Cleibson Freitas nasceu em
1985, no Espírito Santo, residindo sempre na cidade de Cariacica. Filhos de
pais humildes, tornou-se um apaixonado e curioso pelo ser humano da vida comum.
Graduado em Língua
Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela
Universidade Federal do Espírito Santo, o escritor inicia sua carreira com a
publicação de O óvulo e o ovo: tudo de novo.
Nessa obra, Cleibson Freitas talvez comece seu primeiro e verdadeiro encontro
com a arte. Como ele mesmo diz: “escrevo para ser livre. Ou melhor, brincar de
ser livre, de ter prazer e brincar de ser Deus. Escrevo para me esconder do
mundo e anular-me por completo. A literatura também serve para nos
escondermos”. Confira, abaixo, o conto “Constantino Eusébio”:
CONSTATINO EUSÉBIO
Fazia
tempo que Altamiro Mendonça Alves, diretor bancário e morador da Avenida
Constantino Eusébio, observava o catador de papel Francisco da Cunha Meneses.
Todos os dias, no fim da tarde, ali da sacada do seu apartamento onde se
recolhia pra tomar uma xícara de café e fumar cigarros Hollywood, Altamiro
sempre avistava o homem.
Sujo,
barba grande e roupa ordinária, Francisco da Cunha Meneses tinha o hábito
vicioso de cumprimentar os transeuntes sem obter resposta: “Boa tarde, moça!”;
“Boa tarde, senhora!”; “Boa tarde, menino!”. Nunca havia resposta pra sua
modesta educação. A única resposta era só o eco que se fazia no asfalto quente
e no paralelepípedo amigo. É que só o paralelepípedo era amigo. Era só nele que
Francisco da Cunha Meneses sentava-se com segura intimidade e até conversava: dava
“boa tarde” ao paralelepípedo; Lhe contava sobre papéis dos mais variados tipos;
Falava de envelopes e de documentos sérios encontrados no meio de papéis
vagabundos; Contava sobre quando achava preservativos vivos mijando
espermatozóides; Enfim, quantas e quantas vezes Francisco da Cunha Meneses não
se pegava contando ao paralelepípedo até problemas pessoais seus. E era ali!
Era naquele exato momento que Altamiro Mendonça Alves tinha o ápice do riso. O
fato de Francisco não encontrar um interlocutor que desse aceitabilidade à sua
fala, era o motivo risível de Altamiro Mendonça Alves, que ali, da sacada do
seu apartamento, com uma xícara de café numa mão e um cigarro na outra, todos
os dias, no final da tarde, desde muito tempo, observava com imensa satisfação
o catador de papel Francisco da Cunha Meneses.
A
primeira visão do diretor bancário sobre Francisco da Cunha Meneses é curiosa e
espantosa. É que Altamiro nasceu de novo. Seu enxergar meticuloso da figura que
recolhia papel fez com que ele permanecesse mais tempo nos movimentos de
rotação e de translação da Terra. Tá aí o que se pode chamar de olhar penetrado
e esmiuçado! Mas há ainda quem não acredite em olhar deste tipo. Por isso, há
os que veem e não enxergam. Nesse dia Altamiro deixou de ver para enxergar. Sua
descoberta de que podia enxergar o fez ter um entusiasmo que se explodiu em uma
enorme gargalhada.
Altamiro
Mendonça Alves muitas vezes tinha visto o homem. Mas foi somente na véspera do
aniversário da filha que o enxergou de fato. Nesse dia, Altamiro caminhou
decididamente à sacada do seu apartamento pra se suicidar. Transações
financeiras indevidas, intensa investigação policial e sentimento de que estava
decepcionando a filha fizeram-no criar coragem pra pular do nono andar do
Edifício Caribe Center. Porém, no instante em que apenas um milésimo de segundo
o deixava oscilar entre a vida e a morte, pois meio corpo de Altamiro já estava
do outro lado do parapeito com o salto ensaiado, houve uma brusca mudança de
ideia provocada pela repentina visão: o diretor bancário, em meio a sua
perturbação mental do suicídio, reparou que Francisco da Cunha Meneses, lá embaixo,
na calçada em frente à lixeira, escancarou um largo sorriso sem dentes, por achar
e apanhar no chão uma nota que parecia ser de uns cinquenta reais.
Subitamente
uma inexplicável e imprevisível alegria tomou conta de Altamiro que, assim como
Francisco, riu desesperadamente. Os risos de ambos se organizavam em mútua
sintonia. E por algum motivo, que só a alma de Altamiro poderia dizer, o plano
do suicídio adiava-se. Altamiro já contornava o parapeito e resolvera ficar
mais tempo nos movimentos de rotação e de translação da Terra. E já que aquele
um, lá embaixo, foi quem o fizera desistir da façanha do salto, Altamiro achou
justo dar uma recompensa ao catador de papel por lhe ter salvado a vida: “Mas
como explicar a um traste de homem que ele salvou minha vida?” Ficou assim
pensando o bancário durante duas semanas.
Não
fazia parte do universo de Altamiro estabelecer diálogos com um homem que
falava com paralelepípedo. Altamiro jamais se rebaixaria a tal nível. Preferiria,
se fosse o caso, pular do nono andar pra não ter que conversar com sujeitos
daquele tipo. Por esse motivo, por não querer diálogo com um homem como
Francisco, que Altamiro teve uma fagulha inteligente na ideia: colocaria no
lixo, uma vez por semana, sempre na quarta-feira e alguns minutos antes do
horário rotineiro em que o catador de papel virava a cesta de lixo de cabeça
para baixo, uma quantia razoável em dinheiro como forma de gratidão ao homem
que salvara sua vida sem o saber. E de lá, da sacada do seu apartamento,
tomando café e fumando cigarros, Altamiro jamais perderia a cara desdentada e
alegre de Francisco da Cunha Meneses, quando este, toda quarta-feira, apanhasse
o misterioso dinheiro. Essa atitude daria um certo sentido e uma certa alegria
à vida de Altamiro e, é claro, também daria um certo sentido e uma certa
alegria à vida de Francisco. A alegria de um projetaria-se pra outro, e ambos
ficariam satisfeitos.
Um ano,
dois meses e quatro dias. Fora esse o tempo que Altamiro Mendonça passou rindo
da sacada do seu apartamento e, Francisco, também, lá embaixo, quando apanhava
o dinheiro. Essas duas vidas distintas solidarizavam–se em recíproca
felicidade.
Francisco
da Cunha Meneses de nada sabia. Não desconfiara por que motivo o danado do dinheiro
ali aparecia toda quarta-feira. E durante todo o tempo que se passou, ele bem
soube investir: adquiriu um fogão novo de seis bocas, comprou um aparelho
televisor de plasma, contratou serviço particular de saúde pra filha e até já
se preparava pra reformar a casa. Talvez, se disso soubesse Altamiro, era
possível até que aumentasse o valor colocado na lixeira. Mas com uma condição:
Francisco também teria que aumentar proporcionalmente o largo sorriso
desdentado. É que Altamiro estava acostumado com transação. Nada era de graça
pra este homem. A especulação, segundo ele, era o que movia a vida.
Figura
singular o diretor bancário! Sobretudo, na sua disciplina. Possuía ele uma
disciplina de Samurai: dormia às vinte e duas horas regularmente, se levantava
às cinco e trinta de segunda à sexta, ia à padaria, passava na banca de revistas
pra comprar jornal e cigarros e
retornava pra casa a fim de se aprontar pro trabalho. Antes disso, antes de se
aprontar, embrenhando-se nas suas luxuosas gravatas e ternos, Altamiro tomava
um rápido café e passava atenciosamente os olhos na seção de economia do
jornal, pra verificar o andamento da redução da taxa de juros e o valor do
câmbio. Como andava muito preocupado nos últimos tempos com os assuntos
policiais, também era comum ele consultar a página do jornal que tratava dessas
notícias. Nenhuma novidade, entretanto, encontrava nesta seção. A investigação
policial que acusava a direção do seu banco de estar envolvida em um esquema de
superfaturamento era sigilosa. Havia cinco meses que nenhuma notícia sobre o assunto
era publicada. A polícia não queria divulgar o caso pra não atrapalhar o
trabalho de investigação.
– Acho que vão pedir a quebra de
sigilo bancário, disse ele à esposa durante
um café
da manhã.
– Pior, Altamiro, acho que vão pedir
o ressarcimento de todo esse dano
causado
ao patrimônio público.
– Você acha, querida?
– Todos os nossos bens foram
adquiridos ilicitamente, Altamiro. Você já
imaginou
se te pegarem? Já pensou o escândalo que isso seria? A polícia iria adorar te
colocar...
– Vamos mudar de assunto, querida!
– Mudar de assunto? Mudar de
assunto, Altamiro? Só espero que você pense
na sua
filha daqui pra frente!
– Bom dia. Vou pro trabalho. Você
acordou com um péssimo humor hoje.
No
trânsito, enquanto dirigia amargurado com as coisas que a esposa havia dito,
Altamiro pensou no catador de papel. A sua memória reconstruía
involuntariamente a figura espectral de Franscisco. O bancário estava sentindo
certa compaixão por aquele homem que catava papel. Sentiu um grande desejo de
conhecer Francisco e lhe contar toda a verdade. Contar que era ele que colocava
o dinheiro na lixeira e que só fazia isso pra enxergar o sorriso desdentado do
catador de papel e que isso era uma maneira dele, Altamiro, sorrir também. Mas
qual seria a reação de Francisco? Altamiro tinha medo.
No
semáforo, aguardando o sinal verde, foi que teve uma outra fagulha na ideia:
iria se aproximar de Francisco sem lhe revelar a verdade. Passaria perto do
catador de papel e o aguardaria dizer “boa tarde”, conforme lhe era habitual, e
lhe responderia afavelmente. Como Francisco nunca obtinha retorno na sua
gentileza, uma resposta ao cumprimento daquele molambo podia ser o estopim de
uma aproximação.
Sucedeu
que, quando Altamiro passou pela calçada, o catador de papel nada disse. Isso
se repetiu durante várias semanas. Francisco cumprimentava todos que passavam
na calçada e, na vez de Altamiro, emudecia e nem sequer erguia a cabeça.
Desconfiara o bancário de que o catador de papel já havia descoberto toda a
verdade. Apesar disso, toda quarta-feira à tarde, o diretor bancário cumpria
sempre seu ritual: parava perto da lixeira, olhava pros lados até ter a certeza
de que ninguém o espreitava, jogava no lixo o envelope com o dinheiro, corria
pro apartamento, preparava uma xícara de café, apanhava os cigarros e se
dirigia até a sacada pra esperar Francisco da Cunha Meneses apontar na calçada
pra virar a lixeira de ponta cabeça, pegar o envelope, rasgá-lo, segurar o
dinheiro na mão e arreganhar o deslumbrado sorriso banguela.
Numa
tarde que parecia corriqueira, ao apontar na calçada e atravessar a esquina
rumo à lixeira, Francisco da Cunha Meneses foi surpreendido pelo impacto de um Eco sport em alta velocidade. Morreu na
hora. Altamiro, lá em cima, da sacada do seu apartamento assistiu a tudo sem
piscar os olhos e não resistiu ao choque da perda do homem que lhe trazia
felicidade. Então, o salto que ele tinha adiado outrora se realizou. O diretor
bancário, numa magistral acrobacia, pulou do nono andar do edifício Caribe
Center. O seu corpo fragmentado ficou emparelhado ao lado do espectro de
Francisco no meio da movimentada Avenida Constantino Eusébio. Os dois corpos
inertes compartilhavam da mais profunda harmonia humana, bem como a multidão de
curiosos que se formava ao redor de ambos.
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