segunda-feira, 8 de julho de 2013

DRUMMOND. A IMAGEM DAS VIDAS NA PENUMBRA DO ACONTECIMENTO.



O poema “Morte do Leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade, do livro “A rosa do Povo (1945)”, inicia-se apresentando duas unidades discursivas, uma é a do leiteiro como metáfora literal, que põe na imanência o ser operário, isto é, viver para alimentar a nação (como o próprio leite), servindo de liquido essencial para o cultivo da vida, produzindo tanto para o rico quanto para outras classes, tendo como primeiro plano existencial o ato de servir. A segunda unidade discursiva aponta para o fato do ato de servir não ser um ato passivo, pois nem todos os homens o aceitam, o que gera desconfiança por parte de quem é servido, que a qualquer momento pode ter seus bens e sua acomodação atacados, gerando assim uma vivência problemática e perigosa.

Assim, logo na primeira estrofe, como no prólogo de um filme, o tom do poema está em suspense, ou seja, as reiterações que irão confirmar as imagens e desencadeamentos fílmicos são apenas sugestivas, apenas reproduzindo ambiguidades, que se confirmarão ou não no desenrolar do filme (as combinatórias), gerando um efeito meditativo, de dois seres separados em seus discursos (a primeira e a terceira pessoas), mas comungando de uma mesma vivência. Desta maneira, o “leiteiro” com seu corpo em movimentos involuntários, agindo em silêncio afobado, como quem escapa do perigo, confunde-se com o ladrão (destacável na repetição da expressão “é preciso entregá-lo cedo”, presente no segundo verso e no quarto verso, cujo tempo demarca o estado de sonolência embebido de despertar, característico de quem trabalha no início do dia e final da madrugada; assim como a cadência binária, de uma vírgula e um ponto, nos conjuntos de dois versos, presentes na estrofe de seis, que gera uma observação espreitada, de quem vaga com pausa e pouca iluminação; e o paralelismo no primeiro, terceiro e quinto versos, do presente do verbo haver intercambiando “pouco” com “muita”, “leite” com “sede”, e, por fim, “país” com “legenda”, num sedento ato de embaralhamento, onde letreiros ofuscam as vidas de quem se encontra em sujeição inocente - o leiteiro - e policiamento defensivo - o proprietário). Segue a estrofe:

“Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.” (Andrade, 1969, p. 106).

Seguindo o raciocínio das unidades discursivas, na segunda unidade temos o sujeito reflexivo (como numa suspensão de duas vidas - a do leiteiro e a do proprietário - que no imediato das ações - na distribuição do leite, da “garrafa branca que não tem tempo de dizer” - sofrem uma interferência mediata - dos dizeres “aos homens no sono”, das portas “dos fundos” que escondem “gente” -, que aparece ao longo do poema, apontando o discurso de uma terceira pessoa), gerando uma problemática no leitor, que pensa: será a existência de uma segunda unidade discursiva, ou será um ser inconsciente disfarçado de consciência, que está dentro da polifonia da primeira unidade discursiva? Eis o dilema, onde ao pensar ser, já se é, “(...) passo errado,/ vaso de flor no caminho”, pois o ser reflexivo se confunde com alguém que está de fora (operário e intelectual, proprietário e ladrão, presa e predador) que não está na imanência propriamente dita, ou seja, na luta pelos recursos materiais para sobreviver a cada dia, estando antes no todo social, do sacrifício do pobre embebido no processo, do rito que envolve o contexto.

Desta maneira, a terceira pessoa mostra-se num outro patamar de sobrevivência, pois tendo os recursos necessários para alimentar o corpo, e alimentar a mente, já pode refletir e preocupar-se com a abstração da luta de classes. Nos três últimos versos da terceira estrofe “E já que tem pressa, o corpo/ vai deixando à beira das casas/ uma apenas mercadoria”, “o corpo” “que tem pressa”, e não mais precisão, vai perdendo seu vigor de ser pensante, quando abstrai sua existência em forma de mercadoria, e perde sua precisão atentada na primeira estrofe, em modo de noticiário, que confunde o “leite” com a “sede”, de um país vendido pelos anúncios, portanto onde o ladrão (sempre rotulado como alguém sem bens, sendo sempre um devir operário) não faz frente ao capital, substantivando assim sua vida na “pressa” destas relações (“se era noivo, se era virgem,/ se era alegre, se era bom,/ não sei,/ é tarde para saber”). Isto posto, as trocas vocabulares entre substantivos, onde “pressa” vale por “precisão” e ambos valem pelo verbo “precisar”, movimentam o “corpo” dessa segunda unidade discursa tensionada como homem de subúrbio, confundido com as várias mercadorias e, também, objeto de vários discursos, pois mesmo não tendo maior conhecimento de seu corpo, possui um, que tem consciente e inconsciente, e faz parte da polifonia do todo social.

Ao acordar do “sono” (na meditação desse ser reflexivo) o proprietário, também destituído de uma problemática reflexiva, que só a segunda unidade discursiva o foi capaz de dar, assassina o leiteiro confundindo-o com um “ladrão”, como num sonho abstrato, sonhado pelo próprio capital. Somente assim o leiteiro perde a “pressa”, da precisão e do precisar, que tanto alimentou em seu corpo consciente e inconsciente, espalhando-o e desfigurando-o através da noite das vidas roubadas pelo sono do capital, cuja manhã (a vida considerada na interação de valores igualitários que se completam para criar algo bom e qualitativo para todos, como o próprio “leite”) custa a clarear. Assim “escorre uma coisa espessa/ que é leite, sangue... não (...)” se sabe, misturando as unidades discursivas “formando um terceiro tom/ a que chamamos aurora” ou terceira unidade discursiva, aquela que retoma todo o vigor social, ligando os silêncios, as ausências e presenças, sabendo ouvir os encobertos na penumbra do acontecimento.

(Texto de Wagner Silva Gomes)


Wagner S. Gomes, vulgo Maral, é estudante de Letras-Português, da Universidade Federal do Espírito Santo. O apelido refere-se a sua marca de navegante das ruas, de quem se lançou ao mar da vida, e principalmente ao futebol, pois se refere ao ex-jogador Amaral, que ficou conhecido como volante do clube de futebol Vasco da Gama. A comparação surgiu por Wagner (ou Maral) ter se dedicado ao futebol, da infância até os 16 anos, chegando inclusive a jogar na categoria de base do Fluminense, morando em Xerém, onde fica a concentração de todas as categorias de base desse clube. Matem um blog, onde posta poemas e vídeos (de alguns dos poemas que musicou, e que se encontram no youtube), e onde há um link de um romance semi-completo que escreveu em 2013; participou do projeto de extensão reler&fazer, ministrando rodas de leituras em Cariacica, com o título: Samba: poesia no cotidiano urbano brasileiro; apresentou a monografia intitulada “Objeto Palavra: Um vagar em matéria e pensamento (na poesia de Casé Lontra Marques)”; e escreve artigos.

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