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No âmbito do marxismo, fetichismo é o nome comum de um procedimento mágico e obscurantista, no qual e através do qual o inanimado, a mercadoria, adquire alma, autonomia, subjetividade, de modo a tornar-se mais humano que e humano, mais Deus que Deus, num contexto social e produtivo, o do capitalismo, em que a forma mercadoria determina religiosamente as formas de ser e de estar, no mundo, por se constituir como a encarnação da forma dinheiro, fetiche dos fetiches.
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No primeiro tomo de O capital, Karl Marx desenvolve o conceito de fetiche da mercadoria, tendo em vista o contexto de um mundo tomado pela seguinte fórmula: D – M – D, onde D significa dinheiro, M, mercadoria. Existe fetiche da mercadoria porque antes de tudo o dinheiro se constitui como a mercadoria-mor, de modo que toda mercadoria é tanto mais valorizada ou sobre-humanizada quanto mais, como forma mercadoria, torna-se a encarnação a um tempo objetiva e subjetiva do dinheiro, como forma abstrata da mercadoria, tal que esta é fetiche porque, nela, importa não o seu valor de uso, mas seu valor de troca, entendido como valor que gera mais valor ou dinheiro que gera mais dinheiro, sempre através de uma operação mágica, a impor-se sobre todos os limites, como os dos recursos da Terra, tendo em vista a crença de que a metamorfose do valor em mais valor não tem fim; é inesgotável, como infinito é o teto do déficit da dívida dos Estados Unidos, para o qual o céu é o ilimitado limite imposto contra a limitada Terra e seus habitantes.
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Considerando a radicalização kamikaze do valor como infinito mais-valor, marca do contemporâneo, o fetiche é o infinito valor produzindo mais e mais valor, D – T – D, tal que D é dinheiro e T é o planeta Terra, num contexto em que este, como limite para o valor, faz com que a lógica do valor, que deve gerar mais valor, tenha o planeta todo como seu inimigo, razão pela qual o mundo contemporâneo, dito neoliberal, é este em que o ilimitado do valor é valor no, de e através de limites, entendido como: 1) limite a partir do qual acabamos com a vida na Terra, com a própria Terra, explodindo-a; 2) limite imposto pela resposta das forças da Terra, sob a forma de furacões, degelos dos polos, desertificação, aumento da temperatura, esgotamento de recursos naturais; 4) limite condicionado pela violência incontrolada, bárbara, em todos os lugares do planeta, num contexto em que existe a possibilidade de a humanidade se tornar toda ela paranoica, tal que o inimigo dorme ao lado; 5) limite produzido como limite artificial como teste de limites, a fim de verificar até onde aguenta tal ou qual limite produzido como limite, como ocorre com o bloqueio infligido a Cuba, há mais de cinquenta anos, por EUA; ou o limite dos palestinos, cujo território é o maior campo de concentração produzido como laboratório de limite para o sofrimento humano; ou o atual limite da Síria e de Irã, ambos ameaçados, humilhados e violentados pela CIA, Otan, Mossad e ditaduras do Conselho de Cooperação do Golfo, constituído por Arábia Saudita, Omã, Catar, Emirados Árabes Unidos – instituições e oligarcas diretamente envolvidos com a engrenagem da máquina mundial de produção artificial de limites de e contra países e povos, razão pela qual os gestores evidentes do imperialismo são os inimigos número 1 da vida na Terra.
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Aqui, suponho, vale a pena uma pequena digressão. Se o dinheiro é o fetiche dos fetiches, porque é o valor dos valores, precisamente porque somos levados a crer – sempre uma questão de crença – que não é socialmente produzido, existe a necessidade de redefinir, hoje, o conceito de imperialismo, tendo em vista a sua lógica contemporânea, que é a de produzir, colocar, impor e lucrar com limites. Se o fetiche é algo que tiramos de um contexto dado a fim de produzir a ilusão de que independe dos contextos, como se seu valor fosse um autovalor, então o imperialismo é ele mesmo um fetiche, por se constituir como um autovalor a serviço da atual forma de depredação patrocinada pelo capital, que é a de lucrar com o limite social e terráqueo.
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É por isso que não me parece correta a expressão imperialismo americano, na suposição de que os Estados Unidos da América, sua oligarquia, sejam os únicos orquestradores da exploração e produção de limites da e para os povos da Terra. O imperialismo é um fetiche a serviço da fórmula D – T – D, Dinheiro – Terra – Dinheiro. Fetiche, insisto, porque vive de tomar as forças do planeta, organizá-las, seqüestrá-las, num contexto em que somos igualmente sequestrados porque tendemos a ignorar que a fórmula D – T – D seja uma construção coletiva, planetária. Como tal fórmula tem o planeta todo como referência, ou limite a ser explorado, todos somos coparticipantes do imperialismo, em menor ou maior medida. Quer queiramos ou não, compramos os limites da Terra, simplesmente vivendo dentro do modelo D – T – D, que abraça todo o planeta, razão pela qual, com algumas exceções, estamos todos abraçados, ao mesmo tempo em que abraçamos a fórmula D – T – D.
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Por se estruturar como produção de limites ou stress para a Terra e seus seres vivos sequestrados, a fórmula D – T –D existe de e através de fetiches. É uma máquina de produzir fetiches; e não apenas o fetiche da mercadoria, pois o fetiche é a mercadoria geral dessa e nessa fórmula: o fetiche do saber, do corpo, do amor, da informação, da alegria, da democracia, da ditadura, da liberdade de expressão e assim por diante. O imperialismo é o conjunto dos fetiches ou o fetiche encarregado de gerir todos os fetiches, a fim de que a máquina D –T- D não pare de funcionar – de produzir fetiches.
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Domina a máquina mundial D – T – D aquele ou aqueles que conseguirem se tornar os gestores mundiais do fetiche, produzindo-os, organizando-os e distribuindo-os desigualmente, porque, como sabemos, tal fórmula produz, além de limites e genocídios, uma legião de fetichizadores e uma minoria de fetichizados – anônimos e famosos, pobres e ricos, bárbaros e civilizados, por exemplo. Faz parte do fetiche constituir-se como privilégio de poucos, assim como faz parte, para que o fetiche se torne fetiche, que uma maioria o deseje, o reverencie, como indispensável componente da semiótica do fetiche.
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É aqui que encontramos pelos menos dois grupos de pretendentes a dominar a fórmula D – T – D, no mundo contemporâneo: 1) O grupo dos radicais e fanáticos, compostos pela oligarquia americana, europeia, turca e pelos monarcas pertencentes às ditaduras do Conselho de Cooperação do Golfo – CCG; 2) O grupo dos “moderados”, compostos principalmente pelos países pertencentes ao BRICS, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – moderados, bem entendido, porque, embora tenham muita força, sobretudo econômica, as instituições que constituem o arcabouço da máquina D – T – D (FMI, OMC, ONU, BM, sociedade do espetáculo mundial, sob o domínio da oligarquia midiática a serviço do fanatismo do primeiro grupo, entre outras) não são nem gestadas e muito menos favoráveis aos países do BRICS, sendo efetivamente usada aqui e ali para jogar com o limite destes últimos, sobretudo no campo dos direitos humanos, tema que recorrentemente os Estados Unidos usam, por exemplo, contra Rússia e China, seus principais oponentes no sistema-mundo D – T – D neoliberal; ou o caso da corrupção, como ocorreu no governo Lula e ocorre no de Dilma.
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O primeiro grupo D – T – D (EUA, Europa, sionismo, CCG) avança, apropria-se e produz limites cada vez mais perigosos, num contexto em que o limite-mor é uma hecatombe atômica – limite que já vem sendo experimentado por, principalmente, Estados Unidos e Israel, desde, pelo menos, a invasão do Iraque, quando então começaram a usar bombas com plutônio empobrecido e fósforo branco contra as populações com as quais combateram e combatem, embora a que destacar o pioneirismo americano também nesse setor, por terem sido efetivamente o primeiro país que utilizou bombas atômicas contra duas cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, no ano de 1945, exemplo que até hoje país algum ousou seguir.
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As duas bombas atômicas lançadas barbaramente por EUA, sob o comando de Harry S. Truman, contra Hiroshima e Nagasaki, nos dias 06 e 09 de agosto de 1945, representam o começo da era da máquina mundial D – T – D, dinheiro, Terra, dinheiro, por dois motivos correlacionados: 1) foi um teste consciente de limite da Terra, tendo como bode expiatório o povo japonês e especialmente o povo de Hiroshima e Nagasaki; 2) foi a primeira situação da história do homem no planeta em que aqueles que ousaram colocar o limite da Terra em risco foram os principais beneficiados pela ignominiosa ousadia, pois, a partir de então, tornaram-se os gestores da máquina planetária de produção de fetiche da atualidade, a que existe e se estrutura precisamente por colocar em risco o próprio planeta Terra – máquina que responde pela fórmula D – T – D.
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Desde esse fatídico mês, agosto de 1945, os EUA não param de explorar, produzir e jogar com os limites da Terra, produzindo valor e fetiche sobre e a partir da desgraça alheia, através da manipulação publicitária e midiática de toda e qualquer adversidade, inclusive as que ocorrem no interior de seu próprio território, como a que diz respeito ao episódio da destruição das Torres Gêmeas, em Nova York, conhecido midiaticamente como 11 de setembro de 2001.
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Os Estados Unidos da América são o epicentro da máquina mundial de produção de limites contra o planeta Terra, num contexto, como o atual, no qual e através do qual o limite produzido, estimulado, arquitetado ou simplesmente de ocorrência natural, como um terremoto, é imediatamente objetivo de produção de valor, como ocorreu, por exemplo, com o terremoto de Haiti, de 2010, prontamente explorado pelos EUA, que aproveitaram a situação adversa para ocupar o país militarmente, com a desculpa esfarrapada de salvar vidas.
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Tudo que ocorre de negativo os Estados Unidos transformam em fator positivo para produzir mais valor no interior da máquina mundial D – T – D. Se um serial killer americano atira fria e premeditadamente contra pessoas numa sala de cinema, jamais poderemos constatar a obviedade de que tal jovem não é a exceção, mas a regra: ele apenas encarnou o serial killer, índice geral do país no qual ele nasceu e do qual ele é tido e visto como cidadão, os Estados Unidos da América – os serial killers da máquina mundial D – T – D.
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Quando, no Manifesto Antropófago de 1928, o poeta modernista Oswald de Andrade escreveu que o cinema americano informaria a si mesmo como futuro do mundo, mesmo que contra a sua vontade, ele não deixou de acertar na pinta o que estava por vir: a emergência de um país, os EUA, que seriam o pioneiro e o protagonista da máquina mundial D – T – D, máquina que passa a funcionar plenamente no preciso momento em que produzimos tecnologia bélica, como a atômica, capaz de destruir todo o planeta, embora, destaque-se, avançar sobre os limites tenha sido sempre a grande tara do capitalismo.
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De qualquer forma, o que está em jogo aqui, a partir de agosto de 1945, no plano do capital, é o seu alcance planetário, tendo a Terra toda, seus recursos naturais e humanos, como fonte de produção de valor, fetiche, num contexto, o do D – T – D, em que o limite a ser testado e avançado, a fim de produzir valor, é o da própria Terra, integralmente, de forma suicida.
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Oswald de Andrade jamais poderia imaginar que sua intuição apontava para a principal âncora da fórmula D – T – D, protagonizada por Estados Unidos da América: a arma “atômica” da indústria cultural, sem a qual o Tio Sam jamais conseguiu enganar o mundo como tem feito até hoje – jamais, enfim, teriam conseguido transformar o genocídio atômico de Hiroshima e Nagasaki em marco histórico do valor produzido a partir da ameaça geral do fim da vida na Terra.
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O cinema americano informou e tem informado, como uma poderosa arma, o seguinte: a máquina mundial de produção de valor pós-45, dinheiro – Terra – dinheiro, corresponde, palmo a palmo, à máquina publicitária EUA – imperialismo – EUA, de modo que o imperialismo como fetiche ou o fetiche do imperialismo pertence ao fetiche da ditadura democrática americana, midiática e espetacularmente apresentada à praça pública mundial, à virtual praça pública planetária, como o reino da liberdade ao estilo D – T – D – logo como o reino da liberdade de colocar em xeque o complexo xadrez ou ecossistema Terra.
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O fetiche da indústria cultural ou a indústria cultural como fetiche serviu e tem servido para endossar que os EUA constituem o fetichizado rosto do imperialismo contemporâneo: o da atômica fórmula D – T – D.
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Tal fetiche, o da indústria cultural sob o domínio americano, detém um duplo e complementar efeito negativo: 1) o mundo todo, principalmente as esquerdas, vem os Estados Unidos como o próprio imperialismo D – T – D; 2) Os Estados Unidos também acreditam nisso e fazem de tudo para confirmar essa crença, alimentada diariamente pela indústria cultural.
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A crença midiática de que os Estados Unidos são o próprio impróprio imperialismo D – T – D encontrou um crente que acredita nela, de forma ainda mais fundamentalista que a extrema direita americana: a oligarquia sionista, crentes dos crentes D – T – D.
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É a radicalização dessa crença que está levando a oligarquia sionista, sob a sombra protetora estadunidense, a assumir o risco de avançar além do limite de uma hecatombe atômica, tal o seu desejo de bombardear Irã, em nome de uma razão teológica milenar D – T – D.
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O Movimento dos Países não-Aliados, como possibilidade de alternativa ao mesmo tempo ao grupo dos fanáticos e ao grupo dos moderados a gestar a máquina D – T –D, deve levar ao pé da letra o que significa, hoje, ser não aliado: significa não se aliar à máquina mundial do capitalismo contemporâneo, cuja mais-valia se dá através da produção, invenção e organização de riscos fatais sobre o conjunto do planeta Terra.
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Se a máquina D – T – D constitui uma bomba de espectro completo de produção de fetiches - tecidos e entretecidos para colocar em risco a Terra - e considerando que o sistema midiático mundial é o coração dessa atômica máquina, por ser nele e através dele que os fetiches kamikazes são justificados e referenciados, inclusive o fetiche-mor, o imperialismo D – T – D, não existe urgência mais urgentíssima, para ser redundante, que a produção comum de uma indústria cultural não comprometida com a máquina mundial de asfixiar a Terra, tarefa que os países não-aliados poderiam e podem produzir – para ontem –, antes que os fanáticos e racistas (racismo contra a Terra) da mais-valia explodam todo o planeta.
(Texto de Luís Eustáquio Soares publicado na Revista Eletrônica “Observatório da Impresa” no dia 11/09/2012)
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