sábado, 16 de março de 2013

O COMUNISMO MORAL-PRÁTICO DO SÉCULO 21 - PARTE 3


No decorrer dessa semana, publicaremos, em três partes, o texto “O comunismo moral-prático do século 21”, de Luís Eustáquio Soares, que foi publicado no Site do “Observatório da Imprensa”. Confira a 3ª parte do artigo:

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A nuvem etérea da abstração

Deixemos claro, fora das mistificações, o comunismo da cultura de massa do século 21, manietado pela Casa Grande midiática tem dois traços indissociáveis: demagogia e populismo. Há muito que o espaço da política deixou de ser o centro da demagogia e do populismo. Agora esse centro demagógico e populista se inscreve no interior da própria cultura de massa falsamente moral-prática do século 21, sequestro degenerado das criações realmente populares, através de edições sensuais e demagógicas da potência irreprimível e libertária do verdadeiro comunismo do século 21: o moral-prático, pelo moral-prático, através do moral-prático, fora de todo favor derivado dos sentimentos de culpa, quando muito, dos bonzinhos equivocados, como Regina Casé, a serviço da Casa Grande.

Na perspectiva do comunismo moral-prático do século 21 o único convívio possível entre pobres e ricos é o que se funda na exigência do litígio marcado pelo político desafio de tomar o domínio cognitivo-instrumental dos meios de produção dos abastados, acabando ao mesmo tempo com o rico e com o pobre, porque o fim da existência de um pressupõe o fim da existência do outro. Insisto, pois, na questão de base: ser sujeito popular no plano cultural ou não, sob o ponto de vista do comunismo moral-prático do século 21, significa colocar-se como sujeito coletivo concreto do conhecimento cognitivo-instrumental do sistema midiático, sem precisar da velha política de favores do Brasil colonial – favores, bem entendido, para aparecer na TV Globo, a magnânima, sorrindo, mostrando a bunda, como novos ricos, convivendo, pacificado, com os velhos ricos.

Em função de seu milenar exílio, o conhecimento moral-prático não se expressa como as instituições do Estado esperam ou supõem, inclusive ou até mesmo antes de tudo as corporações midiáticas. A relação entre o conhecimento moral-prático, base da pirâmide, com o cognitivo-instrumental e estético-expressivo se inscreve ou ecoa a dialética entre o concreto e o abstrato. Tudo para o conhecimento moral-prático adquire uma dimensão concreta, porque simplesmente é do concreto que ele vive e é a partir do concreto que ele se expressa. Quem efetivamente ignora que o conhecimento cognitivo-instrumental de ponta, sob o domínio oligárquico, é arma contra o conhecimento moral-prático, arma tanto mais nefasta e eficaz quanto mais não é evidenciada como arma? O conhecimento moral-prático enfim é concreto simplesmente porque não é parasitário e, portanto, vive do mundo concreto, como todos nós, se não estivéssemos delirando racismos, elitismos, machismos sedimentados, também, pela separação entre as formas de conhecimento.

Existe, pois, uma milenar relação entre o concreto o abstrato. Quanto mais longe do conhecimento moral-prático mais tudo se expressa de forma mais etérea e abstrata. Sabemos que o capitalismo é um sistema mundial de extorsão da riqueza comum. Sabemos que a fome na Somália é resultado direto desse sistema depredador, assassino e iníquo, mas ninguém viu ou verá uma figura como Bill Gates tirando diretamente um prato de comida digno das mãos de uma mãe Somali sem leite nos seios para alimentar seu faminto bebê. Concretamente, é assim que funciona, mas a nuvem etérea da abstração (que alcança todas as dimensões da vida, inclusive a jurídica) esconderá esse fato bruto: a concentração de riqueza, logo o rico, tira a comida do pobre. Por outro lado, para o conhecimento moral-prático, logo para o pobre, tudo tende a se expressar concretamente; tudo é o que é, sem subterfúgios institucionais. Tudo, cada gesto, para o pobre, é visível e, se sai do instituído para o mundo etéreo e abstrato dos ricos, coloca-se imediatamente numa posição à margem, sendo visto concretamente como marginal, fora da lei.

Legado de Chávez é a sementeira mais promissora

Um conhecimento moral-prático em busca de sua liberação do jugo da dimensão etérea e abstrata, que lhe pesa concretamente nas costas, encherá essa dimensão de mundo real, de marginalidade de corpos, de expressões faciais, de gritos, de gargalhadas, de dança, de informalidades (sob o ponto de vista etéreo e abstrato, logo formal), de demandas reais, concretas, porque dizem respeito às necessidades mais evidentes, a garantia e a autonomia alimentar, a conquista da casa digna, a proteção dos filhos, o trabalho seguro e digno, o cuidado da saúde si e de todos os outros pobres, porque tudo no pobre, na dimensão política de sua luta pela vida, é coletivo, solidário, tudo é para si, mas é também para os outros pobres. Tudo é potencialmente revolucionário, multidão concreta que concretiza a tudo, embora, no cenário igualmente concreto da luta de classes, quanto mais os estratos de classe ocupam ou se aproximam do topo da pirâmide social, protegendo-se de abstração e de relações etéreas, mais não reconhecerá a dimensão concreta expressada na perturbação libertária do conhecimento moral-prático, do pobre, acusando-a de bárbara, autoritária, louca, ignorante, imprópria, absurda, irregular, ilegal, simplista, maniqueísta, caluniando-a sem cessar, portanto, e por uma razão muito simples: seu etéreo mundo, inclusive jurídico, inclusive epistemológico, inclusive midiático, seus enfim sistemas de representação etéreos não estão minimamente programados para sentir e perceber, concretamente, as razões reais, universais, do conhecimento moral-prático.

Hugo Chávez Frías foi esse turbilhão de concretudes, de corpos, de lutas por justiças no plural mesmo, justiça econômica, justiça epistemológica, justiça étnica, justiça de gênero, justiça, justiça e mais justiças. Hugo Chávez Frías transformava a questão política, a questão do Estado, em questões de carne e osso, reais. Nascido no interior da Venezuela, na cidade de Sabaneta, capital do estado de Barinas, Chávez encarnou e multiplicou as potências demoníacas do interior abandonado pelas oligarquias venezuelanas. O menino pobre, filho de professores das primeiras séries (sempre os começos da concretude, inclusive no plano da aprendizagem dita formal), foi educado por sua avó, Rosa Inés, que lhe ensinou a arte de fabular, de confabular, concretamente, a milenar arte de contar estórias do mundo moral-prático, com suas mil e uma noites de prosódias pobres, de pobres; mil e uma noites de claridades solares de exemplaridades de resistências e de alternativas contra todas as formas de opressão: a menina pobre que foi abandonada pela madrasta, o moleque trapaceado pelo tio corrupto, que lhe rouba o trabalho de um dia todo que seria revertido em pão para a mãe e os irmãos mais novos; estórias concretas, de mundos concretos, de situações concretas, de injustiças reais, mas contadas com espírito imaginativo, com fantasia, com potência cosmológicas de outros mundos possíveis, porque necessários, porque tomados por outras variáveis linguísticas, fora dos padrões preestabelecidos, porque urgentes.

Urgência, a urgência do pobre foi a que marcou o destino público, político, de Hugo Chávez. Uma urgência que é uma legião de urgências, porque tudo que é urgente para o pobre o é igualmente para todos os injustiçados do mundo; para todos os condenados da Terra, sob o peso covarde, perverso, o reino de todas as maldades, das etéreas oligarquias de ontem e de hoje, insensíveis, narcisistas, dotadas de capacidades de comprar tanto quanto estão vendidas, cooptadas pela rede dos poderes imperialistas, colonizadores, midiáticos, publicitários. Chávez, opondo-se às garras dessa rede de maldades, tendo em vista o seu epicentro sísmico, a expansão imperialista do capitalismo americano, foi o homem da urgência da fome, por isso seu nome foi legião, legião de outras fomes, legião de pobres, que são os de sua infância, de sua terra natal, mas também de toda Venezuela, de toda América Latina, de toda África, do mundo todo; legião de mundos, na biografia política de Hugo Chávez; de mundos reais, os quais, quando se agitam, perturbam as dissimuladas abstrações dominantes, que respondem com ódio, com calúnia, com asco, desprezo, com golpes oligárquicos manietados por etéreas agências de golpes americanas, como a CIA, a Usaid; com golpes midiáticos, essa caixa de ressonância diária que sempre o mostrou, deu notícias dele, difamando não a ele, apenas, mas às concretas demandas necessárias, urgentes, para ontem, para o ano passado, para as décadas passadas, séculos passados, para os milênios passados, do mundo moral-prático.

Os pobres do mundo se agitaram na urgência de Hugo Chávez. Foi através de sua urgência que ele, a partir do ponto de vista do conhecimento moral-prático, tornou-se um devorador de livros, um leitor incansável, urgente. Chávez lia e aprendia, portanto, não a partir dos critérios de rigor etéreos impostos pela aristocrática história do conhecimento estético-expressivo vinculado à escrita, que impõe regras, normas, condutas elitistas, segmentadas por disciplinas apartadas da vida concreta, abstratas, mas a partir da fome de aprender do mundo moral-prático. É por isso que sua urgência de leitor insaciável não poderia perder tempo com leituras etéreas do mundo das elites, por pedagogias que rezam o credo de que ler é bom e ponto final, independente do que se lê e de como se lê, concretamente. Sem precisar de aprender, porque não é aprendizagem que se ensina na escola, por dizer respeito às urgências de sobrevivência do mundo dos pobres, Chávez sabia que a escrita sempre foi arma de guerra etérea contra os pobres do mundo, acusados de analfabetos, bárbaros, burros, simplistas, por não saberem escrever e ler, alfabeticamente, a prosódia das oligarquias. Chávez, portanto, lia como um analfabeto, fora das prosódias dominantes, enchendo a escrita de vozes dissonantes, de músicas, de danças, de risos, de verdades.

É por isso que, repito, não perdia tempo com leituras etéreas, com a vaga ideia de que ler é bom e ponto final. Chávez, urgentemente, leu os autores comprometidos com o mundo moral-prático e, ecoando as estórias de sua avó, leu Simón Bolívar, leu Lenin, leu Marx, leu geopolítica, leu Galeano, Chomsky, James Petras, Samin Amir e, com este disse o que importava, na momento que importava: “Bush, go home!”. Leu e leu e, lendo, experimentava, projetava, indicava os caminhos necessários: a união latino-americana, o não aberto, debochado, informal, popular à Área de Livre Comércio das América – Alca, uma rendição fatal às multinacionais americanas; a Unasur, a Celac, o Alba, Aliança Bolivariana para as Américas, a primeira e única experiência de bloco de países, no mundo todo, inspirada pela urgência das necessidades reais dos povos, pela urgência urgentíssima da solidariedade entre os países pobres. Chávez não parou aí: propôs e realizou, realizando-se, a Telesur, a televisão do Sul pobre do mundo, comprometida com o ponto de vista dos pobres. Chávez propôs o Petrocaribe, propôs o Banco do Sul e, no plano interno, foi gradativamente, pelas beiradas, enchendo o elitista e corrupto Estado venezuelano (qual não é?) de mundos concretos: as missões, como a Misión Milagro, que curou as cataratas de milhões de idosos da Venezuela e da América Latina; missão de todos os jeitos, propiciando alimentos subvencionados para os venezuelanos, acesso à saúde, proteção à infância; e dá-lhe mais missões que se transbordaram em gestões coletivas de empresas nem privadas, nem estatais (aprendeu com Samir Amin?), mas fundadas em outros modelos de propriedade. Daí surgem as comunas e as cooperativas, milhares – devires que tomariam, com o tempo, não obstante suas contradições, todo o Estado: o socialismo do século 21 moral-prático, um mundo concreto de experimentações necessárias no lugar do Estado etéreo, abstrato, sem povo, lento.

Você não estará exagerando? Não estará endeusando um simples humano, reificando uma pessoa, mitificando-a?, poderia perguntar o leitor cauteloso. Chávez não tinha a cautela etérea das abstrações sem mundos. Chávez tinha mundos em si, povos. Como Cristo, e não é exagero, um devir Cristo, porque marcado por devires pobres. O legado de Chávez (esse é o princípio de esperança deste artigo) é a sementeira mais promissora do comunismo moral-prático do século 21, porque, tirando leite de pedra, enfrentando diversidades concretas, tornou-se multidão de pobres, que deve a partir de agora governar em seu lugar, inspirada e devotada em seu infinito amor, brotando e brotado das sementes ao vento dos pobres da Venezuela e do mundo.

Num mundo milenarmente, viciosamente, acostumado com derrotas, com esquerdas pedantemente derrotadas, eis aí, seu mais importante, e urgente, simples, legado político (de Hugo Chávez): povos do mundo, “hasta la victoria siempre!”

(Luís Eustáquio Soares)

Confira a 1ª parte do artigo: http://outros300.blogspot.com.br/2013/03/o-comunismo-moral-pratico-do-seculo-21.html

2ª parte:http://outros300.blogspot.com.br/2013/03/o-comunismo-moral-pratico-do-seculo-21_15.html
 




Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na UFES.

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