terça-feira, 29 de maio de 2012

MICHAEL FOUCAULT E AS CONFISSÕES DA XUXA


Em História da sexualidade: vontade de saber (1976), o filósofo francês Michel Foucault (1925-1942) mostrou-nos, para quem tem olhos livres para ler, como o não menos “livre e democrático” Ocidente produziu, a partir de seu ponto G civilizacional, as subjetividades estilizadas que circulam em Nova York e que se tornaram os modelos de humanos a serem reverenciados e imitados por todo o planeta como exemplos de liberdade, plasticidade, alegria, despojamento e afirmação de diferenças sexuais ou simplesmente como exemplos de democracia encarnada em subjetividades humanas.
Michel Foucault recorreu às técnicas de confissão inquisitoriais impostas pela Igreja Católica na Idade Média e a partir delas nos mostrou que a especificidade do Ocidente, em relação a outros modelos de sociedade, foi a de ter produzido uma civilização confessional, na qual e através da qual somos o que confessamos ser: nossos sexos reis, senhores de nossas vidas e nossas identidades.
As técnicas confessionais desenvolvidas pela Igreja Católica medieval eram, como se sabe, inomináveis procedimentos de tortura física, através dos quais o torturado ou a torturada devia confessar a verdade dos pecados cometidos, quando não eram a própria punição voltada e devotada contra plebeus, mulheres, judeus, mulçumanos, africanos, homossexuais, – contra antes de tudo àqueles e àquelas que, por um motivo ou outro, não se adaptavam ao padrão divino, de puro sangue azul, das heterossexuais castas aristocráticas das monarquias medievais, principalmente as de Portugal e Espanha.
Meios de comunicação são tecnologias de eu
Confessar-se como outro em relação ao padrão supostamente transcendental do patriarcal e racista rosto das monarquias católicas medievais – mesmo que a custo de ser queimado vivo, sob a acusação de herético – produzia, através da cerimônia da tortura, três consequências consecutivas: 1) servia para destacar a superioridade divina das monarquias ibéricas, pois a confissão estava intimamente implicada com a necessidade ritual de dizer “a verdade” de sua impureza feminina, homossexual, étnica, plebeica e não católica; 2) aceitar, via confissão torturada, a impureza de seu próprio sangue mortal, sujo, vil, pecador, vis-à-vis à pureza divina do sangue azul da divina monarquia católica; 3) confessar-se como naturalmente pecador, por constituir-se como outro em relação ao padrão divino monárquico, a fim de, pelo ritual da tortura, inscrever-se como vida nua ou cordeiro de Deus, sempre disponível a compor a diversidade gustativa da mesa da monarquia católica, como manjar dos Deuses, cujo principal prato é o da carne torturada do pecado de ser outro.
Michel Foucault argumentou, em História da sexualidade, que as técnicas de confissão ou de tortura da Idade Média católica se tornaram o modelo de referência da civilização ocidental, pois esta se singularizou ao se transformar numa fábrica mundial de confissão, sobretudo após o advento da burguesia, no século 19.
À diferença da Idade Média católica, no entanto, a civilização ocidental burguesa transformou-se ela mesma em sua própria divina monarquia, a monarquia burguesa, para a qual as técnicas de confissão devem seguir o seguinte roteiro cerimonial: 1) a democracia é o pecado ou o herético povo pecador da civilização burguesa ocidental, agora planetária; 2) a democracia deve, tal como ocorria na Inquisição medieval, ser torturada a fim de confessar a verdade de si como inferior, em relação ao divino proprietário burguês dos meios de produção; 3) confessar-se como inferior significa aceitar, alegremente, constituir-se como o manjar diversificado da culinária do prato da civilização burguesa; 4) essa aceitação implica que a democracia não pode ser herética, isto é, não pode ser democracia, entendida como dissenso do povo, como o lugar da diversidade indomável;
5) o povo deve ser domável, portanto, confessando o pecado de ser povo indisciplinado e indomável; 6) essa confissão do pecado de ser povo é realizada através de novas técnicas de confissão, diferentes das da Idade Média católica, porque necessariamente não têm o corpo como objeto de tortura, mas a alma;7) Foucault dá o nome de tecnologias do eu às técnicas confessionais da civilização burguesa ocidental; 8) os saberes ocidentais, como a medicina, a antropologia, a psicologia, a psicanálise, psiquiatria, filosofia, teorias da literatura, o jornalismo, a história –dentre outros – se tornaram saberes que têm como principal inconfessável objeto produzir identidades ou subjetividades livres para se tornarem o manjar diversificado da civilização ocidental burguesa; 9) a principal confissão das subjetividades ou identidades produzidas pelas tecnologias de eu da civilização ocidental é a de aceitá-la “livremente”, a civilização burguesa, como se fora um presente eterno e imutável; 10) a civilização burguesa ocidental se torna divina e eterna, através das técnicas de confissão, na medida em que consegue deslocar e domesticar a potência povo, que é potência coletiva, da democracia, em potência individual, de modo que o outro da e na potência povo deixa de ser a possibilidade de outro modelo civilizacional e passa a ser o outro como diferente indivíduo isolado;11) este, o indivíduo isolado, é o que confessa a si mesmo como outro, como gay, negro, índio, latino, mulher e tem como horizonte de expectativa a afirmação orgulhosa de si como outro, aceitando a sociedade burguesa como eterna, imutável, porque não pode de forma alguma vincular a sua condição de outro, em relação a qualquer padrão étnico e sexual, por exemplo, à necessidade de produzir um outro modelo de civilização, não burguês;
12) o indivíduo isolado, orgulhoso de sua diferença, é o supermercado humano da civilização burguesa, seu cordeiro de Deus, razão pela qual é mercadoria de gente ou gente como mercadoria, duplamente comprável: comprável porque é literalmente comprado e comprável porque compra diferenças humanas no supermercado humano burguês;13) Nova Iorque é a principal cidade-supermercado da civilização burguesa planetária e suas ruas são prateleiras onde os confessados indivíduos isolados são expostos à publicidade midiática mundial, como cordeiros do Deus da sociedade burguesa; 14) tal como na Idade Média católica, o grande inimigo da civilização burguesa, é o não católico, isto é, o não burguês ou aquele que não aceita a confissão da verdade de sua diferença-mercadoria da e para a sociedade burguesa; 15) as guerras que a civilização burguesa realiza diariamente, tal como na Idade Média católica, são cruzadas contra heréticos que, por uma razão ou outra, não se confessam nas prateleiras humanas do supermercado mundial da burguesia ou oligarquia burguesa planetária; 16) a sexualidade ou o dispositivo da sexualidade é o principal mecanismo de tecnologia do eu da civilização burguesa ocidental, de modo que confessar a si mesmo como outro, na prateleira do supermercado humano burguês, torna-se antes de tudo confessar a verdade de seu próprio sexo; 17) no interior da sociedade do espetáculo, os meios de comunicação de massa são tecnologias de eu ou fábricas de produção de identidades sexualmente confessadas como “felizes” ocupantes das prateleiras do supermercado humano burguês.
O supermercado midiático
Dizer que os meios de comunicação de massa são máquinas de produção de “eus confessados” do mundo burguês contemporâneo, como disse na décima sétima enumeração acima, equivale a interpretar literalmente a máxima do filósofo e educador canadense Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem”, razão pela qual, na civilização burguesa contemporânea, os meios de comunicação de massa constituem a própria mensagem da verdade literal do mundo burguês como democracia de fachada ou como domesticada democracia de prateleira.
A mídia planetária burguesa, tautologicamente, é ela mesma uma máquina de publicidade burguesa ou simplesmente o supermercado midiático e publicitário do mundo burguês, como confessada verdade tecnológica da exposição planetária das subjetividades burguesas. Ela é, pois, o supermercado virtual das confessadas mercadorias humanas das multicoloridas subjetividades burguesas, como farsa ou propaganda enganosa daquilo que elas efetivamente não podem ser: diversidades não burguesas, povo em dissenso produzindo a si mesmo fora do mundo burguês: fora da mercadoria ou do humano como mercadoria ou da mercadoria humana como cordeiro de Deus do mundo burguês.
E aqui finalmente chegamos à confissão da apresentadora Xuxa, realizada no programa da TV Globo, Fantástico, no domingo do dia 20. Tal como a máxima de McLuhan, “o meio é a mensagem”, suas confissões devem ser interpretadas literalmente como verdades não apenas dela, Xuxa, mas antes de tudo das prateleiras do supermercado midiático do mundo burguês.

A prateleira midiática global
As confissões de Xuxa no Fantástico detêm um ponto sísmico subjetivamente obscuro proibido cuja verdade deve ser publicitariamente revelada para o público: a violação sexual de que foi vítima na sua infância e adolescência. Xuxa confessa a verdade de que foi vítima de pedófilos, verdade publicitária porque serve antes de tudo para produzir audiência.
A propósito das confissões das práticas ou experiências sexuais proibidas, como a pedofilia, por exemplo, no ensaio Tecnologias do eu (1988), Michel Foucault diz textualmente: “A diferença do que ocorre com outras proibições, as proibições sexuais estão continuamente relacionadas com a obrigação de dizer a verdade sobre si mesmas” (FOUCALT, 1990, p.21).
Dialogando com Foucault, as confissões pessoais e sexuais de Xuxa estão diretamente comprometidas com a necessidade de dizer a verdade sobre si mesma – sobre a experiência traumática da verdade da história de Xuxa, talvez a mais cara mercadoria humana produzida pelo mais poderoso supermercado midiático brasileiro: a TV Globo.
Aqui, antes de continuar, abro um parêntese.
(Claro que dizer o que disse não constitui uma forma de desconsiderar o trauma vivido por Maria da Graça Meneghel: a Xuxa como pessoa real. Minha análise, deixo claro, é sobre a personagem Xuxa, embora já não saibamos se era Xuxa como personagem que confessava a verdade dela como pessoa real, como Maria da Graça Meneghel; ou se esta que confessava a verdade daquela, tal a verdade que uma se misturou com a outra, inevitavelmente, como parte da prateleira midiática global. Deixo claro enfim que respeito o trauma vivido por Maria da Graça Meneghel.)
O padrão machista e patriarcal
Fechado o parêntese, penso que analisar literalmente as confissões de Xuxa no Fantástico só é possível se não caímos na cilada das técnicas de confissão midiáticas; cilada programada para que fiquemos presos às confissões individuais de Xuxa, seja como personagem, seja como pessoa real.
A fim de sair dessa cilada, é preciso admitir que a verdade não é individual e que, portanto, a verdade confessada de Xuxa é a verdade do confessionário da máquina midiática ao estilo da TV Globo, como verdade que interessa à civilização ocidental capitalista, que produz tecnologias de supostas verdades individuais, a fim de que não enxerguemos a verdadeira verdade: a verdade sobre o próprio capitalismo ocidental planetário contemporâneo.
É aqui que é necessário ir ao mesmo tempo além da Xuxa, como pessoa real, como Maria da Graça Meneghel, a fim de nos determos na Xuxa como produção subjetiva midiática, midiaticamente coletiva ou midiaticamente produzida para provocar, induzir, despertar verdades subjetivas que interessam à civilização burguesa ocidental contemporânea.
Tendo em vista, pois, a Xuxa como personagem produzida midiaticamente, penso que a verdade literal que deve ser considerada é esta: Xuxa foi agenciada midiaticamente para despertar, provocar e fazer confessar, em carne e osso, a identidade da sexualidade infantil no Brasil, razão pela qual ela pode ser perfeitamente considerada, sob esse ponto de vista, como a maior – a Xuxa como personagem midiática, bem entendido – pedófila do Brasil, se entendemos a pedofilia não apenas como uma violação ou estupro do corpo infantil, mas também e antes de tudo como violação programada do corpo de crianças e de adolescentes, através do estímulo sexual precoce nos moldes do padrão machista e patriarcal, com o claro objetivo de reduzir a libido humana à alienada função sexual associada ao consumo de massa.
Figuras inocentes e extremamente erotizadas
Este, o capitalismo mundial contemporâneo, também designado como sociedade de consumo mundial, é eminentemente pedófilo, pois, a fim de vender suas mercadorias reificadas, necessita sexualizar a tudo e a todos, inclusive a infância, porque, se alguma verdade deve ser confessada, a literal verdade é esta: não existe capitalismo sem exploração publicitária e carnal do dispositivo da sexualidade.
É por isso que, como personagem ou animadora de programas infantis, Xuxa sempre foi uma figura híbrida: mistura de criança inocente e mulher extremamente erotizada e erotizável. É evidente que, consciente ou não, ela contribuiu significativamente para sexualizar precocemente e da pior forma possível milhões de crianças brasileiras.
É preciso entender a pedofilia literalmente como uma espécie de razão encarnada. Sob esse ponto de vista, como não evidenciar a sexualização generalizada da infância, sobretudo da infância pobre? Como fechar os olhos para o que vemos, ao andar pelas ruas das periferias do Brasil: crianças e adolescentes confessando através do corpo, dos gestos, das maquilagens, das roupas, suas híbridas figuras ao mesmo tempo inocentes e extremamente – para não dizer epidermicamente ou “xuxamente” – erotizadas?
A prostituição da rendição ao dinheiro
É por isso que é possível dizer que a verdade da confissão, desde pelo menos os bastidores da Inquisição medieval até as subjetivas confissões encarnadas do mundo burguês contemporâneo, é uma só: a única confissão que as técnicas confessionais admitem é a da mentira ou do desvio em relação à confissão inconfessável: a de que a primeira violação, a mais violenta de todas, é a violação do roubo da riqueza comum, via exploração/extorsão/estupro da riqueza dos povos.
No Manifesto Comunista de 1948, Marx e Engels descreveram singularmente como o contrato social da civilização burguesa transformaria o trabalhador em mera peça na engrenagem geral do lucro concentrado através da fria universalidade do dinheiro. Este seria (e já era) o novo Deus que subjugaria e prostituiria o mundo inteiro por meio da não menos universalização monolítica da relação impositivamente imparcial de compra/venda. Tudo se tornaria – e já era – uma “impessoal” relação de compra e venda, desde a força do trabalho, o corpo vivo do operário, até a sexualidade dos filhos e filhas dos trabalhadores, razão suficiente para afirmar categoricamente que o sexo – e a sexualidade – se transformaria cada vez mais em uma questão de finanças ou econômica, inclusive, portanto, a violação pedófila de crianças e adolescentes – e novamente principalmente a dos filhos e filhas dos trabalhadores.
Não é à toa, a propósito, que Maria da Graça Meneghel jamais confessaria, no Fantástico, a violação de ter sido pobre, tendo passado parte da infância na periferia do Rio de Janeiro, pois foi dessa violação que conseguiu escapar se tornando Xuxa, assim como foi como a midiática personagem ou animadora de auditório, a Xuxa, que encarnou por um bom período a infame violação da infância pobre do Brasil, convocando-a a mistificá-la e contribuindo globalmente para sexualizá-la através da própria mistificação mercadológica, cujo embutido mistificador estava (está) implicado com a tarefa midiática de fazer com que as crianças do Brasil a encarnassem, principalmente o seu Frankenstein lado mulher/lasciva/infância/inocência, como encarnada verdade de que o sexo deve ocupar o lugar da luta por um mundo sem exploração econômica, pois deve ser o exclusivo interesse e fixação de todos nós, inclusive e antes de tudo de nossas abandonas crianças e adolescentes, violados pelo estupro econômico e jogados precocemente ao horizonte sem horizontes da mais vil prostituição, a que nos toca a todos, sem exceção: a prostituição da rendição geral ao dinheiro, este pedófilo da vida ao qual Xuxa não faz a mais mínima menção porque foi e é milionariamente bem paga.
Texto de Luís Eustáquio Soares publicado no site Observatório da Impresa (http://www.observatoriodaimprensa.com.br) no dia 29/05/2012.


Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na UFES.

Um comentário:

  1. Grande Eustáquio! Antes de chegar ao fim do texto, e ver o nome do autor, pensei:- Esse estilo de escrever é do professor Eustáquio... Dito e feito!
    Excelente artigo!

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