No decorrer dessa
semana, publicaremos, em três partes, o texto “O comunismo moral-prático do
século 21”,
de Luís Eustáquio Soares, que foi publicado no Site do “Observatório da
Imprensa”. Confira a 3ª parte do artigo:
[...]
A nuvem
etérea da abstração
Deixemos claro,
fora das mistificações, o comunismo da cultura de massa do século 21, manietado
pela Casa Grande midiática tem dois traços indissociáveis: demagogia e
populismo. Há muito que o espaço da política deixou de ser o centro da
demagogia e do populismo. Agora esse centro demagógico e populista se inscreve
no interior da própria cultura de massa falsamente moral-prática do século 21,
sequestro degenerado das criações realmente populares, através de edições
sensuais e demagógicas da potência irreprimível e libertária do verdadeiro
comunismo do século 21: o moral-prático, pelo moral-prático, através do
moral-prático, fora de todo favor derivado dos sentimentos de culpa, quando
muito, dos bonzinhos equivocados, como Regina Casé, a serviço da Casa Grande.
Na perspectiva
do comunismo moral-prático do século 21 o único convívio possível entre pobres
e ricos é o que se funda na exigência do litígio marcado pelo político desafio
de tomar o domínio cognitivo-instrumental dos meios de produção dos abastados,
acabando ao mesmo tempo com o rico e com o pobre, porque o fim da existência de
um pressupõe o fim da existência do outro. Insisto, pois, na questão de base:
ser sujeito popular no plano cultural ou não, sob o ponto de vista do comunismo
moral-prático do século 21, significa colocar-se como sujeito coletivo concreto
do conhecimento cognitivo-instrumental do sistema midiático, sem precisar da
velha política de favores do Brasil colonial – favores, bem entendido, para
aparecer na TV Globo, a magnânima, sorrindo, mostrando a bunda, como novos
ricos, convivendo, pacificado, com os velhos ricos.
Em função de
seu milenar exílio, o conhecimento moral-prático não se expressa como as
instituições do Estado esperam ou supõem, inclusive ou até mesmo antes de tudo
as corporações midiáticas. A relação entre o conhecimento moral-prático, base
da pirâmide, com o cognitivo-instrumental e estético-expressivo se inscreve ou
ecoa a dialética entre o concreto e o abstrato. Tudo para o conhecimento moral-prático
adquire uma dimensão concreta, porque simplesmente é do concreto que ele vive e
é a partir do concreto que ele se expressa. Quem efetivamente ignora que o
conhecimento cognitivo-instrumental de ponta, sob o domínio oligárquico, é arma
contra o conhecimento moral-prático, arma tanto mais nefasta e eficaz quanto
mais não é evidenciada como arma? O conhecimento moral-prático enfim é concreto
simplesmente porque não é parasitário e, portanto, vive do mundo concreto, como
todos nós, se não estivéssemos delirando racismos, elitismos, machismos
sedimentados, também, pela separação entre as formas de conhecimento.
Existe, pois,
uma milenar relação entre o concreto o abstrato. Quanto mais longe do
conhecimento moral-prático mais tudo se expressa de forma mais etérea e
abstrata. Sabemos que o capitalismo é um sistema mundial de extorsão da riqueza
comum. Sabemos que a fome na Somália é resultado direto desse sistema
depredador, assassino e iníquo, mas ninguém viu ou verá uma figura como Bill
Gates tirando diretamente um prato de comida digno das mãos de uma mãe Somali
sem leite nos seios para alimentar seu faminto bebê. Concretamente, é assim que
funciona, mas a nuvem etérea da abstração (que alcança todas as dimensões da
vida, inclusive a jurídica) esconderá esse fato bruto: a concentração de
riqueza, logo o rico, tira a comida do pobre. Por outro lado, para o
conhecimento moral-prático, logo para o pobre, tudo tende a se expressar
concretamente; tudo é o que é, sem subterfúgios institucionais. Tudo, cada gesto,
para o pobre, é visível e, se sai do instituído para o mundo etéreo e abstrato
dos ricos, coloca-se imediatamente numa posição à margem, sendo visto
concretamente como marginal, fora da lei.
Legado
de Chávez é a sementeira mais promissora
Um conhecimento
moral-prático em busca de sua liberação do jugo da dimensão etérea e abstrata,
que lhe pesa concretamente nas costas, encherá essa dimensão de mundo real, de
marginalidade de corpos, de expressões faciais, de gritos, de gargalhadas, de
dança, de informalidades (sob o ponto de vista etéreo e abstrato, logo formal),
de demandas reais, concretas, porque dizem respeito às necessidades mais
evidentes, a garantia e a autonomia alimentar, a conquista da casa digna, a
proteção dos filhos, o trabalho seguro e digno, o cuidado da saúde si e de
todos os outros pobres, porque tudo no pobre, na dimensão política de sua luta
pela vida, é coletivo, solidário, tudo é para si, mas é também para os outros
pobres. Tudo é potencialmente revolucionário, multidão concreta que concretiza
a tudo, embora, no cenário igualmente concreto da luta de classes, quanto mais
os estratos de classe ocupam ou se aproximam do topo da pirâmide social,
protegendo-se de abstração e de relações etéreas, mais não reconhecerá a
dimensão concreta expressada na perturbação libertária do conhecimento
moral-prático, do pobre, acusando-a de bárbara, autoritária, louca, ignorante,
imprópria, absurda, irregular, ilegal, simplista, maniqueísta, caluniando-a sem
cessar, portanto, e por uma razão muito simples: seu etéreo mundo, inclusive
jurídico, inclusive epistemológico, inclusive midiático, seus enfim sistemas de
representação etéreos não estão minimamente programados para sentir e perceber,
concretamente, as razões reais, universais, do conhecimento moral-prático.
Hugo Chávez
Frías foi esse turbilhão de concretudes, de corpos, de lutas por justiças no
plural mesmo, justiça econômica, justiça epistemológica, justiça étnica,
justiça de gênero, justiça, justiça e mais justiças. Hugo Chávez Frías
transformava a questão política, a questão do Estado, em questões de carne e
osso, reais. Nascido no interior da Venezuela, na cidade de Sabaneta, capital
do estado de Barinas, Chávez encarnou e multiplicou as potências demoníacas do
interior abandonado pelas oligarquias venezuelanas. O menino pobre, filho de
professores das primeiras séries (sempre os começos da concretude, inclusive no
plano da aprendizagem dita formal), foi educado por sua avó, Rosa Inés, que lhe
ensinou a arte de fabular, de confabular, concretamente, a milenar arte de
contar estórias do mundo moral-prático, com suas mil e uma noites de prosódias
pobres, de pobres; mil e uma noites de claridades solares de exemplaridades de
resistências e de alternativas contra todas as formas de opressão: a menina pobre
que foi abandonada pela madrasta, o moleque trapaceado pelo tio corrupto, que
lhe rouba o trabalho de um dia todo que seria revertido em pão para a mãe e os
irmãos mais novos; estórias concretas, de mundos concretos, de situações
concretas, de injustiças reais, mas contadas com espírito imaginativo, com
fantasia, com potência cosmológicas de outros mundos possíveis, porque
necessários, porque tomados por outras variáveis linguísticas, fora dos padrões
preestabelecidos, porque urgentes.
Urgência, a
urgência do pobre foi a que marcou o destino público, político, de Hugo Chávez.
Uma urgência que é uma legião de urgências, porque tudo que é urgente para o
pobre o é igualmente para todos os injustiçados do mundo; para todos os
condenados da Terra, sob o peso covarde, perverso, o reino de todas as
maldades, das etéreas oligarquias de ontem e de hoje, insensíveis, narcisistas,
dotadas de capacidades de comprar tanto quanto estão vendidas, cooptadas pela
rede dos poderes imperialistas, colonizadores, midiáticos, publicitários.
Chávez, opondo-se às garras dessa rede de maldades, tendo em vista o seu
epicentro sísmico, a expansão imperialista do capitalismo americano, foi o
homem da urgência da fome, por isso seu nome foi legião, legião de outras
fomes, legião de pobres, que são os de sua infância, de sua terra natal, mas
também de toda Venezuela, de toda América Latina, de toda África, do mundo
todo; legião de mundos, na biografia política de Hugo Chávez; de mundos reais,
os quais, quando se agitam, perturbam as dissimuladas abstrações dominantes,
que respondem com ódio, com calúnia, com asco, desprezo, com golpes
oligárquicos manietados por etéreas agências de golpes americanas, como a CIA,
a Usaid; com golpes midiáticos, essa caixa de ressonância diária que sempre o
mostrou, deu notícias dele, difamando não a ele, apenas, mas às concretas
demandas necessárias, urgentes, para ontem, para o ano passado, para as décadas
passadas, séculos passados, para os milênios passados, do mundo moral-prático.
Os pobres do
mundo se agitaram na urgência de Hugo Chávez. Foi através de sua urgência que
ele, a partir do ponto de vista do conhecimento moral-prático, tornou-se um
devorador de livros, um leitor incansável, urgente. Chávez lia e aprendia,
portanto, não a partir dos critérios de rigor etéreos impostos pela
aristocrática história do conhecimento estético-expressivo vinculado à escrita,
que impõe regras, normas, condutas elitistas, segmentadas por disciplinas
apartadas da vida concreta, abstratas, mas a partir da fome de aprender do
mundo moral-prático. É por isso que sua urgência de leitor insaciável não
poderia perder tempo com leituras etéreas do mundo das elites, por pedagogias
que rezam o credo de que ler é bom e ponto final, independente do que se lê e
de como se lê, concretamente. Sem precisar de aprender, porque não é
aprendizagem que se ensina na escola, por dizer respeito às urgências de
sobrevivência do mundo dos pobres, Chávez sabia que a escrita sempre foi arma
de guerra etérea contra os pobres do mundo, acusados de analfabetos, bárbaros,
burros, simplistas, por não saberem escrever e ler, alfabeticamente, a prosódia
das oligarquias. Chávez, portanto, lia como um analfabeto, fora das prosódias
dominantes, enchendo a escrita de vozes dissonantes, de músicas, de danças, de
risos, de verdades.
É por isso que,
repito, não perdia tempo com leituras etéreas, com a vaga ideia de que ler é
bom e ponto final. Chávez, urgentemente, leu os autores comprometidos com o
mundo moral-prático e, ecoando as estórias de sua avó, leu Simón Bolívar, leu
Lenin, leu Marx, leu geopolítica, leu Galeano, Chomsky, James Petras, Samin
Amir e, com este disse o que importava, na momento que importava: “Bush, go
home!”. Leu e leu e, lendo, experimentava, projetava, indicava os caminhos
necessários: a união latino-americana, o não aberto, debochado, informal,
popular à Área de Livre Comércio das América – Alca, uma rendição fatal às
multinacionais americanas; a Unasur, a Celac, o Alba, Aliança Bolivariana para
as Américas, a primeira e única experiência de bloco de países, no mundo todo,
inspirada pela urgência das necessidades reais dos povos, pela urgência
urgentíssima da solidariedade entre os países pobres. Chávez não parou aí:
propôs e realizou, realizando-se, a Telesur, a televisão do Sul pobre do mundo,
comprometida com o ponto de vista dos pobres. Chávez propôs o Petrocaribe,
propôs o Banco do Sul e, no plano interno, foi gradativamente, pelas beiradas,
enchendo o elitista e corrupto Estado venezuelano (qual não é?) de mundos
concretos: as missões, como a Misión Milagro, que curou as cataratas de milhões
de idosos da Venezuela e da América Latina; missão de todos os jeitos,
propiciando alimentos subvencionados para os venezuelanos, acesso à saúde,
proteção à infância; e dá-lhe mais missões que se transbordaram em gestões
coletivas de empresas nem privadas, nem estatais (aprendeu com Samir Amin?),
mas fundadas em outros modelos de propriedade. Daí surgem as comunas e as
cooperativas, milhares – devires que tomariam, com o tempo, não obstante suas contradições,
todo o Estado: o socialismo do século 21 moral-prático, um mundo concreto de
experimentações necessárias no lugar do Estado etéreo, abstrato, sem povo,
lento.
Você não estará
exagerando? Não estará endeusando um simples humano, reificando uma pessoa,
mitificando-a?, poderia perguntar o leitor cauteloso. Chávez não tinha a
cautela etérea das abstrações sem mundos. Chávez tinha mundos em si, povos.
Como Cristo, e não é exagero, um devir Cristo, porque marcado por devires
pobres. O legado de Chávez (esse é o princípio de esperança deste artigo) é a
sementeira mais promissora do comunismo moral-prático do século 21, porque,
tirando leite de pedra, enfrentando diversidades concretas, tornou-se multidão
de pobres, que deve a partir de agora governar em seu lugar, inspirada e
devotada em seu infinito amor, brotando e brotado das sementes ao vento dos
pobres da Venezuela e do mundo.
Num mundo
milenarmente, viciosamente, acostumado com derrotas, com esquerdas pedantemente
derrotadas, eis aí, seu mais importante, e urgente, simples, legado político
(de Hugo Chávez): povos do mundo, “hasta la victoria siempre!”
(Luís
Eustáquio Soares)
Confira
a 1ª parte do artigo: http://outros300.blogspot.com.br/2013/03/o-comunismo-moral-pratico-do-seculo-21.html
2ª parte:http://outros300.blogspot.com.br/2013/03/o-comunismo-moral-pratico-do-seculo-21_15.html
Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria
da Literatura na UFES.
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