidade é uma só: é branca, é heterossexual, é rica, é racista, belicista;
quinteto que constitui, mais do que nunca, o poder dos poderes, agora
metamorfoseado em ondas eletromagnéticas, via-satélite, encarnadas ou pegadas
em qualquer rosto a seu serviço, pois hoje o rosto em si é o próprio muro
branco do capital.
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Barack Obama,
presidente dos Estados Unidos, como homem negro, é apenas mais um rosto em si,
ou muro branco, de um mundo cuja realidade é mais branca do que nunca,
via-satélite, eletromagneticamente. Hillary Clinton, secretária de Estado dos
Estados Unidos, como mulher, é apenas mais um rosto em si, ou feminino muro
branco ficcional, de um mundo cuja realidade é mais masculina do que nunca, via
satélite, eletromagneticamente.
16
E é porque o
primeiro poder desde que o mundo é mundo da opressão, antes de ser branco, é
masculino – vale dizer, bélico – que Hillary Clinton, mesmo não sendo a
presidente da televisão do mundo, os Estados Unidos da América, manda no
imperialismo americano mais que Barack Obama precisamente porque é mulher e
porque, sendo mulher, cumpre o script
à risca do papel feminino no sistema de rosto da pós-modernidade, a saber: o de
ser mais macho que macho, na suposição de que, assim sendo, é livre, razão por
que ela é, de forma ficcional apenas, o exemplo vivo e encarnado de que o muro
branco patriarcal e despótico foi finalmente destronado, embora, de forma real,
inscreva seu trono de sempre no rosto alheio, especialmente no rosto feminino:
muro branco do poder patriarcal no contemporâneo.
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Se o sistema de
rosto do capitalismo pós-moderno é o de produzir a distribuição e o consumo do
rosto do negro como mais branco que o rosto do branco, do rosto da mulher como
mais macho que o rosto do macho, do rosto do pobre como mais rico que o rosto
do rico, do rosto do laico como mais religioso que o rosto do religioso, do
rosto da esquerda como mais direita que o rosto da direita; da infância como
mais adulto que o rosto do adulto, talvez não seja circunstancial que Hillary
Clinton seja, bem mais que a secretária do Estado dos Estados Unidos, a
secretária mundial da morte, do golpe, do genocídio, do racismo e assim por
diante, não sendo circunstancial que o dia em que veio ao Brasil, na ocasião do
Rio + 20, tenha sido o preciso dia do golpe de Estado contra o presidente Lugo,
no Paraguai, pois seu rosto estava aqui na América Latina para, cinicamente,
anunciá-lo – rosto de mortais golpes, sorridentemente.
18
São meia noite do
dia 13 de julho de 2012 e, neste exato momento, enquanto escrevo, escuto e vejo
o programa Na Moral, da TV
Globo, com Pedro Bial. Desde aqui, onde escrevo, tenho a singular oportunidade
de ver e ouvir o ator Pedro Cardoso polemizar falando mal da própria mídia –
não da TV Globo, é claro – citando indiretamente Guy Debord, discordando frontalmente
(face to face) de Pedro Bial e,
mais que isso, brincando de ocupar o seu lugar como o “dono” polêmico do
programa Na Moral, embora ao
fim e ao cabo Pedro Bial assuma o seu “legítimo” lugar, colocando Pedro Cardoso
em seu devido papel de mero circunstancial porra-louca tomado pelo abraço de
rostidade dominante da TV Globo, numa circunstância – marca do próprio programa
Na Moral –, em que ele, Pedro
Cardoso, está ali apenas para ser o rosto como muro branco do buraco negro
televisivo chamado TV Globo, a fim de que esta inscreva nele, como muro branco
contestador, a subjetividade pós-moderna de sua dominação despótica, travestida
de abertura ao questionamento e à crítica, razão por que a verdadeira moral do
programa Na moral é a de
constituir-se como o rosto da polêmica pela polêmica, como buraco negro no muro
branco do capital, para o capital, através do capital, sem nunca ir além da
ditadura flexível do capital.
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O capitalismo
contemporâneo – com sua fábrica mundial de produção de rostos não brancos mais
brancos do que nunca; de rostos pobres mais ricos do que nunca, de rostos
democráticos mais ditadores do que nunca, de rostos contestadores mais
domesticados que nunca; de rostos de paz mais belicistas do que nunca; de
rostos femininos mais machos do que nunca, de rostos civilizados mais bárbaros
do que nunca – é ao fim e ao cabo uma “grande família”, tal como o programa de
mesmo título da TV Globo, no qual e através do qual a grande família nada mais
é que a velha família patriarcal e edípica: papai, mamãe, filhinhos, com e
através do rosto da classe média brasileira: rosto de rosto no muro branco do
adulto ocidental médio, tanto mais normal e simpático, tanto mais a serviço do
fascismo e do holocausto alheio.
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E é porque a
fórmula muro branco/buraco negro do capitalismo pós-moderno foi toda tomada por
uma invasão sem fim de subjetividades a serviço do muro branco da mais-valia do
capital, que a saída do capital, entendido como máquina mundial contemporânea
de produção infinita de rostos ficcionalmente livres, certamente não se
inscreve no sistema de rostos, com suas estilizadas subjetividades que
funcionam como muro branco ou pauta vazia para escrita genocida do capital,
mas, fora da paisagem de rostos da fábrica capitalista mundial, a saída do capital
ou se dá através da justiça econômica coletiva, para além dos países
isoladamente, para todos os habitantes da terra, ou, qualquer outra saída de e
através de rostos isolados, não passará de muro branco para a ditadura
internacional e genocida da guerra do capital contra a vida.
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Sair, pois, do
capital, só é possível através de um processo revolucionário de desrostificação
planetária do close-up
cinematográfico ou televisivo esquadrinhado na e através da máquina binária
norte/sul/; branco/não branco /; heterossexual/não
heterossexual/;homem/mulher/; democrata/ditador/; Ocidente/ Oriente; num
contexto, como o atual, em que, como se viu, o segundo termo da máquina binária
de rostidade - o não branco, o não heterossexual, a mulher, o sul, o ditador, o
oriente – vira muro branco para extraordinárias edições compradas pelo buraco
negro genocida do capital.
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Os Estados Unidos
são o close-up da paisagem de
rostos do capitalismo mundial integrado e, no Brasil, a TV Globo é o close-up do buraco negro televisivo
planetário, a serviço do filme de horror da carnificina ou holocausto do negro,
do índio, do latino, do oriental, do africano, do miscigenado, da mulher, das
sexualidades não heterossexuais, do pobre, da infância, dos, enfim, abandonados
e condenados da Terra, pois, quanto mais o capitalismo avança sobre os rostos
das diferenças, domesticando-as, colonizando-as e incorporando-as, fazendo-as
produzir mais-valia branca, racista e financeira, mais o não branco, o não
heterossexual, o não proprietário, o não alfabetizado são ignorados,
manipulados, massacrados, além de apresentados como rostos não capitalistas dos
não democratas, dos bandidos, dos terroristas, dos perigos a serem dizimados,
através de humanitárias guerras, como rostos de rostos de terroristas cruzadas
contra as diferenças.
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Para, enfim, sair
do sistema de rosto do capital e, por consequência, produzir uma civilização
pós-capitalista de infinitas justiças, mais que simplesmente trocar de canal,
através do controle remoto, é preciso desligar a televisão do capital,
produzindo um mundo sem submetidos rostos vivamente mortos, como teatro de
subjetividades tanto mais livres quanto mais não passam de meros muros brancos
a serviço da pilhagem da vida na Terra.
(Texto
de Luís Eustáquio Soares publicado na revista eletrônica “Observatório da
Impressa em 17/07/2012, na edição 703)
Luís Eustáquio Soares é poeta,
escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Ufes
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