Cleibson Freitas nasceu em
1985, no Espírito Santo, residindo sempre na cidade de Cariacica. Filhos de
pais humildes, tornou-se um apaixonado e curioso pelo ser humano da vida comum.
Graduado em Língua
Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade
Federal do Espírito Santo, o escritor inicia sua carreira com a publicação de O óvulo e o
ovo: tudo de novo. Nessa obra, Cleibson Freitas talvez
comece seu primeiro e verdadeiro encontro com a arte. Como ele mesmo diz:
“escrevo para ser livre. Ou melhor, brincar de ser livre, de ter prazer e
brincar de ser Deus. Escrevo para me esconder do mundo e anular-me por
completo. A literatura também serve para nos escondermos”. Confira, abaixo, o
conto “Quinhentismo”:
Quinhentismo
Fico um pouco envergonhada e até meio pálida quando
resolvo relembrar este fato. Já faz tanto tempo. Nada menos que cinco décadas e
meia. Ficar relembrando isso não combina muito com as minhas feições graves e
com os meus cabelos brancos. Cabelos brancos de uma anciã que em breve entrará
na casa dos setenta anos, idade que não permite mais que eu me aventure nas
peripécias vergonhosas do passado.
Acontece que minha neta Rosalina não acreditou muito no
fato contado por seu pai, que é meu filho, e está curiosa pra ouvir a história
da minha própria boca. Acho que a história despertou um enorme interesse nela.
É uma criança boa e esperta, a Rosalina. É possível até que ela já esteja com a
cabeça preparada pra ouvir este relato. Semana passada mesmo, inclusive, ela
fez uma pergunta pro pai com uma dose incrível de percepção e inteligência:
– Papai, por que todo velhinho mora sozinho num quartinho
separado? O avô da Patrícia é igual à vovó, ele também mora num quartinho nos
fundos da casa dela.
Fazia muito tempo que eu não ouvia uma pergunta tão
intensa. Vindo da minha netinha, então, foi uma surpresa muito agradável. O que
muito me impressionou, foi que essa pergunta que ela fez ao pai, também eu fiz
pra minha mãe sessenta anos atrás, quando eu fui visitar meu avô pela primeira
vez. Anos mais tarde, quando meus irmãos e eu abandonamos nossa mãe aos setenta
e cinco anos num cubículo miserável, pude entender porque se enfia velho num
quartinho separado: é só um pequeno sintoma da frieza das relações humanas...
Rosalina hoje vem me visitar. Vem com o pai, indivíduo que
só vem me ver por causa dos pastéis que faço. Desde criança que ele gosta dos
meus pastéis. Naquela época, eu me comprazia em ver o desgraçado comer porque
ele ainda era uma criança e também ainda não me tinha enfiado nesta merda de
cômodo escuro. Mas hoje, pra não faltar com a sinceridade, a vontade que tenho
é de colocar veneno no pastel desse covarde. Às vezes tenho a impressão de que
esse maldito até torce pra que a mão pesada da morte logo pouse sobre minha
face. Mas eu resisto ao afago fúnebre. Embora nessa idade a gente sinta o peso
do existir achatar o corpo, eu ainda quero viver mais uns anos. Quero viver
mais uns anos, porque ainda não aprendi como se despedir da vida. E talvez
nunca aprenda. Aprender a me despedir foi uma coisa que eu nunca fiz com
afinco. Eu não gosto de fim. O fim é assombroso. Esta vida é tão cheia de
beleza, que o fim chega a ser um monstro assombroso.
Um dia desses falei pra Rosalina que o fim é um monstro
assombroso e acho que ela pensou que minha memória já está ficando deteriorada
pelo tempo. Talvez ela tenha imaginado que eu esteja caducando. Pobre menina.
Quando penso que o tempo também vai se encarregar de transformar a jovialidade
dela num traste enrugado e amassado, eu me estremeço toda. Mas atrás da
destruição física vem a maturidade da alma. É o que eu chamo de equilíbrio das vantagens
e desvantagens.
No dia em que eu fiquei sabendo que o pai de Rosalina
mencionou pra ela a história pela qual passei, eu chorei profundamente. É que
essa não é história infanto-juvenil. Tampouco é fábula. É história real.
História que vivi. A narrativa não é apropriada pra menina. Mas, considerando
que o safado do pai já iniciou a narração e que ela insiste em ouvir o relato
da minha própria boca, vou contar pra Rosalina o grotesco episódio que me
aconteceu num tempo bem remoto. Num tempo em que eu ainda era uma adolescente
colegial.
Naquela época, contava eu quinze anos, ocorreu-me algo
pouco habitual. Durante uma aula sobre a invasão portuguesa no Brasil em que o
mestre Calixto descrevia os primeiros contatos dos brancos com os nativos, eu
levantei da carteira em que estava sentada, dei um grito horripilante e, de pé
para toda a classe, tirei todas as minhas roupas e permaneci nua durante um
tempo quase eterno. A minha nudez, ali, perante o professor e a turma,
consistia num ato atávico e primitivo, que dizia que todo ser provém de outro
ser. O mestre Calixto não compreendeu o porquê daquela audácia e entrou num
desespero estrondoso. Ao certo, nem eu própria compreendia por que agia daquela
maneira. Uma força do universo me fizera arrancar todos aqueles pedaços de pano
que me cobriam, e eu não entendia o que se passava comigo. Não sentia nada e
nem entendia o motivo daquele comportamento inusitado. Só sentia o vigor dos
meus seios querendo arrebentar as paredes da escola e um vento que soprava quente
na minha vagina descoberta enquanto eu estava em pé gritando como uma selvagem.
Era um vento quinhentista zunindo forte e perpassava os séculos para vir bater
no meu buço vaginal.
Quando consegui parar de gritar, lembro apenas que o
mestre Calixto se esforçava pra me segurar. Eu o empurrei com uma força que
desconhecia em mim, fazendo com que ele batesse a cabeça na lousa e desmaiasse.
Só aí então pude perceber que eu tinha passado por uma espécie de devaneio
absurdo. E, ao voltar à realidade, o que vi foi assustador: não era só eu que
tinha passado por aquele delírio. Todos os meus colegas também estavam de pé,
nus e exclamando palavras incompreensíveis. O mestre Calixto, desacordado ao
redor da lousa, era arrastado pelas pernas e devorado antropofagicamente; os
seus olhos foram arrancados e disputados como alimento; as orelhas, uma era
raivosamente triturada por alguém, a outra, fora arremessada longe pra por fim
à disputa; e o seu nariz, pobre mestre, fora esmagado pelos dentes dos
indivíduos civilizados, transformados de repente em canibais. Pude
ouvir aí, sem exageros, o tilintar da cartilagem em atrito com os dentes dos
ferozes. Após a cabeça desaparecer devido àquela horrenda e furiosa deglutição,
abriram a barriga do mestre com um estilete e suas vísceras passaram a ser
sugadas terrivelmente. O que sobrou do corpo – apenas um amontoado de pele –
guardava marcas de mordidas, arranhões e hematomas. Finalmente, ao ficar reduzido numa coisa
semelhante a uma massa pastosa esquisita, Calixto foi colocado em cima da
escrivaninha e rodeado por todos como num ritual autóctone. Tudo foi tão rápido
como a velocidade de um relâmpago. Ao término, ninguém sabia o que tinha se
passado. Todos ensanguentados choravam horrorizados o desaparecimento do mestre
Calixto.
Ao contar essa história pra Rosalina, temo que ela pense
esse fato como uma mera invenção da minha memória caduca. Mas, como minha mãe
dizia, “a verdade existe antes de ser duvidada”. Então, se Rosalina quiser
acreditar nesse horrendo fato, que acredite! Se não quiser, ficarei contente
com que ela encare tudo como uma maravilhosa fábula.
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