sexta-feira, 9 de março de 2012

"LICENÇA PARA CONTAR": ALBERTO MATOS


Alberto Matos, graduado em comunicação social pela UFES. Escritor, crítico e amante de todas as artes. Confira, abaixo, o conto “O olhar e o olhar de Maria das Dores”:

O OLHAR E O OLHAR DE MARIA DAS DORES

Alheia às desventuras climáticas que tornavam cada vez mais quentes os seus dias e cada vez mais árida a sua terra; como o fazia todas as manhãs, Maria acordou, fez o café, apanhou sobre a mesa a tapioca assada por ela na noite anterior e foi sentar-se à sombra tímida do pé de juá.

No banquinho de madeira, repetia seu ritual matutino, aproveitando a pouca brisa que o ar lhe trazia e pensava. Pensava no couro de carneiro curtido e que em poucas horas, por suas mãos calejadas, viraria sandálias.

Maria das Dores era seu nome. Filha de Celestino e Maria da Ajuda. Irmã de Francisco, Joaquim, Antônio, João, Lázaro, Pedro, José, Celestina, Maria de Nazaré, Maria Francisca e Maria Cândida. Mulher de estatura pequena, braços fortes e olhar de quem já vira de tudo na vida.

As terras eram herança de seu pai; o juazeiro, lembrança de sua mãe e a arte de calçar o povo era dom de Deus, assim como o dom de cantar enquanto tecia o couro duro até que o toque reconhecesse a perfeição de seu trabalho.

Nesse dia, permitiu-se ficar um pouco mais à sombra e adiou o início de seus afazeres diários. Os pés descalços deslizavam sobre a terra seca como se desenhos quisessem fazer. Podia ouvir ao longe o som dos poucos passantes na estrada e naquele momento se deu conta de que ela mesma jamais percorrera qualquer estrada. Dedicara a vida a cuidar dos pais, dos irmãos menores e de quem mais por ali aparecesse.

Refeita de seu momento nostálgico, caminhou até os fundos da casa e se pôs a cortar, costurar, cantar e tocar carinhosamente cada sandália pronta. Assim foi até que o sol estivesse à pino e lhe mostrasse que era hora de parar para o almoço.

Ritualmente, retirou da lata de banha um pedaço da carne do carneiro que ela mesma preparara dias atrás e o aqueceu enquanto a água cozinhava a macaxeira que complementaria sua refeição.

- Das Dores!

- Se achegue, Do Carmo!

Maria do Carmo. Maria das Dores. Marias de uma terra pobre, unidas pelas agruras, carmas e dores da vida. Mas, também, unidas pela amizade que a infância seca fez questão de preservar à idade adulta.

- Chegou na horinha. Se assente que já lhe faço um prato.

- Carece não, Das Dores. Tô indo na casa de Seu Antônio e vim perguntar se tu quer surubim.

- Oxe que faz tempo que não faço um surubim, Das Dores. Só tu mesmo pra me fazer isso.

- Oxe, que bobagem, loguinho tô voltando.

O dia passou lento até que o vento do entardecer trouxe com ele a preocupação de Maria com a amiga. Maria do Carmo era mulher de palavra e o fato de não haver voltado com os prometidos surubins a deixava pensando. Mas, pensando em que? No que pensaria alguém que nascera e crescera numa terra esquecida pela chuva e pelos homens? No que pensaria alguém que uma única vez mergulhou as mãos nas águas do São Francisco?

O anoitecer aumentou a angústia e o canto dos grilos pareciam lamentos que a sensibilidade da alma de Maria podia entender como gritos de socorro.

Sem muito pensar, levantou-se e saiu porta afora, lampião na mão, como se destino traçado tivera. Parecia esquecer-se que, dentre os dons que Deus lhe dera, não estava a visão física. Mas partiu noite adentro como se a vista da alma lhe pudesse guiar.

No início foram tropeços pelo caminho tão perto, tão desconhecido para si. Mas, a esta altura, nada a poderia deter. Despira-se de seus medos e obstinada continuava sua caminhada cega e lúcida.

Depois de algum tempo, ouviu vozes ao longe. À medida que caminhava, as vozes pareciam tornar-se mais distantes e, então, pensou estar caminhando na direção errada. Parou e instintivamente começou a cantarolar:

“...E quem é ele? E quem é ele? É o padre Cícero Romão, do Juazeiro do Norte, meu padim, sua bênção!"

Como que por milagre de Cícero, sua canção foi respondida por uma voz ao longe:

- Quem vem lá?

Seu coração disparou num misto de felicidade e temor, tal qual um marinheiro absorto pelo tanto navegar ao avistar a terra firme e desconhecida.

- Maria das Dores, filha de Celestino. Quem se achega?

- É Pedro, filho de Antonio peixeiro. A senhora pode continuar sua cantoria que eu me achego pela luz da lamparina.

E Pedro veio ao seu encontro, guiado pela voz cega de Maria, pela luz muda da lamparina e pelo cheiro enfumaçado do querosene.

- Oxe, Dona Maria! Que é que a senhora tá fazendo andando sozinha no meio da noite?

- Olhe menino, eu to aqui andando aperreada atrás de Do Carmo. Tu viste ela por essas bandas?

- Olhe só. Dona Do Carmo foi lá no meu pai depois da hora do almoço pra comprar uns surubim. Inté disse que ia levar uns lá pra senhora. Mas, oxe, tem muito tempo isso, dona.

- Tu viste ela ir embora?

- Mas vi sim senhora. Inté mandei umas pinha bonita que tinha tirado cedo.

Nesse momento, Maria das Dores fechou os olhos sem luz e soltou um grito que pareceu estremecer a terra.

Pedro aproximou-se mais, a segurou pelo braço e perguntou o que se passava. Das Dores permaneceu imóvel, olhos cerrados e inerte como se tivera sido transportada para outro mundo. Foram quase cinco minutos de silêncio absoluto, até que abriu os olhos e disse:

- Menino Pedro, Do Carmo foi apunhalada sete vezes, depois foi arrastada até a margem do rio e conforme o rio subiu, ela foi levada pelas águas.

O rosto de Pedro transfigurou-se.

- Oxe, Dona Maria. Quem ia fazer uma desgraceira dessa com Dona do Carmo?

- Isso meu "padim" não mostrou não. Mas, é certeza que a desgraça aconteceu.

Passaram-se os meses, assim como passaram pela casa de Maria, o delegado, o investigador, as equipes de reportagem, os videntes e todos aqueles que instigados pela visão contada pelo filho do peixeiro, iam pedir preces ou pelo menos conhecer a mulher que podia ouvir o Padre Cícero. Em alguns dias, sob o sol causticante, podia-se contar filas com mais de duzentas, trezentas pessoas, esperando, terços em punho, pela oportunidade de se aproximar de Maria e pelo menos tocar-lhe as mãos.

Maria não mais podia curtir o couro dos carneiros que, como ela, envelheciam por seu terreiro sem vida. Nunca mais pudera sentar-se à sombra do pé de juá sem que uma multidão a estivesse acompanhando. O juazeiro só compartilhava com ela a luz da lua, o único momento em que podia se sentir aliviada de tantas rezas, perguntas e lamentos. Nunca fora de muito rezar. Apesar de ter fé em seu “padim”, na beata Maria e em Nosso Senhor Jesus Cristo, Maria sempre fez suas preces cantando, sem muitos terços, ave-marias ou padre-nossos. Ao contrário de dona Maria da Ajuda, sua mãe, que acordava de madrugada para rezar terços e passava dias em jejum por gratidão ou pedido aos santos.

Maria cresceu ouvindo sua mãe dizer que no dia de seu nascimento, vinte de julho, viu à beira da cama a imagem do Padre Cícero a lhe estender os braços e a lhe dizer que naquele dia havia nascido uma criança com o olho de Deus. Essa história foi contada aos quatro cantos do Juazeiro, mas, com o passar dos anos, a promessa de se ter ali uma santa perdeu-se no vento. Nunca fizera milagre algum a não ser o de transformar couro de bicho em artefato para calçar o povo. Assim como a lenda de sua santidade, a visão que tivera da morte de Maria do Carmo, aos poucos, deixou de ter importância para o povo da região e ibope para os meios de comunicação.

A vida voltava ao normal a cada amanhecer. Maria já podia cantar depois de quase dois anos do acontecimento. Pedro já era um rapaz feito e, dia ou outro, aparecia levando uma fruta ou um punhado de surubins. A agonia do momento vivido junto a Maria os tornara próximos, como se amigos fossem há tempos.

- Dona Maria!

- Se achegue, Pedro. Tô aqui a costurar.

- Dona Maria, eu tô que tô aperreado desde ontem de noitinha.

- Vixi, menino. O que se assucedeu?

- Olhe que ontem eu tava lá arrumando as coisas de casa e achei esse cordãozinho. Pega só pra senhora ver.

Com o olhar que só o tato poderia lhe dar, Maria viu que era um objeto que conhecia muito bem e de longa data.

- Menino! Mas esse cordão é de Do Carmo. Oxe se não é o cordão com a chavezinha que ela não tirava do pescoço. Onde tu achou isso?

- Tô lhe dizendo. Tava arrumando as coisa lá no quartinho dos fundo quando vi que tinha um troço reluzindo no chão.

Pedro pôde ver o semblante de Maria transformar-se enquanto carinhosamente apalpava o objeto em suas mãos e, nesse pequeno instante, passaram-lhe pela cabeça os mais estranhos pensamentos. O que estaria aquela senhora de aparência franzina à sua frente a imaginar?

Não era letrado. Era filho de pescador e, como tal, aprendiz de pescador era. É certo que não gozava do dom como o seu pai, mas, para quem crescera acostumado ao cheiro do agora escasso pescado e sem grandes oportunidades numa terra pobre, ser pescador era o ofício que se apresentava para seguir.

- Se avexe não, menino. Eu estou cá com meus pensamentos mas não to a pensar nada de mal de ti ou de seu Antônio.

- Olhe, Dona Maria. Antes de trazer o cordãozinho eu perguntei pro pai se ele sabia de quem era. Como ele disse que nunca tinha visto eu trouxe pra senhora.

- Mas então eu não sei? Do Carmo andava com essa chavinha no pescoço mas nunca ninguém podia ver não. Estava sempre por debaixo da roupa. Só sei que fazia muitos tempos que tinha esse pertence.

O cordãozinho em questão era uma peça de prata antiga, com uns sessenta centímetros, trançada de forma tão perfeita que só poderia ter sido arte de um grande mestre. A tal chavezinha era sim uma chave pequena, feita em ouro e, embora desse nobre metal fosse feita, parecia desgastada pelo tempo ou pelo seu contínuo uso. Maria deitou a chave sobre a velha mesa de madeira ao lado de sua cama e ali ela permaneceu por dias, meses, anos.

Todos nas redondezas já haviam esquecido o desaparecimento de Maria do Carmo, assim como haviam esquecido todos os fatos que dele decorreram. A vida de Maria das Dores seguia seu ritmo e as novidades trazidas pelos passantes já não lhe despertavam qualquer sentimento. Ora falavam da intensa seca; ora reclamavam que o rio, antes abundante em peixes, estava secando e, ora, ainda, passavam só para comprar um par de sandálias de couro.

É bem verdade que Maria, mesmo sem poder ver, sentia que os dias estavam mais quentes, que sua terra estava mais seca e que seus carneiros já não podiam lhe dar a mesma quantidade de couro de antes. Sentia, também, a escassez do peixe, o gosto diferente da macaxeira, mas, alheia a tudo, sentia que seu tempo também não era tão longo. Suas mãos, outrora ágeis e aguçadas, tal qual a vista da patativa, já não podiam tecer com a mesma velocidade. Numa noite de calor intenso, sem conseguir dormir, Maria levantou-se, abriu a janela de seu quarto e ali se debruçou como se a vista da noite pudesse apreciar. Permaneceu ali, sentindo a pouca brisa que lhe soprava o rosto até que ouviu o som de algo caindo ao chão. Virou-se e, instintivamente, curvou-se próxima a mesa de sua cabeceira. Não precisou sentir o assoalho de madeira muitas vezes e em suas mãos já estava o cordãozinho de Do Carmo. Como não era mulher de se deixar impressionar, apertou o objeto em suas mãos, fechou a janela e voltou a se deitar.

Nesta noite teve um sonho. Estava sentada só, à beira do São Francisco. Era só uma menina de nove, dez anos de idade. Vestido branco de missa. Sentia a água lhe tocar os pés e podia enxergar. Sim, em seu sonho Maria podia ver como todos vêem. Contemplava a água límpida e os peixes que pareciam vir brincar com seus pés sob a água. A frescura do dia a animava e ela se pôs a andar pelas margens. Como criança curiosa e estupefata pelo que a visão lhe podia dar, afastou-se tanto que chegou a uma plantação de cajueiros. Percebeu não estar sozinha quando uma outra criança se aproximou e a convidou para deliciar-se com os belos frutos que estavam ali, bem ao alcance de suas mãos. Era Maria do Carmo. Igualmente vestidinha de branco, falante como a conhecera e feliz por estar ao seu lado naquele paraíso, desfrutando de um momento que jamais fora possível.

O sonho durou tanto tempo que Maria, acostumada a acordar ao primeiro berro de qualquer de seus carneiros, levantou-se com o sol já a atravessar as frestas da janela.. Quem pudesse ver seu rosto nessa hora saberia que estava feliz. Era como se de uma grande e bonita viajem tivesse acabado de aportar.

Neste dia não cumpriu suas rotinas matinais. Limitou-se a fazer seu café forte, tomar nas mãos a velha caneca de ágata e a sentar-se sobre o juazeiro. Ali permaneceu até a chegada de Pedro, que vinha lhe trazendo um punhado de bonitos cajus maduros.

- Dia, Dona Maria!

- Dia, Pedro. Tava aqui justinho esperando por ti.

Na cabeça de Maria, desde a hora que acordara, o único intuito era ir até a casa de Maria do Carmo. Não sabia o porque de tão obstinado desejo, mas, sabia que lá queria ir.

Calçou suas sandálias e, seguindo a voz de Pedro e as antigas lembranças do trajeto, se pôs a caminho.

A casa permanecia como se sua dona ainda a habitasse e tivesse somente saído para buscar seu peixe ou visitar a amiga.

Maria se aproximou da porta e pediu a Pedro que tentasse destrancar a fechadura já corroída pela ferrugem. Para surpresa, a porta não estava trancada. Entraram e Maria, tateando as paredes de estuque, chegou até ao quarto de Das Dores. Ali, sentou-se na cama e pediu a Pedro que a deixasse só por uns instantes. Balançava as pernas soltas no ar e pensava em seu sonho. Em uma das mãos, apertava o cordão com a chave. Nesse momento, sentiu seus pés baterem em algo sob a cama.

- PedroI Pedro!

- To aqui dona Maria, que se assucedeu?

- Pedro, tem uma coisa por debaixo da cama. Tu pode ver o que é?

- Oxe! Mas é uma caixa bonita que só vendo dona Maria. Passe só a mão pra ver.

A caixa dita por Pedro era, na verdade, um pequeno baú esculpido em baraúna e adornado com pinturas vivas de anjos, arcanjos, querubins e outros seres celestes.

À pedido de Maria, o rapaz levou o baú até sua casa. Lá chegando, Maria agradeceu e despediu-se dizendo se sentir cansada da caminhada.

Assim que Pedro saiu, Maria fechou as portas da casa, colocou o baú sobre a mesa da cozinha, e, com a mais absoluta certeza de sua existência, o abriu com a chave de ouro que carregava junto ao cordão.

Aberto o baú, uma grande luz tomou conta da pequena casa. Era como se mil lâmpadas tivessem se acendido ao mesmo tempo. Tão forte foi o clarão que foi visto a léguas dali.

Pela primeira vez em sua vida, Maria pôde enxergar. Não mais enxergar com a visão do tato, mas enxergar com os olhos. Deslumbrou-se ao ver os móveis de sua casa, seu bule de café, a madeira da mesa. Foi até sua pequena oficina e lá contemplou o couro, as sandálias, as ferramentas com que suas mãos trabalharam por anos. Saiu porta afora e viu seus carneiros magros, viu o entardecer e viu seu Padim recostado no pé de Juá.

- Meu Santo! Prá que tudo isso?

O Santo fitava, sorridente, o rosto em lágrimas de Maria das Dores e, sem palavra alguma dizer, lhe estendeu as mãos.

Naquele momento, Maria teve o conhecimento do bem e do mal dos homens. Soube sobre a ciência e a matemática. Aprendeu sobre guerras e vitórias, sobre a fé e seus malefícios.

Maria viveu até os seus cento e doze anos. Tornou-se santa naquela terra distante e esquecida. Por seus olhos, os aleijados se levantaram; os cegos puderam ver, os mudos falaram, aqueles de pouca fé tornaram-se crentes.

Nunca se soube de Maria do Carmo. A própria Das Dores, em seu leito de morte, pediu que lhe colocassem um espelho diante dos olhos, numa última tentativa de ver o acontecido de anos atrás. A única coisa que pôde ver foi a mesma luz que a fizera conhecedora dos mistérios da vida, a mesma luz que a consumiu diante da multidão que chorava por sua partida.

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