sábado, 18 de maio de 2013

LICENÇA PARA CONTAR: CLEIBSON FREITAS



Cleibson Freitas nasceu em 1985, no Espírito Santo, residindo sempre na cidade de Cariacica. Filhos de pais humildes, tornou-se um apaixonado e curioso pelo ser humano da vida comum. Graduado em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Espírito Santo, o escritor inicia sua carreira com a publicação de O óvulo e o ovo: tudo de novo. Nessa obra, Cleibson Freitas talvez comece seu primeiro e verdadeiro encontro com a arte. Como ele mesmo diz: “escrevo para ser livre. Ou melhor, brincar de ser livre, de ter prazer e brincar de ser Deus. Escrevo para me esconder do mundo e anular-me por completo. A literatura também serve para nos escondermos”. Confira, abaixo, o conto “Constantino Eusébio”:

CONSTATINO EUSÉBIO

Fazia tempo que Altamiro Mendonça Alves, diretor bancário e morador da Avenida Constantino Eusébio, observava o catador de papel Francisco da Cunha Meneses. Todos os dias, no fim da tarde, ali da sacada do seu apartamento onde se recolhia pra tomar uma xícara de café e fumar cigarros Hollywood, Altamiro sempre avistava o homem.

Sujo, barba grande e roupa ordinária, Francisco da Cunha Meneses tinha o hábito vicioso de cumprimentar os transeuntes sem obter resposta: “Boa tarde, moça!”; “Boa tarde, senhora!”; “Boa tarde, menino!”. Nunca havia resposta pra sua modesta educação. A única resposta era só o eco que se fazia no asfalto quente e no paralelepípedo amigo. É que só o paralelepípedo era amigo. Era só nele que Francisco da Cunha Meneses sentava-se com segura intimidade e até conversava: dava “boa tarde” ao paralelepípedo; Lhe contava sobre papéis dos mais variados tipos; Falava de envelopes e de documentos sérios encontrados no meio de papéis vagabundos; Contava sobre quando achava preservativos vivos mijando espermatozóides; Enfim, quantas e quantas vezes Francisco da Cunha Meneses não se pegava contando ao paralelepípedo até problemas pessoais seus. E era ali! Era naquele exato momento que Altamiro Mendonça Alves tinha o ápice do riso. O fato de Francisco não encontrar um interlocutor que desse aceitabilidade à sua fala, era o motivo risível de Altamiro Mendonça Alves, que ali, da sacada do seu apartamento, com uma xícara de café numa mão e um cigarro na outra, todos os dias, no final da tarde, desde muito tempo, observava com imensa satisfação o catador de papel Francisco da Cunha Meneses.

A primeira visão do diretor bancário sobre Francisco da Cunha Meneses é curiosa e espantosa. É que Altamiro nasceu de novo. Seu enxergar meticuloso da figura que recolhia papel fez com que ele permanecesse mais tempo nos movimentos de rotação e de translação da Terra. Tá aí o que se pode chamar de olhar penetrado e esmiuçado! Mas há ainda quem não acredite em olhar deste tipo. Por isso, há os que veem e não enxergam. Nesse dia Altamiro deixou de ver para enxergar. Sua descoberta de que podia enxergar o fez ter um entusiasmo que se explodiu em uma enorme gargalhada.

Altamiro Mendonça Alves muitas vezes tinha visto o homem. Mas foi somente na véspera do aniversário da filha que o enxergou de fato. Nesse dia, Altamiro caminhou decididamente à sacada do seu apartamento pra se suicidar. Transações financeiras indevidas, intensa investigação policial e sentimento de que estava decepcionando a filha fizeram-no criar coragem pra pular do nono andar do Edifício Caribe Center. Porém, no instante em que apenas um milésimo de segundo o deixava oscilar entre a vida e a morte, pois meio corpo de Altamiro já estava do outro lado do parapeito com o salto ensaiado, houve uma brusca mudança de ideia provocada pela repentina visão: o diretor bancário, em meio a sua perturbação mental do suicídio, reparou que Francisco da Cunha Meneses, lá embaixo, na calçada em frente à lixeira, escancarou um largo sorriso sem dentes, por achar e apanhar no chão uma nota que parecia ser de uns cinquenta reais.

Subitamente uma inexplicável e imprevisível alegria tomou conta de Altamiro que, assim como Francisco, riu desesperadamente. Os risos de ambos se organizavam em mútua sintonia. E por algum motivo, que só a alma de Altamiro poderia dizer, o plano do suicídio adiava-se. Altamiro já contornava o parapeito e resolvera ficar mais tempo nos movimentos de rotação e de translação da Terra. E já que aquele um, lá embaixo, foi quem o fizera desistir da façanha do salto, Altamiro achou justo dar uma recompensa ao catador de papel por lhe ter salvado a vida: “Mas como explicar a um traste de homem que ele salvou minha vida?” Ficou assim pensando o bancário durante duas semanas.

Não fazia parte do universo de Altamiro estabelecer diálogos com um homem que falava com paralelepípedo. Altamiro jamais se rebaixaria a tal nível. Preferiria, se fosse o caso, pular do nono andar pra não ter que conversar com sujeitos daquele tipo. Por esse motivo, por não querer diálogo com um homem como Francisco, que Altamiro teve uma fagulha inteligente na ideia: colocaria no lixo, uma vez por semana, sempre na quarta-feira e alguns minutos antes do horário rotineiro em que o catador de papel virava a cesta de lixo de cabeça para baixo, uma quantia razoável em dinheiro como forma de gratidão ao homem que salvara sua vida sem o saber. E de lá, da sacada do seu apartamento, tomando café e fumando cigarros, Altamiro jamais perderia a cara desdentada e alegre de Francisco da Cunha Meneses, quando este, toda quarta-feira, apanhasse o misterioso dinheiro. Essa atitude daria um certo sentido e uma certa alegria à vida de Altamiro e, é claro, também daria um certo sentido e uma certa alegria à vida de Francisco. A alegria de um projetaria-se pra outro, e ambos ficariam satisfeitos.

Um ano, dois meses e quatro dias. Fora esse o tempo que Altamiro Mendonça passou rindo da sacada do seu apartamento e, Francisco, também, lá embaixo, quando apanhava o dinheiro. Essas duas vidas distintas solidarizavam–se em recíproca felicidade.

Francisco da Cunha Meneses de nada sabia. Não desconfiara por que motivo o danado do dinheiro ali aparecia toda quarta-feira. E durante todo o tempo que se passou, ele bem soube investir: adquiriu um fogão novo de seis bocas, comprou um aparelho televisor de plasma, contratou serviço particular de saúde pra filha e até já se preparava pra reformar a casa. Talvez, se disso soubesse Altamiro, era possível até que aumentasse o valor colocado na lixeira. Mas com uma condição: Francisco também teria que aumentar proporcionalmente o largo sorriso desdentado. É que Altamiro estava acostumado com transação. Nada era de graça pra este homem. A especulação, segundo ele, era o que movia a vida.

Figura singular o diretor bancário! Sobretudo, na sua disciplina. Possuía ele uma disciplina de Samurai: dormia às vinte e duas horas regularmente, se levantava às cinco e trinta de segunda à sexta, ia à padaria, passava na banca de revistas pra comprar jornal e  cigarros e retornava pra casa a fim de se aprontar pro trabalho. Antes disso, antes de se aprontar, embrenhando-se nas suas luxuosas gravatas e ternos, Altamiro tomava um rápido café e passava atenciosamente os olhos na seção de economia do jornal, pra verificar o andamento da redução da taxa de juros e o valor do câmbio. Como andava muito preocupado nos últimos tempos com os assuntos policiais, também era comum ele consultar a página do jornal que tratava dessas notícias. Nenhuma novidade, entretanto, encontrava nesta seção. A investigação policial que acusava a direção do seu banco de estar envolvida em um esquema de superfaturamento era sigilosa. Havia cinco meses que nenhuma notícia sobre o assunto era publicada. A polícia não queria divulgar o caso pra não atrapalhar o trabalho de investigação.

–       Acho que vão pedir a quebra de sigilo bancário, disse ele à esposa durante
um café da manhã.
–       Pior, Altamiro, acho que vão pedir o ressarcimento de todo esse dano
causado ao patrimônio público.
–       Você acha, querida?
–       Todos os nossos bens foram adquiridos ilicitamente, Altamiro. Você já
imaginou se te pegarem? Já pensou o escândalo que isso seria? A polícia iria adorar te colocar...
–       Vamos mudar de assunto, querida!
–       Mudar de assunto? Mudar de assunto, Altamiro? Só espero que você pense
na sua filha daqui pra frente!
–       Bom dia. Vou pro trabalho. Você acordou com um péssimo humor hoje.

No trânsito, enquanto dirigia amargurado com as coisas que a esposa havia dito, Altamiro pensou no catador de papel. A sua memória reconstruía involuntariamente a figura espectral de Franscisco. O bancário estava sentindo certa compaixão por aquele homem que catava papel. Sentiu um grande desejo de conhecer Francisco e lhe contar toda a verdade. Contar que era ele que colocava o dinheiro na lixeira e que só fazia isso pra enxergar o sorriso desdentado do catador de papel e que isso era uma maneira dele, Altamiro, sorrir também. Mas qual seria a reação de Francisco? Altamiro tinha medo.

No semáforo, aguardando o sinal verde, foi que teve uma outra fagulha na ideia: iria se aproximar de Francisco sem lhe revelar a verdade. Passaria perto do catador de papel e o aguardaria dizer “boa tarde”, conforme lhe era habitual, e lhe responderia afavelmente. Como Francisco nunca obtinha retorno na sua gentileza, uma resposta ao cumprimento daquele molambo podia ser o estopim de uma aproximação.

Sucedeu que, quando Altamiro passou pela calçada, o catador de papel nada disse. Isso se repetiu durante várias semanas. Francisco cumprimentava todos que passavam na calçada e, na vez de Altamiro, emudecia e nem sequer erguia a cabeça. Desconfiara o bancário de que o catador de papel já havia descoberto toda a verdade. Apesar disso, toda quarta-feira à tarde, o diretor bancário cumpria sempre seu ritual: parava perto da lixeira, olhava pros lados até ter a certeza de que ninguém o espreitava, jogava no lixo o envelope com o dinheiro, corria pro apartamento, preparava uma xícara de café, apanhava os cigarros e se dirigia até a sacada pra esperar Francisco da Cunha Meneses apontar na calçada pra virar a lixeira de ponta cabeça, pegar o envelope, rasgá-lo, segurar o dinheiro na mão e arreganhar o deslumbrado sorriso banguela.

Numa tarde que parecia corriqueira, ao apontar na calçada e atravessar a esquina rumo à lixeira, Francisco da Cunha Meneses foi surpreendido pelo impacto de um Eco sport em alta velocidade. Morreu na hora. Altamiro, lá em cima, da sacada do seu apartamento assistiu a tudo sem piscar os olhos e não resistiu ao choque da perda do homem que lhe trazia felicidade. Então, o salto que ele tinha adiado outrora se realizou. O diretor bancário, numa magistral acrobacia, pulou do nono andar do edifício Caribe Center. O seu corpo fragmentado ficou emparelhado ao lado do espectro de Francisco no meio da movimentada Avenida Constantino Eusébio. Os dois corpos inertes compartilhavam da mais profunda harmonia humana, bem como a multidão de curiosos que se formava ao redor de ambos. 


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