1
As sociedades humanas nada
mais são que cenários teatrais produzidos por nós mesmos, num contexto em que
somos tanto mais coadjuvantes quanto mais acreditamos em nossas próprias vidas,
como se não fossem partes e contrapartes do teatro social no qual atuamos como
personagens de nós mesmos.
2
Se a afirmação “o mundo é
um teatro” é verdadeira o é porque nele atuamos como personagens que
representam a si mesmos e, ao fazê-lo, atuam inevitavelmente como figurantes do
cenário-mor: o teatro civilizacional que nos cabe viver, atuar, cumprindo à
risca um script predeterminado quanto mais nos pensamos livres para escolher o
mesmo, a saber: os objetos, sujeitos, valores, identidades, tecnologias,
percepções, sensações, intelecções, saberes, amores, amigos, inimigos produzidos
pelo próprio teatro civilizacional em que vivemos, para, antes de tudo, compor,
ainda que de forma dinâmica, o seu cenário produtivo e simbólico, com seus
sistemas de bens, com seus palcos institucionais e produtivos, nos quais
atuamos como a gente mesmo, sendo efetivamente mero figurante, independente de
nossa posição social, de vez que de uma forma ou de outra, mesmo como
dissidentes, dependendo das circunstâncias históricas, com o passar do tempo
somos igualmente transformados em ícones após sacrificados – ícones, bem
entendido, do próprio cenário, da própria civilização, da própria farsa que
somos.
3
Em América (1927), romance de Franz Kafka,
o protagonista da narrativa, Karl Rossmann, foge de uma Alemanha decadente,
após ter engravidado uma empregada, e parte clandestinamente para os
Estados Unidos. Sem conseguir trabalhos na terra do Tio Sam, depara-se com um
cartaz que diz: “No hipódromo de Clayton se contratará hoje desde as seis horas
da manhã até a meia-noite, pessoal para o Teatro de Oklahoma. Chama-se o grande
teatro de Oklahoma! (...) Este é o teatro que está em condições de empregar
qualquer pessoa. Maldito seja aquele que não acredite em nós! Adiante, a
Clayton! (Kafka,América,
p.291)”. Diante de um cartaz tão apelativo, Karl não perde tempo, vai depressa
para Clayton, onde tudo que você quiser ser você será. O grande teatro de
Oklahoma, na ficção de Kafka, é a consciência ficcional de que América será
doravante o teatro do mundo e de que a montagem da vida humana, a que chamamos
de civilização, é cenário teatral onde atuamos para sermos o que quisermos,
seja na realidade, seja em sonho, em desejo.
4
Chamemos de teatro dos
figurantes ao Grande Teatro de Oklahoma, pois independente do papel que nele
desempenhamos, em nossas vidas concretas, seremos sempre coadjuvantes de um
cenário civilizacional previamente estabelecido. Chamemos a decadente
civilização burguesa, da qual não passamos de meros figurantes, de o nosso
Grande Teatro de Oklahoma; nela, tal como em Clayton, tudo que quisermos ser,
seremos, num contexto em que sua teatral palavra de ordem é: “Maldito seja aquele
que não acredite em nós!” Chamemos, por outro lado, de Teatro do Desoprimido a
uma aberta, inacabada e experimental forma dramática cujo objetivo principal é:
“Sejamos malditos, não acreditemos no Grande Teatro de Oklahoma da civilização
burguesa!” Fujamos não de uma Europa em decadência rumo ao teatro burguês do
momento, mas antes de tudo fujamos da civilização burguesa que fez de toda a
Terra o cenário de nossa deplorável e submetida presunção de não figurantes,
assim sendo mais ainda.
5
A burguesa civilização é o
cenário dos cenários, o terráqueo cenário de Oklahoma-mundo, formado, deformado
e reformado a partir do caos representacional e apresentacional catárticos do
infernal grande teatro dos figurantes das civilizações pré-modernas, barbárie
de barbárie nas ilhas de mais monumentos à barbárie às quais damos o singelo
nome de O grande teatro humano dos figurantes que pensam não ser.
6
Tal como as civilizações
precedentes, a nossa constituiu-se e se constitui a partir de três forças
despóticas: a hierarquia, a polarização e a exploração. Diante desses três
mastros fundamentais das civilizações de tradição do oprimido, para dialogar
com Walter Benjamin, o teatro como representação isolada, encenado em cenários
prévios, não vale a pena porque tudo alimenta o grande teatro de figurantes da
civilização burguesa; tudo é tomado por suas linhas de força ilusionistas e se
transforma, de um modo ou de outro, em mais hierarquia, mais polarização, mais
opressão.
7
Para transcender o caos
ilusionista da civilização burguesa, o Teatro do Desoprimido não pode acreditar
nem na representação e nem na apresentação, muito menos na catarse nela mesma.
Sendo planetária, a civilização burguesa transforma tudo – a dimensão
econômica, cultural, política, a relações interpessoais – em cenários de sua
própria catarse, colocando-nos na cena ou esteira produtiva, reprodutiva de sua
autovalorização sem fim, sob a forma de mais-valia, a única catarse
verdadeiramente universal. Para tal, ela se vale do melhor de nós: nossa
vontade de viver, nossa potência criativa, nossa individualidade e
coletividade, transformando-nos sem cessar em mercadorias dela mesma, no jogo
cenográfico de seus sistemas físicos (instituições, parques produtivos,
cidades, territórios, corpos, tecnologias); e de seus sistemas discursivos,
saberes, bens simbólicos, afetos, sistemas de comunicação. É assim que somos
apanhados pelos seus cenários físicos e discursivos. É assim que, quanto mais
nos agitamos, para viver, mais nos tornamos coadjuvantes das desdobras e dobras
de sua determinista tragédia: o progresso nele mesmo, por ele mesmo, nas costas
de nós mesmos, como se fôramos o próprio trem descarrilado da forma mercadoria
ou da abstração do dinheiro, a hierarquizar-nos, polarizar-nos, explorar-nos
quanto mais nos iludimos ser livres dentro dela, através dela, contra ou a
favor dela.
8
Para o Teatro do desoprimido, desoprimir é produzir
um teatro real e militante de desconstrução dos sistemas de bens e de terror da
civilização burguesa em seu conjunto, no Ocidente e no Oriente. Édipo
rei(427 a .
C), de Sófocles, é, sob esse ponto de vista, um marco importante para o Teatro
do Desoprimido, pela dupla questão trágica que apresenta e representa: a do
incesto e da cegueira. Aquele porque na civilização burguesa, tudo é incestuoso,
inclusive o bem e o mal, inclusive os opressores e os oprimidos, direita e
esquerda, norte e sul, cristãos, mulçumanos, judaísmo. A segunda, a cegueira,
porque, num mundo de incesto generalizado, no qual, negando-o mais o afirmamos,
só nos resta a cegueira como precária condição desesperada para nem nos vermos
nele e nem o vermos, na ilusão de que, cegos, estamos fora dela, da vergonha de
ser um coadjuvante inevitável da farsa trágica que montamos para nós mesmos,
animais de rebanhos que temos sido, independente se somos reis ou se somos
súditos, exploradores e explorados.
9
No entanto, ainda que seja uma referência
dialógica, mais que ideológica, Édipo rei o é pelo o que o Teatro do Desoprimido
não pode ser: incestuoso ou cego. Não acreditamos nessa falsa alternativa
trágica: a farsa montada para ser assim a fim de que o grande teatro de
figurantes das civilizações humanas permaneça como sempre foi: hierárquico,
polarizado, usurpador. O personagem Édipo, da peça de Sófocles, não passou
ainda de um coadjuvante ao mesmo tempo opressor e oprimido. Ele é um personagem
envergonhado pelo incesto geral de nossas civilizações de tradição do oprimido.
10
Para o Teatro do
Desoprimido, não existe espaços para vergonha; é um teatro sem vergonha
precisamente em relação às representações apresentadas como as únicas possíveis
na trágica farsa da opressão oprimida que toma tudo e nos toma, oprimidamente,
independente da posição social que ocupamos, teatralizando-nos sem cessar.
11
Hamlet (1601), de Shakespeare, também é um referencial
importante não apenas por causa do “ser e não ser”, no famoso monólogo de
Hamlet, a dúvida como fundamento sem fundamento, mas também e antes de tudo por
ser uma peça que se sabe representação e, sabendo, sabe que tudo é representação
de representação, logo farsa, num mundo de hierarquias, polarizações,
sequestros das multiplicidades vitais. Sob esse ponto de vista, a observação do
personagem Apolônio, ao se referir à própria peça, é exemplar: “Esta é um
drama, uma farsa, uma pastoral, uma tragédia”, tudo ao mesmo tempo agora, num
contexto em que o referente que interessa para o demonstrativo “esta”, é a
própria tradição do oprimido: uma farsa, um drama, uma pastoral, uma tragédia;
uma enfim mistura de gêneros representativos a nos representar quanto mais os
representamos com a nossa própria apresentação corporal, pessoal, burguesa,
porque, compartilhando com Robert Kurz, tudo na civilização burguesa se
transforma em forma-mercadoria, razão pela qual tudo é aburguesado.
12
A estética teatral de
Bertold Brecht também nos é uma referência importante no que contém de vontade
de desrepresentar através da recusa ao recurso aristotélico da catarse, como
que a dizer, em suas peças, e efetivamente dizendo: público que nos vê, o teatro
não é a vida e a vida não é o teatro, embora o que veem, a montagem, o teatro
em si, seja o que a vida da tradição do oprimido é, tal qual o teatro: uma
montagem feita para produzir catarse, para purgar sua emoção a um tempo de
opressor e oprimido a fim de que tudo venha a mudar, emotivamente, para nada
mudar.
13
Com Brecht aprendemos que a
catarse deve sair da representação e alcançar a vida individual e coletiva, na
montagem mesma que interessa: a do teatro civilizacional da civilização
burguesa. O Teatro do Desoprimido tem como desafio experimental purgar emoções
revolucionárias dentro dos sistemas de montagem da civilização burguesa, sem,
para fazer-se como revolucionário, se deter às suas armadilhas cenográficas – e
tudo é cenografia, saberes, poderes, viveres, na, da e para a civilização
burguesa. Para tanto, repetimos, o Teatro do Desoprimido não representa, atua,
intervém, faz da vida um teatro da vida: um teatro fora da civilização
burguesa, experimentalmente, ao mesmo tempo vivendo e atuando, pondo-a em xeque
precisamente nas suas linhas de força, no momento histórico de sua montagem
produtiva planetária.
14
Esta observação precedente
é fundamental e faz do Teatro do Desoprimido uma potência ao mesmo tempo
artística e política, além de pensante, amorosa, tendo em vista, como desafio
histórico, as seguintes questões: quais são os cenários fundamentais do sistema
de montagem da civilização burguesa no atual presente da humanidade? Onde
devemos intervir de forma desoprimida, desconstruindo tanto a opressão como o
oprimido? Essas são duas perguntas de extrema importância para o Teatro do
Desoprimido. Não temos mais tempo a perder e tampouco podemos desperdiçar
nossas energias teatrais desopressoras.
15
É preciso, pois, escolher o alvo certo para teatralizar
nele, num catártico e vivo exercício experimental de desopressão individual e
coletiva, a fim de desrepresentarmos os ícones representativos da civilização
burguesa atual, desmontando-os teatralmente, e, ao mesmo tempo, realmente,
surpreendendo-nos no flagrante delito de pertencer a esta genocida e patológica
civilização, pois tudo é delituoso nas sociedades de hierarquia, de
polarização, de exploração; tudo é delituoso e ao mesmo tempo, como dissera o
personagem Apolônio de Hamlet, farsante, dramático, idílico e
trágico, sem contradição alguma.
16
Não resta a menor dúvida de
que as cenografias fundamentais do atual presente histórico da humanidade são
as montagens farsantes, dramáticas, idílicas, trágicas e antes de tudo
publicitárias das corporações multinacionais. São elas que mandam e desmandam
por todos os lados; são elas que arranjam e rearranjam as configurações
econômicas, subjetivas e epistêmicas da humanidade toda, razão pela qual são
elas que o Teatro do Desoprimido tem o desafio de desmontar, revelando os
mecanismos de suas farsantes catarses com muito humor, com muita inteligência,
plasticidade, parodiando caricaturalmente suas táticas, estratégicas e
objetivos explícitos e ocultos.
17
Outra importante referência
para o Teatro do Desoprimido é a estética do pior de Samuel Beckett, com seus
cenários textuais mínimos e predominantemente representados por personagens
velhos, vetustos, fora das ilusões da vida no mundo burguês, onde a velhice não
tem vez pela singela razão de que a principal farsa de nossa civilização é
precisamente o esforço que ela faz para camuflar sua velhice histórica.
18
Nossa civilização, herdeira
das demais, de tradição do oprimido, é vetusta, razão pela qual nela nascemos
velhos, milenares, antigos, antiguíssimos. O Teatro do Desoprimido é também um
exercício experimental de juventude que de desoprime, logo rejuvenesce, na
contramão da velharia geral que é a civilização burguesa. Desoprimir-se, nesse
sentido, é rejuvenescer, logo é tornar-se desburguês, porque uma coisa é certa,
na civilização em que vivemos todos somos velhamente burgueses, sem exceção,
opressores e oprimidos. É por isso que desoprimir significa uma intervenção
teatral individual e coletiva (sempre uma coisa e outra, de forma
indiscernível) para fora da condição do opressor e de oprimido, procurando
esconjurar a ambos a fim de produzir o fora da tradição do oprimido, atuando,
vivendo, teatralizando-nos como não oprimidos e não opressores, tendo como foco
de desmontagem as corporações multinacionais que por todo lado configuram e
desconfiguram os rostos dos opressores e dos oprimidos, chamando-nos sem cessar
de vetustos doentes de nós mesmos, expulsando-nos para a condição de
anacrônicos quanto mais nos acreditamos atuais, jovens, contemporâneos.
19
Por fim, outro importante
marco intertextual para o Teatro do Desoprimido é o nosso Teatro do Oprimido,
de Augusto Boal. Do Teatro do Oprimido, o do Desoprimido se inspira, longe de
qualquer mistificação, por causa de sua escolha política: no oprimido. Não
existe outro modo de transformar revolucionariamente as civilizações de
tradição do oprimido, como a nossa, sem fazer uma opção clara por este último.
Qualquer outra escolha que não se fundamente por esse ponto de vista decisivo
significa a opção contrária: pelo opressor. Só existe outra forma de
transcender a relação entre oprimido e opressor senão fazendo opção pelo
oprimido, porque este é o que contém a potência, mesmo que não o saiba ou que a
recuse, de produzir o fora da civilização burguesa, por ser fundamentalmente o
que perde, a própria vida, nela.
20
Por outro lado, sem
qualquer pretensão de originalidade, afirmamos que a relação entre opressor e
oprimido é parte e contraparte da civilização burguesa, razão por que fazer
opção pelo oprimido não significa e não pode significar apegar-se à condição de
vítima, buscando, como recompensa, a reparação dos danos historicamente
sofridos. A civilização burguesa sofre do mal de representação de si mesma
através da repetição dramática e exaustiva, por todos os lados, da figura do
opressor e do oprimido, mesmo considerando a circunstância de que todo oprimido
possui uma legião de opressores em si e todo opressor possui outra legião de
oprimidos. Tudo isso é extremamente enfadonho e nunca sai do lugar, anda em
círculos; movimenta-se para mais tragicamente se reproduzir, de forma catártica
e farsesca.
21
Para sair desse sistema de
farsas entediantes que teatralizam sem cessar as mutações do mesmo, é preciso
produzir o teatro do oprimido desoprimindo-se nos cenários dominantes da
opressão contemporânea, quais sejam: as multinacionais e muito especialmente as
corporações midiáticas locais e planetárias. O farsante teatro da opressão
ocorre nesses cenários de modo que é neles que o teatro do desoprimido está na
alegre, despojada, corajosa, revolucionária obrigação de intervir,
dramaticamente, mas fora do sistema de catarse, como o de opressor e oprimido,
da civilização burguesa.
22
Embora o oprimido tenha
nome próprio e o é antes de tudo em relação aos três poderes mais opressores da
história da humanidade, o econômico, o étnico e o patriarcal, num certo
sentido, na civilização burguesa (mais que dizer que todos somos opressores, como
é comum ouvir aqui e ali, especialmente nos círculos supostamente bem
informados) é o contrário que devemos dizer: nela todos somos oprimidos, pois
todos estamos condenados à mesma humanidade hierárquica, polarizadora, ancorada
na exploração econômica, étnica e de gênero.
23
É nesse sentido que
acreditamos ser possível dizer que o Teatro do Desoprimido é de todos e de
ninguém, assim como não temos receio de afirmar que a universalidade dele se
inscreve no desafio da teatralização liberadora para todos os humanos, através
de uma catarse militante que sabe definir o interlocutor a ser negado, a
civilização burguesa; assim como sabe teatralizar experimentalmente o que deve
ser afirmado: outro modelo de civilização, sem hierarquias, sem polarizações,
sem exploração, num comunismo planetário sem atores da representação e
apresentação burguesas; sem, pois, opressores e oprimidos e seus dilemas com
seus enfadonhos e neuróticos lemas de mais opressor e mais oprimido quanto mais
nos fazemos sem buscar um fora em relação ao cenário planetário dentro do qual
somos todos figurantes da abstração geral do dinheiro.
24
O Grande Teatro Oklahoma do
mundo contemporâneo da civilização burguesa que incessantemente, de forma
absolutamente apelativa, nos diz: “Aqui você pode ser tudo que quiser!”, tem
nome próprio: as corporações midiáticas planetárias. São elas que nos amedrontam
sorrindo com a seguinte palavra de ordem, por todos os lados, nunca alados:
“Maldito seja aquele que não acredite em nós!” Por todos os lados, nunca
alados, insisto, o que vemos é a submissão a essa palavra de ordem intimidadora
e sedutora, sem contradição alguma. É assim que a política se rende ao Grande
Teatro de Oklahoma das corporações midiáticas. É assim que a educação
igualmente se rende, em todos os níveis. É assim que o poder judiciário também
se rende e por sua vez o poder executivo, o legislativo, o ministério público,
a polícia federal, o que chamamos de arte, a música popular e a não popular, o
amor. É assim enfim e em começo que nos rendemos: atuando como figurantes,
quanto mais famosos, no Grande Teatro de Oklahoma das corporações midiáticas.
25
Por todo lado, tendo em
vista o Grande Teatro das corporações midiáticas, todo aquele que descrê de sua
religião catártica espetacular, planetária, será visto, por todos os figurantes
protagonistas (porque desejam ser famosos, midiaticamente), como malditos
porque não creem nas representações e apresentações, sempre publicitárias, da
catarse geral que as corporações midiáticas descarregam sem cessar por todo o
planeta em nome do cenário milenarmente construído da burguesa civilização,
teatro de todos os teatros civilizacionais precedentes, razão pela qual é
performática o suficiente para teatralizar todos os dramas: o drama de ser
opressor, o drama de ser oprimido, o drama de ser democrático, o drama de ser
ditador, o drama de ser negro, branco, amarelo, cristão, homem, mulher; de ser
enfim mais um figurante rosto teatral da civilização burguesa.
26
As corporações midiáticas
desempenham uma importância axial, para o Grande Teatro dos figurantes da
civilização burguesa atual, que se desmorona e nos desmorona, sempre como
coadjuvantes quanto mais nos acreditamos livres dentro desse cenário, através
de seus intrincados sistemas de referências ilusionistas. Sem as corporações
midiáticas, a civilização burguesa transformará a todos os humanos, seus
oprimidos reais, em malditos porque estes não mais acreditarão nela. As
corporações midiáticas, portanto, com sua função teatro dentro da função
teatral maior da civilização burguesa, possuem o seguinte e inexorável desafio:
o de gestora catártica das crenças milenares que a humanidade vem produzindo no
interior sem fundo de suas teatrais civilizações de figurantes, os quais se
pensam protagonistas de si mesmos quanto mais são coadjuvantes do despotismo e
carnificina generalizados que as determinam em seus sistemas de montagem mesmo,
razão pela qual o desafio desde sempre foi o de desmontar o sistema de montagem
ilusionista e real das civilizações de hierarquia, de exploração e de
polarização.
27
Eis porque o verdadeiro
inimigo da atual teatro de Oklahoma da civilização burguesa é: aqueles que não
acreditam nela! Nada pior para a civilização burguesa do que a não crença nela
mesma, não crendo nem no opressor, nem no oprimido, nem na profusão de rostos
que ela produz, como mercadorias, por todos os lados, nunca alados. É por isso
que as corporações midiáticas chamam de liberdade de expressão a crença de que
liberdade de expressão é a livre ditadura planetária delas mesmas, acusando
desde logo de malditos a qualquer um que não crê na ilusionista e catártica
liberdade de expressão dos donos das mídias, eles mesmos figurantes dos donos
do poder bélico, que são figurantes dos donos do poder do petróleo, que são
figurantes dos donos do poder bancário, que são figurantes dos donos do poder
farmacêutico, que são figurantes dos donos do poder agrário, que são figurantes
dos donos dos poderes dos Estados burgueses, que são figurantes de todos os
poderes, num vicioso círculo catártico planetário no qual um dono de cenário de
produção do teatro burguês é também figurante de outro e os demais, os
despossuídos, não passam de figurantes sem posses, sendo mais figurantes, logo
mais despossuídos ainda, quanto mais desejam possuir, serem eles mesmos um
teatral sistema de bem da civilização burguesa.
28
Os meios de comunicação da
civilização burguesa são, pois, as tecnologias catárticas da crença geral no
grande teatro de Oklahoma do mundo burguês. O Teatro do Desoprimido, tem,
assim, um duplo desafio correlacionado: contribuir para desoprimirmos das
crenças das e nos cenários produtivos e simbólicos da civilização burguesa,
começando estrategicamente pela produção militante de descrenças em relação às
corporações midiáticas, comprometidas até o miolo com três crenças
fundamentais, na atualidade: a crença no imperialismo ocidental-americano, a
crença no estilo americano de vida e a crença nelas mesmas, nas corporações
midiáticas, as únicas que são ao mesmo tempo produtoras mundiais de catárticas
mentiras e de não menos catárticas publicidades de suas mentiras, vendendo-as
como hipercatárticas mentirosas verdades da civilização burguesa.
29
Como começo de conversa, o
Teatro do Desoprimido não crê, em três monumentais catarses do mundo
contemporâneo, a saber: a catarse das corporações midiáticas (e por extensão de
todas as corporações teatrais de poder), a catarse no imperialismo
ocidental-americano (principal gestor das catarses corporativas), a catarse do
estilo americano de vida (modelo de subjetividade não menos catártico da
catarse imperialista e da catarse corporativa).
30
Tudo que vem dessas três
formas de catarses planetárias, o lugar por excelência dos figurantes, deve ser
claramente recusado, parodiado, avacalhado, desqualificado pelos atores vitais
do Teatro do Desoprimido do mundo todo, mas sempre como começo de conversa,
pois, não nos iludamos, catarticamente: o hipercenário planetário da
civilização burguesa produziu, na atualidade, o grande teatro de Oklahoma
mundial do figurante povo burguês.
31
É assim que o Teatro do
Desoprimido deve recusar terminantemente a intervenção imperialista no estilo
catártico humanitário em qualquer lugar do planeta; intervenção sempre apoiada
e catarticamente defendida pelas corporações midiáticas da civilização burguesa
planetária. Sob esse ponto de vista, é necessário não hesitar nunca: se existir
interesse imperialista e corporativo na destituição do governo da Síria, então
sejamos mais pró-governo sírio do que nunca, mas sempre compreendendo que tal
governo (e todos, num certo sentido) é parte da tragédia geral da civilização
burguesa, razão pela qual deve ser apenas transitoriamente apoiado diante do
perigo-mor: o imperialismo ocidental-americano e suas corporações cenográficas
do teatro da mais-valia do mundo contemporâneo.
32
O mesmo argumento vale, no
campo da desopressão, para a Venezuela, Irã, Líbano, Brasil, Argentina,
Bolívia, Equador e afinal para literalmente todos os países do mundo forçados a
serem meros figurantes do Grande Teatro de Oklahoma das corporações ao mesmo
tempo bélicas, econômicas, culturais, midiáticas, tecnológicas e epistêmicas do
imperialismo ocidental-americano.
33
O Teatro do Desoprimido,
portanto, porque não representa, intervém, milita, sabendo que os cenários da
farta burguesa já estão previamente montados, não apenas deve contribuir para
desmontá-los, mas também antes de tudo saber escolher os cenários que mais
urgentemente devem ser desmontados se quisermos trabalhar realmente para o fim
das civilizações de hierarquias, de exploração e de polarização, as quais
alcançaram, quer queiramos ou não, o seu fim com a civilização burguesa, pela
evidente razão de que, se não destituímos o complexo sistema de hierarquia, de
polarização e de exploração da atual civilização teatral planetária, não
existirá mais humanidade, essa farsante comédia, trágica da pastoral de si
mesma, quando atua nos cenários civilizacionais de uma humanidade como
figurante (leia-se refém) catártica dela mesma.
34
Mas afinal onde está o
Teatro do Desoprimido? O Teatro do Desoprimido não existe de tanto existir. Não
precisa falar em nome de nada e de ninguém. Nós o produziremos integralmente
quando todos nos tornamos desoprimidos, quando não mais existirem hierarquias,
explorações, polarizações.
35
Comecemos (e há milhares de
anos que estamos começando) com toda coragem e ousadia, destituindo, a Igreja
do teatro das convictas e voluntárias servidões catárticas da atualidade: as
corporações midiáticas. Façamos de seus farsantes cenários, desmontando-os, o
início de uma era de protagonistas de nós mesmos, sem precisar de catárticos
reconhecimentos do cenário civilizacional burguês.
36
As corporações midiáticas,
como gestoras mundiais das catarses da civilização burguesa, são o cenário que
devemos desmontar necessariamente; e não nos iludamos, burguesmente, a
respeito. Sem a destituição de suas pirotecnias ilusionistas planetárias,
jamais transformaremos a humanidade em protagonista do instigante palco de
beleza, de criação, de felicidade, de bondade, de cuidado individual e
coletivo, através de um cenário civilizacional sem opressores e sem oprimidos;
de desoprimidas liberdades de expressão, no teatro planetário da infinita
liberdade para inventar reais catarses de justiças, na criação lírica de si por
meio da criação epopeica de qualquer um, desmontando sem cessar hierarquias,
explorações e polarizações.
37
Então, no lugar das mídias
de opressão do farsante teatro da atualidade, teremos as mídias da desopressão
como meios de nossos enleios.
***
Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo.
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