Renan de Andrade é escritor e graduado em Letras-Português pela UFES. É professor da rede particular de Vila Velha - ES. Em 2008, lançou “Cenho”, seu primeiro livro. E-mail: poetaeprofessor@gmail.com. Confira, abaixo, o conto “00:14”:
00:14
Disse-me que, talvez, o melhor era me ver ali, despojado sobre as linhas de um lençol branco retilíneo, ainda que o de bruços denunciasse a toalha molhada sobre a penteadeira de marfim e a chave fresca de ignição. Caçava dentro do cesto de roupas sujas as marcas de um possível ontem. Marcas de nós, ou de nossos nós, mas a verdade é que a gente sabe quando algo seca, uma secura por dentro da pele. Pele que antes precisava só de uma pestana para se irrigar, e que agora se encolhe, ou se esfolha, como se existisse inverno por aqui, bastando ouvir um bom dia ou um dizer que sim. Rasgara livros, arranhara vinis, enrolara maconha nas folhas de uma revista velha de pornochachada e dera para o vizinho do segundo andar fumar, e também pôra fogo numa coleção de santinhos, daqueles que empesteiam as ruas em dia de eleição, e que eram colecionados por mim desde menino. Tudo era denso, espesso, dolorido, parecendo saliva, boca aberta que corre, recebe um ar sujo e fica coalhada feito leite de sacola. Desses amores que não ficam mais do que a hora marcada ou obedecem de forma protocolar a um livro de ponto digital, ágil invenção de um desgraçado qualquer. Permanecia por horas seguintes, me vendo buscar o melhor ângulo para estacionar o esqueleto, até o dia em que vi, recorrendo ao espelho e às nódoas que manchavam o lençol, algumas sentenças grafadas em minhas costas, e que de longe lembravam versos de Neruda. Versos esses e outros, que conforme me foi dito pela lavadeira, anos depois de sua morte, faziam parte de uma simpatia que a falecida havia aprendido com uma índia, e tinha por objetivo aprender a conviver com o medo da dúvida e da partilha. Todo mês, tratava de grafar em mim, com o próprio sangue, o nome ou algo que remetesse ao que no momento eu julgava importante.
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